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Entrevista: 
Maria do Socorro Souza

‘Quem diz que a conferência foi partidária é porque tem posição a favor do impeachment’

Nesta entrevista, a presidente do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro Souza faz um balanço da 15ª Conferência, defende sua posição política em relação à conjuntura nacional e responde as críticas de partidarização e ausência de debates no encontro.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 08/12/2015 09h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Mulher, representante de usuários e militante de movimentos sociais ligados às populações do campo. Com esse perfil, desde a eleição, Maria do Socorro Souza gerou muitas expectativas sobre a sua atuação como presidente do Conselho Nacional de Saúde. O sucesso parece ter se confirmado: com um discurso interrompido por palmas quase a cada frase, Socorro foi ovacionada por um auditório lotado na cerimônia de abertura da 15ª Conferência Nacional de Saúde, realizada de 1º a 4 de dezembro, em Brasília. Seu protagonismo nos atos que mudaram os rumos da conferência como reação à ameaça de impeachment da presidente Dilma Rousseff não lhe tirou os aplausos da maioria, mas provocou protestos e críticas de grupos de militantes e movimentos ligados ao controle social na saúde. Nesta entrevista, Socorro faz um balanço da conferência, defende sua posição em relação à conjuntura nacional e responde às críticas dirigidas ao Conselho Nacional de Saúde. “Eu sou povo. Não sou intelectual que está na academia pensando a partir do próprio umbigo”, dispara.

Você afirmou, mais de uma vez, que a 15ª era a conferência mais popular desde a 8ª e que já tinha entrado para a história. Na sua avaliação, o que deve ser destacado como marco histórico desta conferência?

O caráter popular e o caráter político. Eu colocaria o popular porque acho que os movimentos sociais têm o papel de fazer uma análise da realidade que não fica crivado só pelo setorismo ou pelo imediato. Ali tinha movimentos sociais com história de luta e pautas importantes, que também transformam as pautas dos conselhos, das conferências e da própria saúde. Eu acho que quando a gente coloca [apenas as questões da] integralidade e da universalidade não dá conta de colocar quem é o povo que o SUS tem que atender. Quando coloca a pauta da equidade, a gente dá um sentido também de enfrentamento à exclusão, à desigualdade, ao preconceito. A gente tinha ali povos de terreiro, povos ciganos, povos indígenas, povos do campo, da floresta e das águas, movimento negro, movimento feminista, pessoas com deficiência... Óbvio que sempre teve, mas a gente fez um esforço e colocou muito a exigência para os conselhos estaduais e municipais de que aqueles segmentos tinham que superar a cota dos 50% na paridade entre trabalhadores, usuários, gestores e prestadores. Mas por quê? Exatamente para que esses sujeitos políticos tragam pautas libertárias, colocando também questões do dia a dia que fazem toda diferença para a pauta da saúde: preconceito mata, violência contra as mulheres mata, lesbofobia, homofobia contra LGBT mata, a xenofobia também mata. Agora, é uma forma também de dizer que os movimentos sociais precisam ocupar mais esse espaço. Não só os partidos políticos. Eu acho que a gente está vivendo um momento da esquerda brasileira que exige um maior protagonismo dos movimentos sociais na política nacional. Os partidos políticos, ao ocuparem espaços de poder e estarem hoje reféns dessa agenda nacional do impeachment, do golpe e de uma política, do ponto de vista econômico, neoliberal, terminaram ficando um pouco na retaguarda ou na defesa do governo A, B, C ou D. Mas eu acho que, sem sombra de dúvida, ampliar essa base social, ir para as ruas... Quem foi para as ruas na abertura da Conferencia foram os movimentos sociais e, sobretudo, os movimentos populares. Então acho que teve sim essa direção política da nossa parte.

No artigo de balanço divulgado no site da Conferência, você afirma que, neste encontro, se “ousou fazer um novo jeito de mobilização em saúde”, como um passo à frente do “jeito de sempre”. Gostaria que você apontasse as novidades previstas e realizadas para a mobilização da 15ª.

