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Entrevista: 
Edson Saggese

‘A adolescência é uma abertura para a complexidade da nossa sociedade’

Logo depois do episódio em que o jovem Wellington matou 12 adolescentes e feriu outros 12 numa escola em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, Edson Saggese leu um editorial de jornal dizendo que era preciso tomar providências. Se pudesse dialogar com o autor, diz, perguntaria que providências seriam essas. Isso porque nada, segundo ele, pode prevenir situações como essas. O que pode ser feito, então? Entre outras iniciativas mais gerais, oferecer uma rede ampla e qualificada de atenção à saúde mental para crianças e adolescentes que procurarem ajuda. O que não pode ser feito? Tentar-se identificar antecipadamente um potencial violento nos indivíduos. Médico psiquiatra, com mestrado em psiquiatria, psicanálise e saúde mental e doutorado em ciências da saúde, Edson Saggese tem grande experiência em psiquiatria infanto-juvenil. Foi o criador do Centro de Atenção Psicossocial da Infância da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também é professor. Nesta entrevista, ele questiona a disseminação da ideia de bullying, discute as relações entre o sujeito e o contexto social e alerta para o equívoco da associação entre criminalidade e saúde mental.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 10/04/2011 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Como o biológico e o social se relacionam no campo da saúde mental?

É preciso, antes, fazer um comentário: numa tragédia tão brutal, a questão da doença mental e das suas origens é um pouco secundária. Porque essa ênfase pressupõe que só um louco faria isso. Nós já ligamos a criminalidade à doença mental, mas essa ligação está longe de ser alguma coisa provada. O que está provado por inúmeras pesquisas é que os chamados doentes mentais são muito mais suscetíveis a serem vítimas. Sabemos, por exemplo, que a polícia do Rio de Janeiro é provavelmente a que mais mata no mundo: ela é composta de psicopatas ou pessoas que têm algum tipo de transtorno mental? Naturalmente, há todo um contexto social — questões que têm raízes históricas, como a escravidão —, uma forma peculiar como o Estado brasileiro se estabeleceu e trata os mais pobres, que embasa essa criminalidade policial. Então, a primeira coisa a desconstruir é a ligação entre transtorno mental e crime. Existem criminosos doentes mentais? Claro. Mas existe um segmento muito maior de criminosos cujo crime é determinado pelas circunstâncias. E isso leva a um número de vítimas extremamente maior do que o crime cometido por um chamado doente mental. Mesmo que nós tivéssemos uma prova consistente de que o Wellington era, por exemplo, esquizofrênico, que é uma das possibilidades que mais se apontou, isso não obrigatoriamente estabeleceria alguma ligação com o crime. Esquizofrênicos podem delirar, sentir-se perseguidos mas, entre isso e matar alguém, há um caminho grande. A maioria das pessoas que eu conheci que deliravam e se sentiam perseguidas tinham medo, se escondiam, fugiam, protestavam. Reações violentas ocorrem mas não são majoritárias. Se fosse destacar um evento relacionado com esse crime, eu destacaria, por exemplo, o isolamento social desse rapaz. Com certeza ele era um rapaz com dificuldades de criar laços sociais. Por quê? Por que é doente mental? É uma hipótese, mas não temos nada de mais consistente sobre isso. Ele era uma pessoa com pouquíssimos laços sociais até mesmo dentro da família. A perda da mãe, que era a pessoa com quem ele mais mantinha laços, com certeza piorou muito seu processo de isolamento. Se, por hipótese, tivesse que destacar alguma coisa, seria isso e não o chamado bullying, que é uma coisa que virou uma impressionante moda. É a palavra mais citada na imprensa nos últimos não sei quantos meses independentemente do episódio de Realengo.

Eu queria que você falasse um pouco mais sobre o bullying. Qual a importância desse olhar mais preocupado com as opressões que acontecem dentro da escola? E quais os limites que isso pode impor às relações entre os jovens?

