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Entrevista: 
Marcelo Freixo

'Esse é o debate que está em jogo: a quem irá servir o projeto de UPPs?'

O mandato de Marcelo Freixo, deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, tem acompanhado todo o processo de ocupação do Complexo do Alemão. Referência internacional na discussão sobre violência e direitos humanos, nesta entrevista ele analisa os episódios recentes e propõe um debate que questiona o modelo bélico de segurança pública, mas sem deixar de levar em conta o desejo da população das favelas de se ver livre da violência das armas. Essa população, explica, é vítima do tráfico e da ausência e truculência do Estado.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 03/12/2010 09h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 Esta operação tem alguma especificidade em relação às outras que vêm sendo feitas pela polícia do Rio? A polícia tomou mais cuidado do ponto de vista de preservar as garantias das pessoas?

Ela foi diferente pela dimensão que teve, não foi algo planejado. Foi algo que não estava no calendário da secretaria de segurança. A secretaria de segurança e este governo começaram o governo em 2007 com o discurso da guerra, do enfrentamento, da ação letal, não diferenciando de todos os outros anteriores. Basta ver o que aconteceu em 2007 no Complexo do Alemão. A polícia entrou, matou 19 pessoas, saiu e nada se modificou muito. Depois disso o governo percebeu que essas coisas traziam prejuízos para eles e, não por causa de uma tomada de consciência, começou a investir em uma lógica de ocupação de território visando muito também a um novo modelo de cidade que precisava ser construído em função dos jogos olímpicos. Ou seja, em função do calendário olímpico, há um projeto de cidade que nasce e perpassa a segurança pública. É aí que nascem as UPPs. Então, passam a um discurso que não é mais o da guerra, mas é o da ocupação, da tomada de território. E essa lógica das UPPs traz uma outra dinâmica do governo de dois anos para cá. O Complexo do Alemão não estava nesse planejamento, mas em função dos ocorridos na cidade, o governo tem que dar uma resposta e resolve entrar num espaço que, em termos armados, era muito complicado. Daí todo o aparato. Por muito pouco não tivemos um banho de sangue. Era possível acontecer e era algo que nos preocupava: muita gente foi mobilizada contra essa possibilidade de banho de sangue, que seria péssimo para o Rio de Janeiro, péssimo para todos. Então, não houve um banho de sangue porque houve uma fuga, porque não houve um enfrentamento, mas um aparato militar foi utilizado.

Mas então não houve um banho de sangue não por um cuidado diferenciado por parte da polícia, mas porque as pessoas fugiram?

A lógica no Alemão era a lógica bélica, com tanque, helicópteros, mas não houve enfrentamento porque não se trata de um crime organizado, é um crime violento. O varejo da droga é violento, é bárbaro, mas é desorganizado, não tem capacidade organizativa, não tem ideologia. Mas não é uma nova página na segurança pública, nós não temos uma outra polícia, como a mídia, principalmente a Rede Globo, quer colocar. Não houve um dia D. Isso é uma fraude midiática. Há a mesma polícia, ganhando a mesma coisa, preparada do mesmo jeito, sendo barata, corrupta e violenta; e uma sociedade que aplaude ações mais violentas. Você não tem uma mudança pedagógica dessa cultura, não tem novos ingredientes que possam dizer que uma nova realidade aconteceu no Rio de Janeiro. Houve uma tomada de território simbólico no que diz respeito ao varejo da droga e ponto. Nada além disso. É importante, é o Complexo do Alemão, evidentemente. Mas isso não nos dá uma nova polícia, não nos dá uma nova segurança pública e um outro Rio de Janeiro. Os desafios são muito maiores do que a tomada de território do varejo da droga, que é um crime desorganizado.

A população desses locais está de fato apoiando essas operações? Por quê?

Está sim. A população de fora, nós entendemos porque aplaude. Agora, a população local é a principal vítima da barbárie  do varejo da droga. Quem mais sofreu com as armas, com o tráfico de drogas do Alemão, foram os moradores do Alemão, não foi quem está fora. Então, ninguém mais do que os moradores do Complexo do Alemão querem o fim do varejo da droga, querem o fim dos fuzis na porta das suas casas, porque o varejo das drogas é violento sim, é tirânico sim e eles querem mais do que ninguém que se tire essa violência gigantesca da porta. É claro que eles não querem só isso: eles também não querem que a polícia entre em suas casas, quebre suas casas, que o Estado continue não colocando escola. Agora, querem o fim do varejo da droga porque é uma atividade muito violenta. A minha equipe está direto no complexo do Alemão e escuta isso. A maioria dos moradores quer a presença do Estado, não querem só a presença da polícia, mas querem em primeiro plano acabar com aquela situação de barbárie que existe ali, que não é responsabilidade só daqueles garotos varejistas do tráfico, é responsabilidade da relação que o Estado desenvolveu com aquele território até então. É bom lembrar que o governador Sergio Cabral teve 75% dos votos válidos no Complexo do Alemão. E então, não é um território tão estranho assim ao poder público, foi útil de alguma maneira.