Eu já ajudei a construir seis conferencias nacionais a partir do Conselho Nacional de Saúde, tanto conferencias temáticas – como saúde ambiental, saúde do trabalhador e saúde indígena – como três conferências nacionais. E muitas vezes o Conselho Nacional decidia por um caminho mais conhecido para que pudéssemos ter durante todos os dias da conferência maior controle. Porque a gente já enfrentou muitas conferências que viraram madrugada a dentro e não conseguiam fechar, e que ficavam polarizadas entre um ou dois temas, sobretudo pautadas por um ou dois segmentos. O nosso esforço primeiro foi de ampliar as vozes. Todo mundo participou da conferência e não houve patrulhamento ideológico. Houve tanto quem está dentro dos conselhos como quem está fora, tanto os que avaliam bem os conselhos municipais, estaduais e nacional quanto os que criticam os conselhos de saúde. Nós tivemos também uma outra inovação do ponto de vista de colocar na agenda o ir para as ruas. Não dá para fazer a disputa, o enfrentamento dessa pauta nacional da saúde, com tantos ataques — seja no Congresso Nacional, seja pelo lugar que ainda ocupa no governo federal ou governo estadual —, sem inovar, ir para as ruas, pressionar para dentro do governo e para dentro do Congresso. E sem uma estratégia também de pautar a mídia hegemônica. Segundo aspecto, também nesse sentido, é que nós fizemos muitas plenárias regionais para tentar trazer o recorte regional. É diferente você pensar a conformação do SUS na região norte, nordeste ou na sudeste. Isso, entretanto, não repercutiu tanto na etapa nacional. Tentamos inovar também com um espaço interativo onde muita gente que não ficou na conferência como delegado ou convidado pudesse estar presente: a tenda Paulo Freire, as práticas integrativas, a feira da saúde, a mobilização. Tivemos quase 5 mil pessoas na abertura e quase 6 mil pessoas quando a presidenta Dilma esteve lá, também com essa bandeira da democracia e saúde. Então, nós não restringimos a participação só a delegados e convidados. Inovamos inclusive no sentido de aumentar o numero de convidados. Nós tivemos 3200 delegados e mil convidados, sendo 100 deles inscritos pela internet, até para pegar o cidadão comum, com outro olhar, de outro lugar. E usamos o instrumento da votação eletrônica para tentar garantir prioridades para incidir no Plano Nacional de Saúde. Eu preciso avaliar melhor se essa estratégia deu certo ou não.  Porque houve um número de propostas muito maior do que a gente esperava, a nossa meta era chegar a 100, 200 para poder ter uma linha de prioridade para incidir mais nos planos estaduais e nacional de saúde. Essa avaliação eu ainda não consigo fazer.

Essa conferência trouxe algumas novidades na metodologia que, pela análise de alguns participantes ouvidos, acelerou o processo, mas diminuiu o debate. São exemplos: o fato de as mudanças nos grupos ficarem limitadas à supressão total ou parcial; e o fato de só poder haver defesa, nos grupos, caso houvesse destaque, impossibilitando que os participantes defendessem a manutenção ou exclusão das propostas. Qual a sua avaliação sobre isso?

Esta foi a conferência que levou um ano e meio de construção. Nós não fizemos uma proposta a partir do Conselho Nacional de Saúde, nós construímos com os conselhos estaduais e coordenações de plenária. Fizemos um planejamento conjunto, pactuamos compromissos de que eles teriam que fazer plenárias, conferências livres e pré-conferências e garantir que tivesse também movimentos historicamente excluídos na composição das delegações estaduais, tanto participando lá quanto vindo para a etapa nacional. Então a gente não fez uma proposta de cima para baixo, a gente construiu junto com os conselhos estaduais e tentamos que eles fizessem o mesmo com os conselhos municipais. Esse é o primeiro aspecto. Segundo: a participação de gente que veio pela primeira vez. Realmente tem um ganho com a renovação mas também tem algumas perdas.

Teve uma renovação grande?