Eu acho que a moda do bullying vem um pouco dessa tendência que se estabeleceu de alguns anos para cá de não se acreditar no sujeito, numa certa possibilidade de o sujeito ter uma decisão que brote nele de uma maneira absolutamente singular. Nós precisamos ter uma explicação. E quanto mais simples for a explicação, melhor. Porque aí nós podemos evitar que isso ocorra. Isso gera um politicamente correto absurdo, que classifica todo comportamento geracional entre crianças ou entre escolares como bullying. Os filmes do Chaplin, por exemplo, atraem muito as crianças pelas cenas engraçadas, que são exatamente de pessoas ‘sacaneando’ umas às outras. Isso faz parte de qualquer sociedade humana. Há uma interação erótico-agressiva entre as pessoas. Eu acho que classificar tudo isso como bullying tem diversos problemas. O primeiro é o uso de uma explicação unilateral. O segundo é a não-separação entre aquele que, por alguma condição própria, se expõe demais a virar alvo das brincadeiras dos outros, e a maldade que seria inerente a esses outros, que seriam os autores do bullying. Certas pessoas criam condições de vulnerabilidade, que muitas vezes precisam ser vistas ou tratadas. Não se trata só de criminalizar ou punir aqueles que são autores do bullying. Existe uma via de mão dupla. É claro que quem exerce uma autoridade escolar tem obrigação de manter as coisas dentro de certos limites: uma coisa é você receber um apelido, outra é ser espancado porque é negro ou gago. Mas, hoje, a primeira tendência é qualquer tipo de acontecimento gerado por uma brincadeira escolar ser atribuído diretamente ao bullying, à falta de controle da escola. E uma outra coisa complicada em relação ao bullying é uma certa justificativa que esse significante passa a dar. Ou seja, se alguém é nomeado como vítima de bullying, isso começa, por exemplo, a servir de alicerce para uma vingança. Esse significante acaba, eu acho, tendo um papel negativo, ao invés de ser protetor. E eu acho que é um pouco o que acontece com o Wellington: nas mensagens que deixou, parece que ele se agarrou a isso.

Você identifica que um dos limites intransponíveis é quando a ‘brincadeira’ gera violência física ou se traduz em preconceitos que estamos tentando superar socialmente, como racismo, homofobia etc. Essas são situações mais facilmente objetiváveis. Há outros limites que se precisa observar?

Eu acho que nós, psis, somos um pouco cultores do impreciso: gostamos de ver as coisas caso a caso. Quem é responsável por uma escola ou quem é jornalista e precisa dar uma resposta à opinião pública quer outra coisa. O que eu acho importante é não sair criminalizando os comportamentos. É importante colocar limites sim. Mas também verificar o lado da vítima, observar em que a vítima contribuiu para isso. Não no sentido de culpabilizá-la, mas sim de protegê-la de uma forma melhor. Quem sabe ela precisa de algum tipo de assistência que não seja só essa atitude de dizer ‘Você é vítima mesmo e a partir de agora nós vamos defendê-lo desses agressores malvados’?. O que eu defendo é que nós não vamos varrer de nenhum ambiente uma certa agressividade das relações humanas, nem no trabalho, nem na escola. Pela dificuldade que nós temos hoje de estabelecer limites simbólicos, acordos, uma ética de convivência, tendemos a substituir isso por ações concretas: colocar detectores de metal na entrada das escolas, dobrar o número de guardas, contratar com um inspetor por andar, estabelecer penalidades severas para quem comete o bullying... E eu acho que essa é uma influência dos Estados Unidos.

Você fez referência a uma certa autonomia dos sujeitos, que precisa ser considerada. O que é o sujeito nessas relações?

