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Entrevista: 
Alcides Miranda

'Passar uma institucionalidade pública para a égide do direito privado é trocar valores e propósitos'

Alcides Miranda, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, já passou pela gestão, pelo controle social e recentemente tem sido uma das principais vozes a defender a criação de uma alternativa de gestão pública que envolva União, estados e municípios na superação da crescente privatização do SUS.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 01/07/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O Congresso Nacional encerra o semestre legislativo em 17 de julho. Em menos de seis meses, a Câmara dos Deputados comandada por Eduardo Cunha (PMDB-RJ) protagonizou uma dezena de episódios farsescos e colocou em votação projetos símbolo do conservadorismo, não dando descanso para os movimentos sociais. Em meio ao jogo de cena e aos retrocessos conhecidos, outras pautas importantes saíram da gaveta sem ganhar os holofotes. É o caso da revisão do Pacto Federativo, uma discussão complexa e necessária que, no entanto, tem sido tocada em regime de “urgência” e reduzida aos aspectos fiscais. Desarmar essa armadilha e situar a relação interfederada na perspectiva do fortalecimento do SUS público e universal é a tarefa que a Poli deu ao entrevistado dessa edição. Alcides Miranda, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), já passou pela gestão, pelo controle social e, recentemente, tem sido uma das principais vozes a defender a criação de uma alternativa de gestão pública que envolva União, estados e municípios na superação da crescente privatização do Sistema.

A comissão especial para rever o pacto federativo foi criada por Eduardo Cunha em 25 de fevereiro, constituída em 12 e instalada em 17 de março com promessa de votação no segundo semestre para que as mudanças tributárias possam valer em 2016. Nesse processo, a rapidez parece mais importante do que o envolvimento da sociedade em uma discussão complexa que, reduzida aos aspectos fiscais – mudanças no Pasep, ISS, Lei Kandir e por aí vai –, como vem acontecendo, soa incompreensível para a maioria das pessoas. Em que termos você introduziria esse debate?

Primeiro, é um retrocesso o Congresso Nacional colocar em discussão somente a transferência de responsabilidades e recursos e não a consolidação do pacto federativo nacional. Vejo com muita preocupação essa iniciativa do Congresso, como tantas outras em pauta. Nosso pacto federativo é singular no mundo. Há quem brinque e o chame de “pacto jabuticaba” porque temos três entes que são autônomos e interdependentes e não há uma hierarquização entre eles. Não existem níveis de governo no federalismo brasileiro. Isso está definido na Constituição que também define alguns princípios para o pacto federativo. Em várias áreas, a Constituição define corretamente princípios e diretrizes que serão regulamentadas por leis. É o caso da saúde, com a Lei Orgânica 8.080. No caso do pacto federativo, nós não temos uma lei que regulamente os termos das relações federativas, dentre elas, relações intergovernamentais. O que eu quero dizer com isso? Vou dar outro exemplo da saúde: tivemos que inventar uma instância que chamamos de comissões intergestores. A tripartite, que reúne gestores do governo federal, estados e municípios, as bipartites, constituídas pelo estado e seus diversos municípios, e as regionais, que reúnem os municípios por regiões. Ao longo de mais de uma década essas instâncias ficaram à margem de qualquer regulamentação. Foi uma saída ad hoc que a saúde encontrou para lidar com a questão federativa. A questão é que esse vazio regulatório se estende a todos os setores da administração pública que, ademais, não lançaram mão de estratégias alternativas, como foi o caso da saúde.

A chamada “remodelagem” do pacto federativo tem sido apresentada por Cunha como um prelúdio da reforma tributária, na seguinte lógica: para redistribuir recursos entre União, estados e municípios é preciso rever as responsabilidades que cada um assume nas ações de saúde, educação, segurança etc. Nesse sentido, muitas entidades de gestores têm defendido que essa revisão de papéis seja feita através de mudanças constitucionais. Qual a sua avaliação?

Sou da opinião de que precisamos consolidar e inovar o pacto federativo e não reformá-lo. Não podemos retroceder nessa discussão, até porque o artigo 30 da Constituição é muito claro. Ele define que a responsabilidade com a prestação de serviços é dos municípios – e de forma ascendente para as regiões, pensando em outras regulamentações – com o apoio técnico e financeiro de estados e União. Não é necessária uma emenda à Constituição para redefinir princípios, mas sim regulamentar, no sentido de esclarecer como vão se dar essas relações de apoio técnico e financeiro. Existem, portanto, lacunas que não são relativas às competências e responsabilidades dos entes, mas às estratégias institucionais necessárias para viabilizar o pacto federativo política, técnica e administrativamente. Nosso país é heterogêneo, plural, complexo. Vamos encontrar problemas prioritários que se diferenciam entre as regiões, entre grandes regiões, entre estados e dentro dos estados. Precisamos de uma reforma do pacto federativo tipo caixa de ferramentas, que dê um leque de alternativas de oferta de recursos, modalidades institucionais e organização e possa ser acessado pelos municípios e pelas regiões do país dependendo das suas necessidades e características.