Teve. Quase 40% dos delegados e também convidados. Nós tivemos também convidados internacionais, cerca de quase 30 pessoas de outros países da América latina. O que eu quero dizer com isso? Que nós, ao mesmo tempo que apostamos em outras representações, tivemos também pessoas que não estão no debate macropolítico da saúde e é óbvio que na hora de votar, isso faz, por exemplo, ficar contra [algumas propostas consideradas mais consensuais no movimento sanitário]. Um dos momentos em que eu senti vaia em relação à minha fala foi quando coloquei a crítica à redução da maioridade penal e o impacto disso diretamente na saúde pública brasileira. A gente tem que ver a conferência como um processo como um todo. Não é verdade que não houve debate. Tivemos muitas conferências livres: estudantes, farmacêuticos, mulheres, negros, população de rua, rurais... A agenda da 15ª Conferência Nacional de Saúde entrou na agenda dos movimentos. Então não dá para dizer que não houve debate. Porque a gente fica só olhando a etapa nacional, distanciada do conjunto do processo. Isso é um equívoco na análise. Segundo, nós tivemos um portal, inclusive incentivando para que várias iniciativas fossem lá colocadas para a gente ter uma dimensão também das várias iniciativas que aconteceram. A votação eletrônica tinha mais por finalidade tentar mensurar o quanto aquela proposta teve aceitação do público e ajudar a gente a hierarquizar prioridades. Essa metodologia pode não ter dado certo, a gente precisa avaliar melhor. Está ainda na relatoria final, lá para fevereiro ou março a gente consegue mensurar o peso dado, o valor atribuído no voto para cada uma das propostas.  Depois, nós temos a responsabilidade de começar e terminar uma conferencia. Aquelas propostas, a maioria não eram novas. Elas vêm de outras conferências, seja porque são uma reafirmação da sociedade em colocar bandeiras históricas  ou questões que não foram resolvidas, seja também em colocar ali propostas novas. Eu gostaria muito que a gente pudesse ali até colocar propostas novas numa etapa nacional, mas não é fácil, você tem responsabilidade de fechar a conferência. Se fôssemos acolher propostas novas ali, a gente não concluiria a conferência e, ao invés de 400 ou 300 propostas, teria 2 mil. Muita gente às vezes não se vê na forma como a proposta está formulada, o que [depende] de um nível também de informação, compreensão e interpretação de como a coisa está ali formulada. Muitas vezes a proposta está ali e o participante não se vê nela, até porque ele às vezes quer a realidade do seu estado, e não é assim: ele é delegado nacional, representa a sociedade brasileira, tem que ter também essa capacidade de leitura crítica para entender que numa formulação mais macro o que há são grandes conteúdos políticos para uma agenda nacional. Não é para uma agenda simplesmente corporativa ou de determinado segmento ou região. Mas, enfim, eu acho que, lógico que poderíamos ter mais debates mas, para isso, ia ter que ser uma conferência com mais tempo. Agora, eu não aceito essa crítica do ponto de vista de dizer que não houve debate porque eu acho que a gente inovou e muito em espaços de participação.

Não temos acesso ainda ao conjunto das propostas aprovadas com mais de 70%, que foram diretamente para o relatório final. Mas o acompanhamento dos grupos mostrou que em vários deles, propostas reconhecidas como da esquerda progressista (como a crítica à PEC que reduz a maioridade penal e a defesa de que recursos públicos só sejam destinados a instituições públicas) tiveram baixa votação ou mesmo foram recusadas...

Eu até no artigo [publicado no site da 15ª Conferência depois do encerramento] coloco as [propostas] que foram rejeitadas. Foi rejeitado repasse para OS [Organização Social] e oscip [Organização da Sociedade Civil para o Interesse Público], foi rejeitado considerar que o gestor seja presidente do conselho sem passar por eleição. Eu colocaria que [em relação às]  propostas de fontes para a saúde, e até para a seguridade o pessoal, a gente deixou claro para o governo qual era a principal mensagem que quem estava ali representando a sociedade afirmou: que [devem ser] fontes principalmente taxando quem tem mais e tentando fazer uma justiça tributária maior. A gente defendeu ali taxação das grandes fortunas, taxar mais as grandes movimentações financeiras. Tem uma proposta também de redução da taxa de juros, para enfrentar uma política econômica recessiva. Teve críticas também ao ajuste fiscal e uma das nossas formulações [fala] exatamente em priorizar as fontes de financiamento da saúde principalmente para a atenção básica e para a rede pública e estatal. Isso foi uma posição também colocada e aprovada.

Na mesa de abertura, diante dos gritos de “Fora Cunha”, você disse que a “institucionalidade” a impedia de repetir, mas que aquele era o seu grito. No ato em defesa da democracia realizado no dia 3 de dezembro, na abertura da plenária em que os participantes aguardavam a vinda da presidente, e na fala anterior ao pronunciamento da presidente, no entanto, você assumiu claramente um discurso e um grito de “Fora Cunha”, “Não vai ter Golpe” e “Dilma Fica”. O que mudou?