Eu não diria que o sujeito é autônomo, que ele não tem seus condicionantes e, entre estes, o condicionante biológico. Mas existe uma margem do inevitável. Por mais que a ciência tenha progredido, está muito longe de chegar à complexidade de uma decisão do sujeito. Frente a uma determinada questão, o sujeito pode chegar a uma decisão de matar, como o Wellington. É claro que, para isso acontecer, existem muitas condicionantes. Mas elas não ultrapassam a faculdade de o sujeito decidir. Claro que a disseminação de armas na nossa sociedade, a violência que nós temos no Brasil, sobretudo na periferia das grandes cidades, mais a prevalência de mortes violentas, principalmente entre jovens e negros, tudo isso prepara o terreno para que essa atitude do Wellington seja uma opção. Mas em outra região, em outra época, também alguém toma uma decisão assim. De certa maneira, precisamos estabelecer uma diferença entre o que é previsível e o que é possível de ser prevenido. Eu acho que a ocorrência de um fato muito violento como esse é mais ou menos previsível porque fatos violentos ocorrem. Agora prevenir, no sentido de saber quais indivíduos seriam mais suscetíveis a fazer isso, é uma coisa muitíssimo difícil. Porque os indivíduos expostos a esses condicionantes podem tomar decisões éticas diferentes. Lembro de um artigo que eu li no Globo, logo depois do episódio de Realengo, em que o editorialista dizia que era preciso tomar providências. Se eu pudesse dialogar com ele, perguntaria: que tipo de providências? Se são providências diretamente ligadas ao caso, eu digo que é muito pouco provável que se tivesse sucesso. Se são providências muito amplas, gerais, em termos sociais, elas podem diminuir a probabilidade de um evento como esse acontecer. Por exemplo, retirar de circulação o número imenso de armas que existe; prover cuidados de saúde mental para os jovens de maneira geral — não para os ‘jovens violentos’ —, já que esse é um momento muito delicado da vida; melhorar de forma geral as condições das escolas — não em termos de segurança, mas em qualidade de ensino, pensando em coisas que possam atrair mais os jovens. Se é isso que é prevenção, ótimo. Se é achar que pode antecipar isso, eu acho um desperdício de tempo. Veja o grau de insanidade do que já foi proposto — não no Brasil mas na época de um desses assassinatos de escola ou universidade nos Estados Unidos: um desses defensores da cultura de armas disse que o problema era que as pessoas eram impedidas de entrar armadas na universidade porque se tivesse mais gente, eles teriam respondido à altura. O cara falou isso sério! Aqui não se chegou a esse tipo de proposição, mas eu acho que colocar uma pessoa armada na portaria de uma escola é no mínimo discutível. Até porque numa situação como a desse rapaz [Wellington], o guarda seria apenas o primeiro a ser morto e ele teria mais uma arma para continuar.

Podemos identificar um mal-estar, sofrimento psíquico ou algo semelhante que seja próprio da sociedade brasileira contemporânea?

Com relação à violência, eu acho que é mais ou menos óbvio. É muitíssimo relevante o número de mortes violentas de jovens. Há o tráfico de drogas, a disseminação das armas, a falta de oportunidades de estudo para os adolescentes— o ensino médio é um gargalo na educação... Todos esses são fatores que influenciam a violência. Sobre o mal-estar, eu ainda estou aderido um pouco ao que o fundador do nosso campo, Freud, dizia: o mal-estar é inerente à civilização. Nós temos tipos diferentes de mal-estar em diferentes civilizações. Mas civilizar gera um mal-estar, alguma coisa que não é metabolizada pela cultura, que está fora da possibilidade de a cultura prover. Então eu acho que nós agora temos algumas questões características da nossa época, mas também não gostaria de fazer o tipo de raciocínio de que saímos do paraíso para o inferno. Uma delas, que eu já comentei, é a dificuldade de estabelecer acordos simbólicos, certos limites éticos. A diversidade de valores é muito grande e convive hoje praticamente sem guetos. Os meios de comunicação favorecem que pessoas das mais diversas maneiras de pensar estejam em contato. Mas você poderia dizer: e a época em que cada um era conservado, que sabia seu lugar, também não tinha seu mal-estar? Há essas pessoas que culpam a internet por tudo: esse rapaz foi instrumentalizado pela internet, existem grupos de psicopatas na rede para influenciar as mentes... É um pouco uma versão tecnológica daquela fala dos pais de ‘olha as más companhias’, ‘meu filho não pode andar com certas pessoas’. Na internet você encontra de tudo que existe na sociedade. Talvez o acesso seja mais fácil. Isso tudo gera uma certa dificuldade de estabelecimento de limites. A escola diz: ‘nós não podemos controlar esses garotos porque eles não vieram de casa com um mínimo de arcabouço ético”. A família diz: ‘a escola forma uns delinquentezinhos, não coloca limites’. Aí levam para os conselhos tutelares ou para o juiz, na tentativa de transformar isso numa coisa jurídica. Mas o alcance da lei também está limitado a fatos tipificados, como os crimes. Há outras questões de falta de limites que a justiça não pode dar conta. Acho que essa é uma característica um pouco da nossa época. Agora, pagamos o preço de termos mais liberdade. Pagávamos, em outras épocas, outros preços.