Parte importante das alegações em prol da urgência do debate sobre a revisão do pacto vem da saúde, principalmente das dificuldades financeiras enfrentadas pelos municípios vinte e sete anos depois da criação do SUS, porém, existe uma revisão em curso sobre a ênfase municipalista. Não é um erro que uma discussão do pacto federativo se concentre na responsabilidade dos entes e não se proponha a pensar novos arranjos institucionais solidários, interfederativos?

Por volta de 1963, o país viveu uma discussão sobre municipalização que, com o golpe militar, submergiu em um longo período de latência. Com o fim da ditadura, o retorno desse debate foi natural. E aí a discussão do município como instância imprescindível do pacto federativo foi muito forte, a ponto de gerar uma distorção. O municipalismo se tornou a tônica sem que se discutissem os intermédios, principalmente a questão das regiões de saúde. Temos um país em que metade dos municípios tem menos de 10 mil habitantes e se o corte for de 25 mil habitantes, três quartos das cidades brasileiras têm esse perfil. Se a gente entender que esses municípios não dispõem de recursos e serviços suficientes para dar conta das demandas das populações em seus territórios, o âmbito regional é a resposta institucional para a materialização e a resolubilidade das políticas públicas. Por isso, a discussão do pacto federativo envolve não só regras para as relações intergovernamentais, mas o entendimento de quais são os âmbitos de concretude das políticas públicas que, no caso brasileiro, como em vários países do mundo, são as regiões. Temos que discutir regiões, com o cuidado de não inventar um quarto ente federativo. O que precisamos é criar estratégias e tecnologias institucionais para lidar com essas relações federativas e, principalmente, garantir que os gestores possam dar direção para essas regiões que não são apenas de saúde, mas também de educação, meio ambiente, etc.

Ainda sobre a relação entre pacto federativo e saúde, durante as audiências públicas no Congresso, surgiram argumentos como o do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que defendeu mais recursos federais para a saúde para “alavancar” as Parcerias Público-Privadas. Estamos em ano de Conferência Nacional de Saúde e, ainda sim, o debate do pacto – assim como a revisão da Lei de Responsabilidade Fiscal para a saúde – tem passado ao largo de questões capitais para o controle social do SUS, como a adoção indiscriminada de modelos de gestão.

A discussão sobre a institucionalidade pública é a premissa não só para a alteração na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas para qualquer reforma. Fiz parte de um estudo recente que analisou de que forma serviços desse tipo – empresas públicas, OSs, Oscips – se expandiram nos últimos dez anos. A conclusão é que se esse novo segmento do sistema de saúde brasileiro, a que chamamos de “agenciado-empresariado”, continuar a crescer no ritmo atual, em 2030 ele será o segundo mais importante na prestação de serviços do país, logo atrás do privado. A administração direta e indireta sob a égide do direito público vai ocupar o terceiro lugar, se convertendo por completo em um segmento acessório. E, mais importante, convenientemente útil para o empresariamento na saúde.

Quais são as características desse segmento?

Ele está se constituindo de forma intrinsecamente segmentada e fragmentada. Segmentada por ser majoritariamente média e alta complexidade em alguns aspectos que são interessantes para o mercado; fragmentada porque nas 436 regiões de saúde do Brasil, vamos encontrar no eixo do Centro-Sul um conjunto enorme de regiões reguladas por oligopólios de mercado ou “quase-mercado” [termo usado na literatura internacional que significa uma instância que opera com recursos públicos em uma lógica de mercado]. Enquanto em regiões onde o mercado não tem interesse, vamos ter o predomínio do setor público, da administração direta ou indireta, mas provavelmente da administração indireta pela via de empresas públicas ou fundações estatais. São as periferias do mercado: Amazônia, regiões do Nordeste e mesmo algumas áreas mais periféricas nas regiões Sul e Sudeste. Estamos passando por um processo de transição que vai na contramão do projeto constitucional, em que o SUS com administração direta sob a égide do direito público é que vai ser o complementar.

Por que é importante que os serviços do SUS sejam regidos pelo direito público?