No ato do lado de fora eu estava como cidadã. Ali sou eu, Socorro, cidadã, e disso eu não abro mão. A outra coisa é que nos quatro dias da conferência as coisas se agravaram muito no país. Entre os dias 1º e 3 de dezembro, nós tivemos um agravamento da agenda que está tramitando, em especial, no Congresso, com uma ameaça concreta de golpe à democracia brasileira. Então nós temos um cenário que começa grave e que se agrava mais ainda durante a conferência. E eu não poderia ali... O que que você tem hoje? Essa agenda conservadora que pode representar o comando do país nos próximos anos no caso de um impeachment é economicamente neoliberal, socialmente muito retrógrada, de altas ameaças a grandes direitos fundamentais, direitos humanos e sociais e socialmente também muito crítica. Os interesses que prevalecem ali, e que também estão dentro de boa parte do governo, podem agravar a situação. Então, a gente não tinha outra escolha ali. A minha proposta era de que a presidenta Dilma tivesse ido na abertura. Isso foi inclusive pauta demandada pelo Conselho Nacional de Saúde. O Conselho Nacional de Saúde também entendeu que a presidenta tinha que ser convidada para a conferência. Aliás, nós fizemos o convite para a presidenta Dilma em abril deste ano, [para que] ela pudesse também apresentar propostas mais concretas sobre financiamento. Nós não tivemos uma resposta até o primeiro dia, tivemos depois. A situação se agravou. E do lado de fora da rua, eu sou cidadã. Uma coisa é quando eu estou ali também tentando falar em nome de uma coletividade. Agora, como cidadã, eu não posso me furtar. E a outra [coisa] é você compreender a gravidade do momento. A conferência foi clara: colocou saúde e democracia. E o momento ficou bastante grave. Depois, eu estou numa mesa de abertura, numa mesa de abertura, se você já coloca todas as radicalidades... Eu tentei dar o tom político da conferência desde o começo. Agora, também tinha um público novo ali, era importante que a gente conhecesse melhor o próprio posicionamento da maioria do público para ver se o que nós tínhamos como posição política era a posição da maioria. Se a maioria compreende que o conselho e a conferência tinham que se posicionar sim... Eu não tomei nenhuma decisão sozinha: o Conselho Nacional de Saúde desde abril colocou isso como uma tarefa para que a gente pudesse realizar, e [teve] também o próprio apoio dos delegados que foram ao ato e colocaram ‘olha, tem que pautar’. Então, esse é o papel da presidente.

Apesar da adesão da maioria, houve críticas à realização de um ato de apoio ao governo na Conferência...

Não ao governo. É para deixar claro: é contra o golpe à democracia brasileira e pelo Estado democrático. E isso significa hoje, sem sombra de dúvida, manter o governo que foi eleito. Não tem dúvida disso. Agora, as críticas ao governo, nós fizemos o tempo inteiro. O Conselho se posicionou contra o ajuste fiscal, se posicionou em relação ao capital estrangeiro, se posicionou em relação à pauta do Ato Médico, apoiou o Mais Médicos mas colocou uma agenda para os próximos dez anos de valorização dos trabalhadores. Nós colocamos uma crítica ao corte que foi apresentado, que não fecha as contas de 2015, e a PLOA [Proposta de Lei Orçamentária Anual] que está no Congresso Nacional com um corte de R$ 16 bilhões.

O Conselho colocou esses posicionamentos onde?

Em resoluções e recomendações. Pode procurar.

Mas não na Conferência?

Não na Conferência porque o documento orientador da Conferência se pauta pelas recomendações e resoluções do Conselho. Ele não é uma formulação abstrata ou que venha de um grupo ou uma pessoa. Ele é uma formulação, um resultado de resoluções, recomendações e notas públicas do Conselho Nacional de Saúde. [Crítica ao] capital estrangeiro está lá, à PEC 451 está lá, a crítica ao ajuste fiscal é mais recente, mas tem resolução do Conselho, Ato Médico. Está lá.

De todo modo, delegados de vários estados e entidades consideraram que houve uma “partidarização” da conferência por parte do Conselho Nacional de Saúde que, composto por representantes de entidades de partidos diversos e tendo como presidente uma representante de usuários, não poderia fazer a defesa do governo, que também já teria sua representação no conselho pelos gestores. Qual a sua resposta a essa crítica?

Se você olhar hoje quem são os governadores contra o impeachment, nós vamos ter governadores do PMDB — como por exemplo o de Sergipe —, do próprio PSDB — como o do Paraná, Beto Richa —, do PT, que entendem que isso compromete a governabilidade do país e agrava a situação política e econômica. Se você olhar os prefeitos, também da mesma forma. Então, dizer que é partidária a questão do impeachment é não compreender o que está em disputa. E ali nós tínhamos dentro do plenário todas as representações político partidárias ideológicas. Todas. Agora, quem diz que [a conferência] foi partidária é porque tem posição a favor do impeachment a princípio. Porque não entender que nesse momento a tarefa maior da sociedade é em defesa do direito democrático e do Estado de direito, e dizer que isso é uma questão partidária, para mim já é uma posição um tanto que velada ou uma outra posição de querer reduzir a dimensão do problema e a tarefa que a gente tem que cumprir nesse momento.