O que há de dificuldade específica nas relações sociais e de sofrimento psíquico na infância e na adolescência?

Eu vou me deter um pouco mais sobre a adolescência, até porque o que motivou essa nossa conversa foi o episódio de Realengo. A adolescência é uma criação dessas transformações sociais que nós vivemos. Não podemos falar em adolescência nas sociedades tribais, por exemplo. A sociedade individualista apresenta ao indivíduo, quando ele chega à determinada idade, um desafio para que ele dê conta de uma inserção naquela sociedade. Há tribos indígenas em que há rituais de passagem: o garoto tem que fazer uma prova de coragem, subir numa árvore e destruir coisas com a mão... E aí ele passa a ter o seu registro de adulto. Há culturas em que as meninas são recolhidas na época da menarca e ficam numa espécie de treinamento intensivo do que é ser mulher; ficam só convivendo com as mulheres mais velhas, confinadas durante um certo tempo até que saem para exercer seu papel de mulher naquela sociedade. Isso se transformou enormemente na nossa sociedade. Não provemos esses caminhos, essas etapas, esses rituais: as pessoas têm que descobrir por si mesmas. Um exemplo mais óbvio é como se pode ensinar na nossa sociedade o que é ser mulher, que é uma coisa que sofreu uma transformação extrema em muito poucas décadas. Até há pouco tempo a mulher era considerada quase como um animal doméstico, sob a autoridade paterna ou do marido, sem votar. Tudo isso faz com que se concentre sobre o sujeito de uma determinada idade, que coincide com as transformações que vão dar a ele um corpo adulto, a pressão para fazer muitas coisas: se separar da família de origem — ou, pelo menos, se não se separa, isso passa a ser uma questão para ele —; escolher, dentro das suas possibilidades, o que vai fazer na vida — com todas as limitações do Brasil, com toda a desigualdade, não se pode negar de que a faixa de escolha é muito ampla... E isso com certeza provoca um grau de sofrimento psíquico muito grande. Mas também, em certas circunstâncias, pode contribuir para que esse sofrimento psíquico atinja um grau que os psiquiatras podem identificar como doença mental, transtorno mental. É claro que eu não quero cair num sociologismo. Ao que se sabe hoje, tomando como exemplo uma doença mental grave, que é a esquizofrenia, não é esquizofrênico quem quer. Não são as circunstâncias que vão determinar se o sujeito é esquizofrênico; claro que as circunstâncias importam, mas é necessário, ao que se conhece — diga-se de passagem, ao pouco que se conhece — que há um potencial genético. Mas mesmo em gêmeos idênticos, univitelinos, a percentagem daqueles que individualmente se tornam esquizofrênicos quando o outro se torna é muito alta, mas não é universal. Há casos em que um se torna esquizofrênico e o outro, com o mesmo patrimônio genético, não. É uma história muito complexa. Esse exemplo é de uma doença mental grave. Mas existem outros tipos de sofrimento psíquico que não necessariamente necessitam dessa grande vulnerabilidade genética. Eu posso sofrer de ansiedade e muitas outras coisas que têm a ver com as dificuldades, interesses, a posição da adolescência. A adolescência é um pouco uma abertura para a complexidade da nossa sociedade. O que eu quero dizer com isso é que a situação do adolescente é um pouco paradigmática do homem moderno em geral. Ou seja, escolher seus caminhos; seus caminhos estarem, ao mesmo tempo, abertos e perigosos.

A sociedade contemporânea vive um processo de medicalização e psiquiatrização da vida? Qual o limite da medicalização de um sofrimento que é próprio da infância ou da  adolescência?