O que aconteceu pode ser chamado de guerra, já que é esse o discurso da mídia o tempo todo?

Não, não pode. Isso é um absurdo e é, inclusive, muito perigoso. Porque você tira o debate da criminalidade e leva para o campo da ideologia onde de fato ele não existe. São muitos jovens com muitas armas nas mãos e nada na cabeça. Quando se trabalha com a ideia de guerra, se trabalha com a ideia de que o Estado tem que eliminar o seu inimigo. Isso é um entulho da ditadura, muito perigoso. Na verdade, você trabalha mais uma vez com a ideia do inimigo público, da vitória que você tem que ter sobre o inimigo e, com isso, desloca a questão do tráfico, que existe em qualquer cidade do mundo, para um debate da guerra. A guerra pressupõe disputa de poder, tomada de Estado e isso não acontece no Rio de Janeiro. Então , é um equívoco e traz consequências muito sérias de recrudescimento da violência por parte do Estado, pela ideia da eliminação do inimigo.

Há notícias de que as milícias já estariam ocupando o lugar do tráfico no Complexo do Alemão. Você tem informações a esse respeito?

Eu não recebi nenhuma denúncia nesse sentido. Acho pouco provável porque está tendo uma cobertura de imprensa muito grande, está tudo muito recente. Acho que as milícias não podem se organizar aqui e agora, mas é algo que se tem que estar de olho.

Mas há possibilidade de que outro comércio varejista de drogas se fortaleça ali?

O tráfico de drogas existe em todos os lugares do mundo — Paris, Amsterdã, Tókio, Zimbábue — e isso não diferencia o Rio de lugar nenhum. O que diferencia o Rio de outras cidades é o tipo de arma usado aqui, é o tráfico de armas. Este sim é um desafio muito grande que se tem aqui no Rio de Janeiro. O Rio é diferente de São Paulo não pelo consumo de drogas, mas pelo tipo de armas que se usa aqui. e então, o enfrentamento ao tráfico de drogas deve ser diferente ao enfrentamento ao tráfico de armas. O enfrentamento ao tráfico de armas e munição é que deveria ser prioridade da segurança pública. Mas aí é onde o crime se organiza, onde está o lucro dele, que não está na favela.

E como a população está organizada para acompanhar essa ocupação? Vocês têm recebido denúncias de abusos por parte da polícia?

A população organizada ainda não é verdade, mas as denúncias têm chegado aqui na comissão de direitos humanos, na defensoria pública, na OAB. Essas denúncias estão chegando, as nossas equipes estão lá acompanhando, mas é difícil esse controle sobre uma tropa tão grande também. Mas não é de se estranhar que as denúncias cheguem porque há um histórico de violência muito forte feita pelas forças policiais dentro dessa comunidade. Todo cuidado na fiscalização e no acompanhamento é muito importante neste momento.

Como você avalia a política das UPPs?

Eu sempre defendi o princípio do policiamento comunitário. Muita coisa tem que melhorar. Mas claro que as populações que vivem nas áreas de UPPs apóiam, pela mesma razão. Eu visitei todas as áreas de UPP e o que os moradores me dizem é: ‘Olha, é importante porque eu não tenho tiro na porta da minha casa, é importante que meu filho sai e volta da escola sem tiro na porta de casa’. E é claro que isso é importante. Seria arrogante da minha parte dizer para o morador que ele está errado. Da mesma forma, eu escuto de muitos moradores fora das áreas de UPP que querem a UPP lá, porque eles querem o fim da barbárie, querem o fim do enfrentamento entre polícia e tráfico, o fim do enfrentamento de facção com facção. É evidente que um olhar imediato do morador é de apoio. Agora, já há desgaste porque não subiu outra coisa além da polícia, os direitos sociais não chegaram, você não tem a coleta de lixo, saneamento, a escola, a creche, o posto de saúde — e essa seria a efetiva a presença do Estado porque a UPP até agora não é a constituição da soberania do morador da favela e sim a retomada militar do Estado em territórios que são estratégicos. Esse é o debate que está em jogo: a quem irá servir o projeto de UPPs? É melhor a polícia ocupar do que a polícia entrar, matar e ir embora. Isso é indiscutível. Agora, a quem irá servir esse projeto? Ao interesse privado nessas áreas onde elas estão estabelecidas? Ao morador da favela? Esse é o debate que temos que fazer na sociedade.