Tem pessoas que não estão nessa militância. Aí eu concordo. Acho que teve gente que foi [a uma conferência] pela primeira vez. Tem gente que entende que enfrentar o problema da saúde é enfrentá-lo isoladamente ou setorialmente. Tem gente que não tem militância em movimento social, movimento sindical ou mesmo partidos políticos. E com certeza essa crítica, para essas pessoas, tem todo sentido. E eu vou respeitar quem tem esse olhar. Agora vou dizer para você o seguinte: eu não estou filiada a nenhum partido político, há mais de dez anos. Mas eu represento uma entidade que historicamente tem uma responsabilidade de disputar qual é o projeto nacional que nós queremos para este país: com soberania, Reforma Agrária, Reforma Tributária, reforma dos meios de comunicação.

Esse é também o projeto deste governo?

Esse é o projeto da minha entidade e que nós disputamos o tempo inteiro com esse governo. Em alguns aspectos foram respondidos, em outros não. Reforma agrária não avançou, questão indígena também está num grande impasse dento do Congresso Nacional e se o governo não assumir uma posição de Estado de defesa da Constituição, nós podemos ter um genocídio dos povos indígenas – não existe povo indígena sem território e é o que hoje está colocado. Nós fizemos essa crítica. Agora, não dá para também analisar isso só pelos momentos fortes da Conferência. Olha lá o discurso que eu escrevi, está no site do Conselho.

Uma outra linha de crítica que apareceu entre os delegados reconhece que um fato novo como a aceitação do pedido de impeachment agravando a crise política tem potencial para alterar uma conferência nacional de saúde, mas que isso deveria ser feito na forma de espaços de discussão, com debates que evidenciassem as diferentes compreensões do processo e articulassem com a conjuntura do campo da saúde. Para esses críticos, no entanto, a conferência interferiu na conjuntura apenas com atos de apoio, sem debate, sem acúmulo e sem produção de análises fundamentadas. Qual a sua avaliação sobre essa análise?

Não era esse o objetivo da conferência. O primeiro grande tema da conferência foi reforma democrática do Estado brasileiro, exatamente para colocar não só a conjuntura nacional mas essa macroconjuntura econômica, política... A gente fez um Encontro Latino-americano, trouxemos 12 países que estão tentando construir sistemas universais de saúde num contexto socialista ou países que estão vivendo como o Brasil um regime capitalista. Nós trouxemos o contraditório também para dentro do espaço. Porque é o seguinte: o povo também gosta de conferência quadradinha. Nós conseguimos fazer uma conferência que se antecedeu de plenárias populares, plenárias livres, pré-conferências... Todo mundo teve total abertura para fazer. A UNE [União Nacional dos Estudantes] fez, a ANPG [Associação Nacional dos Pós-graduandos] fez, o movimento sindical fez. Desconheço partido que tenha feito, por exemplo. A reforma democrática hoje tem que estar na agenda da sociedade. Porque o que está em disputa é o Estado de direito, é qual o Estado brasileiro que nós vamos afirmar. Nesse Congresso Nacional, a própria reforma política já colocou o quanto a gente está numa correlação de forças favorável. A própria coligação que o governo teve que assumir para ganhar mais uma eleição também mostra que o ponto de vista de um Estado que enfrente mais o regime capitalista e apresente perspectiva socialista também está comprometido. Eu não tenho dúvida disso. Nós estamos no Brasil tentando coordenar um regime capitalista, diminuir perdas para a classe trabalhadora, para a classe organizada. Agora, a perspectiva socialista não saiu de Maria do Socorro de Souza, não deixou de alimentar minha utopia e minha militância. E também de muitos movimentos. A esquerda brasileira fez uma opção – e aí não é só o PT – desde o enfrentamento da ditadura, fez uma opção de uma reforma democrática por uma transição e pactuação com várias forças políticas. Eu acho que esse momento coloca os movimentos sociais, e até a esquerda como um todo, numa posição de dizer: ‘olha, esse caminho que o Brasil optou é um caminho que tem limites, e nós estamos nos deparando com eles’. Compor com centro esquerda e até com setores de direita para poder ganhar o poder e administrar esse país, [fez com que] coisas ficassem pelo meio do caminho. Está aí a questão dos agrotóxicos, por exemplo. É o mínimo que a gente gostaria que o governo avançasse: banir os principais agrotóxicos que circulam no Brasil, que os agricultores utilizam com grande risco à sua saúde e à saúde da população que consome alimentos contaminados; assinar um Programa Nacional de Redução dos Agrotóxicos que poderia ter feito na conferência de segurança alimentar, poderia ter feito na conferência de saúde. Mas, na realidade, ficou brecado pela dependência econômica que o Brasil tem hoje do agronegócio, 45% do PIB vem do agronegócio. Então, eu quero dizer o seguinte: eu não deixei de apostar também na construção de um país socialista. Agora, na atual correlação de forças na América Latina e no próprio Brasil, nós estamos muito distantes dessa condição. E eu sou povo. Não sou intelectual que está na academia pensando a partir do próprio umbigo e não respondo só por mim. Eu respondo pela representação de um dos maiores segmentos dessa sociedade, historicamente excluído, que é o povo do campo, da floresta e das águas. Então, eu tenho lugar, eu tenho posição, eu tenho lado. E eu tenho clareza do que está em disputa hoje. E o que eu achei bom? Está lá a Dilma em todas as conferências agora. Ela tem que fazer isso, é papel dela. Ela foi eleita para governar para o povo e não para uma elite. Nossa aposta não foi só levar a Dilma, nós convidamos vários ministros de diferentes áreas para aquela abertura. Só foi o ministro Marcelo Castro, da Saúde. Mas convidamos mais de oito ministérios que têm responsabilidade sobre a saúde. Mas, enfim, eu acho que nós cumprimos uma tarefa importante numa conjuntura extremamente difícil e quem não reconhecer que então vá para dentro do Conselho Nacional construir outros processos porque é muito bom criticar do lado de fora, tá certo? Tem que ir para dentro.