Podemos muito mais desconstruir certas crenças do que dar receitas. Eu defendo uma oferta de cuidado de saúde mental muito mais ampla do que a que temos hoje para crianças e adolescentes. Mas eu não defendo que se possa sair à caça de sinais precoces dessas doenças – ‘olhe, ele não está doente hoje, mas, com essas e essas características, teremos um esquizofrênico aí’. Eu nunca me convenci de que isso seja possível. As pessoas fazem um outro caminho: depois de identificado um caso de algum transtorno mental, lembram que o indivíduo, aos oito anos, tinha determinado comportamento. Bom, a posteriori é fácil, mas eu não me convenço de que fazer o caminho inverso seja o certo. Seria muito bom se as pessoas tivessem uma oferta muito mais razoável de serviços para que, uma vez manifestadas questões que indicam um certo sofrimento ou transtorno na adolescência, tivessem aonde ir e fossem bem atendidas. Isso precisava ser melhorado. Outra questão difícil é que, quando dizemos isso, a interpretação é que os serviços, no Brasil, são uma porcaria. Não é assim. O Brasil vem progressivamente melhorando em todas as etapas de cuidado de saúde. Mas é claro que é absolutamente insuficiente ainda. O Brasil estabeleceu um sistema de saúde mental chamado Caps (Centro de Atenção Psicossocial). Há vários Capsis (Centro de Atenção Psicossocial Infantil) espalhados pelo Brasil. Há dez anos, eles praticamente não existiam. Mas ainda é muito insuficiente. O que eu defendo é um investimento maior na oferta de recursos para que essas pessoas possam procurar e, nesse caso, terem resposta. Esse é um lado da questão. O outro é o da medicalização, que é também um desdobramento daquela tendência a dar respostas simples para problemas complexos. E que eu acho que também tem uma linha direta com a maneira de ver as coisas da sociedade norte-americana. Um problema paradigmático disso é a chamada hiperatividade, ou transtorno de déficit de atenção por hiperatividade. Um fracasso escolar, uma dificuldade de entendimento escolar, obviamente podem ser causados por muitos fatores: a qualidade da escola, o ambiente familiar em que a criança ou adolescente vive, as dificuldades sociais inerentes ao transporte, aos meios de subsistência daquela família, problemas de base biológica... Mas há toda uma tendência de que, se o aluno está disperso, ele tem uma doença, transtorno de déficit de atenção, e esse problema pode ser resolvido com medicação, o que nos dispensa de toda essa complexidade. A professora acha que aquele garoto é hiperativo, a família aceita, leva ao médico, que confirma, e aí ele volta para a escola. Provavelmente não vai adiantar nada na imensa maioria dos casos. Não que não existam crianças com dificuldade de atenção mesmo, que são hiperativas. Mas, mesmo entre essas crianças, algumas respondem a um estimulante — como a ritalina, que é o mais usado no Brasil —, as outras não. Você tem uma família em que o pai é alcoólatra, chega bêbado, bate na mãe e a criança participa disso. Qual a racionalidade de se achar que a hiperatividade daquela criança está relacionada a alguma outra coisa que pode ser combatida com uma medicação? Não faz sentido. Desperdiçam-se recursos, utilizando mal uma medicação que, para algumas crianças — talvez 10%, 5% —, poderia ter alguma resposta. Os bons psicofarmacologistas de crianças e adolescentes, aqueles que lidam com remédios, dizem que, ainda que a medicação seja necessária, praticamente nunca ela poderá ser a única resposta para os problemas daquela criança ou adolescente. Se não se ajustarem as questões da escola, familiares, se não se ouvir a criança ou adolescente para ver o que acontece com ela, não adianta. Então, existe uma questão quantitativa e outra qualitativa: nós temos poucos serviços que prestam atendimento a crianças e adolescentes e, desses, uma boa parte qualitativamente é ruim porque só sabe fornecer respostas muito unipolares para isso. Porque elas são as mais fáceis.

Existem políticas públicas desenhadas ou já implementadas de integração dos Capsis, por exemplo, com as escolas?