Os critérios adotados para classificar e tipificar os serviços de saúde tendem a reduzir as diferenças entre o direito público e o direito privado à esfera administrativa. Regime Jurídico Único ou CLT? Será que é disso que se trata? A resposta é não. O direito público define e conforma o direito social. E o direito privado rege as relações privadas, entre consumidores e vendedores, por exemplo. Passar uma institucionalidade pública para a égide do direito privado e, portanto, para a racionalidade do mercado, é trocar valores e propósitos. E essa confusão, ou redução, gera uma série de distorções e implicações que, ao longo de décadas, vão nos levar a um rumo completamente distinto daquele pensado e imaginado para o SUS em sua origem. Inclusive de uma perspectiva pedagógica da política social de geração para geração. O entendimento, daqui a pouco, de que serviços de saúde não são conquistas sociais, mas direito de consumidores. Vamos ter de criar um código do consumidor para o SUS e substituir a Constituição por esse código? Quero ressaltar que viabilizar a prestação de serviços e garantir o acesso é de suma importância. Mas ficar apenas nisso é legitimar apenas pelo valor de consumo daquele serviço, que geralmente é um serviço biomédico, o que reduz mais ainda a compreensão da saúde a seu aspecto assistencial-biomédico. Da minha perspectiva, estabelecer condições para que a política pública seja legitimada e apropriada pelo cidadão como protagonista social e cogestor tem uma importância capital. Não podemos perder isso de vista a partir de um discurso conjuntural, pragmático e utilitário de que não importa a cor do gato desde que ele pegue o rato. Precisamos fazer um enfrentamento desse discurso.

Quais são as armas para enfrentar esse discurso tão presente na gestão do SUS hoje?

Antes de mais nada, é preciso dizer que se trata de um discurso ideológico de condenação da administração pública. Se alguém vai defender a administração pública, seja ela direta ou indireta, parece que está falando uma grande bobagem. Parece que a administração pública não pode ser inovada e que as alternativas que nos restam são o “quase-mercado” ou o mercado, o que dá no mesmo. Isso tem a ver com outra questão, que é o entendimento do que é gestão pública. A gestão deveria gerar, gerir e girar também, inovar. Mas grande parte dos gestores públicos tem se restringido ao gerencialismo, com a perspectiva de gerir o que aí está. Dessa perspectiva, gestão se restringe à condução, não há uma direcionalidade para além do que está estabelecido pelas regras e pelo jogo do mercado. Dito isto, acredito que o enfretamento desse cenário não pode se restringir à crítica analítica do que não está bem, do que não avança. Temos que gerar uma alternativa ao ajuste fiscal, ao subfinanciamento, à fragmentação e segmentação, aos puxadinhos do SUS. Hoje, esse é o nosso desafio como intelectuais. Temos que discutir as alternativas e tentar compor e mobilizar a partir delas se não quisermos nos tornar reféns do pessimismo.

O sr. se transformou, ao lado do professor Gastão Wagner (Unicamp), em um dos principais proponentes de uma nova institucionalidade pública para o SUS, com a diferença de que enquanto ele tem defendido a criação de uma autarquia, seus textos falam em um consórcio nacional. Seria essa a alternativa que está faltando?

Apesar da ressalva de que qualquer reforma agora é temerosa em razão da correlação de forças e do risco de retrocessos em vários aspectos, no longo prazo é necessário criar uma institucionalidade pública que possa consolidar o Sistema Único de Saúde. E essa institucionalidade tem de estar sob a égide do direito público. A discussão sobre a modalidade – se é consórcio, autarquia ou outra coisa – é um detalhe importante, mas não imprescindível. Nesse momento, o principal é construir consenso político. Nesse sentido, minha proposta não difere da proposta do Gastão. Ambos defendemos uma institucionalidade pública que seja nacional, tripartite e de direito público. Por vários motivos. Do ponto de vista da organização do SUS, o que temos são puxadinhos e penduricalhos. Não temos uma arquitetura de um sistema nacional de saúde universal. Analisemos a organização do Sistema nos municípios e nas regiões pelas políticas que estão estabelecidas. Reina a fragmentação em termos de prestação de serviços, em termos de modelos de gestão e temos uma segmentação, aliás, várias segmentações em diversos aspectos do sistema de saúde no tocante a financiamento e organização. Do ponto de vista dos processos decisórios, podemos dizer que inovamos criando as comissões intergestores que finalmente estão regulamentadas. Mas, veja, a gestão não se restringe ao processo decisório. Os gestores se reúnem uma vez por mês nas regiões, tomam as decisões, mas quem vai fazer a gestão cotidiana? Porque existe a direcionalidade política que pode ser definida a partir dos processos decisórios, mas a condução – política, técnica e administrativa – e a regulação desses processos se dá no cotidiano, entre uma reunião e outra da tripartite, das bipartites, das comissões intergestores regionais. A gestão cotidiana é um grande desafio que não será resolvido só com instâncias de tomada de decisão, por mais democráticas e participativas que elas sejam. Também precisamos fazer a regulação do mercado e dos oligopólios de prestação de serviços que existem hoje em várias regiões do Brasil, seja de operadoras de planos de saúde, seja de cooperativas médicas. E essa regulação não pode ficar só no plano normativo. Precisamos regular o mercado privado a partir da prestação de serviços públicos.