Esses limites das alianças em que a esquerda apostou também estão sendo reconhecidos pelo governo?

Nós colocamos exatamente a Conferência como espaço político para que isso chegasse ao governo. Nós fomos para a rua pressionar o governo e colocar para aquele Congresso Nacional que ele não vai dizer qual é a agenda que a sociedade defende. Redução da maioridade penal, terceirização generalizada, ampliação do capital estrangeiro com fortalecimento também do setor privado, colocar regras, rédeas e obstáculos em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, inclusive a interrupção da gravidez naquilo que ela tem cobertura legal, mudar as regras da demarcação de terras indígenas: essa agenda não é da sociedade, essa agenda é dos interesses que a maioria dos parlamentares representam do ponto de vista econômico e político. E nós fomos para as ruas dizer isso. E é óbvio que nós queremos que ela repercuta para dentro do governo e para dentro também do Congresso Nacional. Nós trouxemos representantes que têm lutas importantes em 12 países diferentes – Venezuela, Bolívia, Chile, El salvador, Equador, Colômbia, Argentina, Uruguai... num outro esforço também de ter uma articulação e uma visão mais intercontinental. Eu desconheço conferência que tenha feito isso. Eu nem devo e nem quero fazer isso: quem vai reconhecer o esforço dessa construção é exatamente quem está de fora. Eu acho que isso já vem acontecendo. A minoria fez esse tipo de crítica, mas a maioria entendeu que o rumo e a condução política da conferência foi correto. Se a maioria entendeu isso, eu estou realmente satisfeita e vou cumprir meu papel em outro lugar, que nesse lugar realmente é muito difícil: [o Conselho Nacional de Saúde] não é um movimento, não é uma entidade, é uma esfera que tem todas as vozes. E apesar de todos esses nossos posicionamentos, uma coisa eu acho relevante: a gestão não esvaziou a Conferência. Em muitos lugares, em conferências anteriores, a gestão esvaziava. E ali é uma esfera pública, em que todos têm que ter voz, sem patrulhamento ideológico. Então não dá também para fazer conferência sem gestor presente. Porque se conferência é lugar para avaliar e pactuar compromissos, e dar continuidade a eles, a ausência de outro interlocutor como a gestão, que tem o poder de execução, já fica capenga. Então uma coisa que eu acho importante: com nossa autonomia e nossa forma de fazer conferência, não houve esvaziamento da gestão. A gestão veio também e teve que ouvir as críticas. Isso é a minha avaliação. Eu particularmente quero ouvir a avaliação das outras pessoas, dos outros segmentos, que não seja só a minha.

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