Existem, mas a questão é que a distância entre o que foi planejado e o que na prática ocorre é muito grande. Aliás, antes de responder a essa pergunta, eu queria fazer um comentário: os Capsis têm no nome um viés do qual eu discordo, porque só diz que é da infância, mas deve acolher até os 18 anos. E a adolescência? Freud dizia que quem cede nas palavras acaba cedendo nos atos também. Se não coloca adolescente no nome, você, de alguma forma, mostra que alguma coisa naquele centro não está muito preparado para receber adolescentes. No centro que nós criamos, no final na década de 1990, no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, escolhemos o nome de Carim (Centro de Atenção e Reabilitação da Infância e Mocidade). Voltando à pergunta: os capsis foram pensados como o que se chama de organizadores da rede. Então, devem prestar assistência àqueles que procuram, lá dentro dos capsis, medicação, reabilitação, psicoterapia... E também devem interagir com as escolas, com os conselhos tutelares e outros serviços, médicos ou não. Agora, é preciso ter pernas para isso. Quantos capsis há hoje na cidade do Rio de Janeiro? Eu posso estar meio desatualizado nesses dados, mas tenho certeza de que não há mais do que cinco. Isso numa cidade de 6 milhões de habitantes. Como se vai dar conta disso? Muitas vezes as equipes são boas, mas não dão conta. Nós estamos fazendo uma experiência agora em Niterói, com um projeto que visa disseminar na rede de cuidados de saúde uma estratégia de cuidados para adolescentes com sofrimento psíquico grave, não excluindo os capsis mas indo além deles. O programa chama pró-adolescer. Hoje mesmo começamos a discutir casos de adolescentes que têm isolamento social, muitos conflitos na família. Não estou dizendo que possamos pensar que esses adolescentes são os que se tornariam um ‘Wellington’ mais tarde. Isso seria contrariar tudo o que eu disse até agora. Mas é claro que, dependendo da maneira de enfocarmos o sofrimento psíquico, alguns casos que poderiam gerar problemas sociais mais graves vão ser reduzidos. Estou falando de responder a quem procura e não sair à caça daqueles que ainda não procuraram na intenção de identificá-los.  E isso é feito: há pesquisas que levam para o colégio um questionário para identificar, entre as classes, aqueles com hiperatividade e tratá-los. Isso sem uma queixa anterior. A ideia é: ‘não esperamos que eles venham a nós, vamos buscá-los’. É um pouco a loucura que o Machado de Assis aponta em ‘O Alienista’, que acaba colocando toda a população dentro do hospício.

Há diferença no tipo de sofrimento psíquico de adolescentes de acordo com a classe social?

Acho que não podemos generalizar o adolescente. Claro que ele tem características diferentes: o adolescente da cidade, do interior, pobre, rico, o meio intelectual. Mas eu tendo a crer que essas diferenças são cada dia menos relevantes, porque eu acho que nós participamos de uma certa comunidade sociocultural muito comum, sobretudo pela generalização, universalização dos meios de comunicação. A televisão, a internet... Claro que não como os da classe média, mas os jovens pobres cada vez mais têm acesso e utilizam a internet e outros meios. A novela ou BBB são assistidos pelas classes altas, médias, baixas..

Mas as condições materiais não determinam? O tênis que se vê na propaganda é o mesmo, mas um pode comprar e o outro não...

O que eu quero dizer é que os conflitos são muitos próximos. A dificuldade de um pai de classe média de impor limites ao seu filho é muito próxima da de um pai de família de classe média. Eu não vejo uma diferença muito grande. Agora, claro: o capitalismo agenciou algumas questões diabólicas — ele não inventou, agenciou — como, por exemplo, a inveja, que é inerente à formação do sujeito. Ninguém pode existir sem passar pela inveja, invejar o outro faz parte de etapas de desenvolvimento. Da mesma forma, é a falta, a ideia de que nada nos preenche. É claro que a desigualdade social na posse dos bens materiais influi. Mas é de tal monta essa ideia dos bens de consumo que vêm para satisfazer a nossa falta — não satisfazem, e é por isso mesmo que o capitalismo funciona — vale igualmente para os pobres e para a classe média. Não sei como é para os ricos porque não convivo com eles, mas sei que, com certeza, não preenche a eles também, porque a falta é estrutural. Essa insatisfação é universal: aquele adolescente de classe média que tem acesso a muitas coisas está insatisfeito e quer ter acesso a muitas outras coisas. Se um adolescente é pobre e seu acesso a bens de consumo é muito restrito, as oportunidades para ele ter acesso a esses meios de consumo é muito restrita pela sua baixa escolaridade, pela dificuldade de arrumar emprego e muitas vezes ele tem que se expor a negócios escusos como o tráfico. Claro que essa é uma mistura explosiva e é uma das questões que alimentam essa enorme mortandade de jovens, negros e pobres no Brasil. Mas a insatisfação, eu vejo muito próximas nos adolescentes de classe média e nos adolescentes pobres.