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Entrevista: 
Jaime Breilh

‘Precisamos ter um novo viver, com taxas de crescimento menos agressivas, mas com mais qualidade’

PhD em Epidemiologia e mestre em Medicina Social, Jaime Breilh é professor e diretor da área de saúde da Universidad Andina Simón Bolivar, no Equador, e autor de vários livros. Nesta entrevista ele discute o conceito de determinantes sociais da saúde a partir da sua relação com os modelos de desenvolvimento e distingue os campos da saúde coletiva e da saúde pública no enfrentamento dos problemas do mundo atual
Cátia Guimarães, Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2011 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Entre os dias 19 e 21 de outubro, o Brasil sediou a Conferência Mundial de Determinantes Sociais em Saúde, que reuniu 1200 pessoas de 125 Estados-membros da Organização Mundial de Saúde no Rio de Janeiro. A despeito da magnitude e de alguns encaminhamentos práticos do encontro, houve muitas dúvidas sobre sua real capacidade de propor e incentivar mudanças mais estruturais. E essa discussão inclui a concepção de determinantes sociais adotada mundialmente e aceita pelo evento. Um desses críticos é Jaime Breilh, médico equatoriano que, ainda na década de 1970, muito antes de isso se tornar preocupação para a OMS, desenvolveu uma dissertação de mestrado sobre determinação social da saúde. PhD em Epidemiologia e mestre em Medicina Social, Breilh é professor e diretor da área de saúde da Universidad Andina Simón Bolivar, no Equador, e autor de vários livros. Nesta entrevista, além de analisar a Conferência, ele discute o conceito de determinantes sociais da saúde a partir da sua relação com os modelos de desenvolvimento e distingue os campos da saúde coletiva e da saúde pública no enfrentamento dos problemas do mundo atual.

 

O sr. diz que a noção de determinantes sociais da saúde foi elaborada primeiro pelo pensamento crítico latino-americano e depois sofreu um ‘retrocesso’ na concepção adotada pela OMS. O que mudou?

Na década de 1970 houve alguns trabalhos preparatórios, como os de Sergio Arouca  sobre uma nova visão da prevenção e os de Cristina Laurell  sobre as comunidades mexicanas, que foram aportes substantivos. A primeira vez que se reivindicou o conceito de determinação social da saúde foi na minha tese de mestrado, no ano de 1976, que foi publicada em livro em 1979.  Ela mais ou menos estabeleceu a primeira discussão sistemática e profunda sobre a determinação social da saúde e a categoria de reprodução social como elemento que define as dimensões da determinação social da vida e da saúde. Os anos 1980 foram um período de diversificação dos problemas: vários grupos da América Latina se especializaram em componentes da determinação social, alguns na saúde e trabalho, outros na teoria da gestão e na teoria da administração em saúde, outros em educação, em epistemologia. A partir de 2005, quando surge a Comissão de Determinantes Sociais em Saúde da OMS, com o suporte intelectual basicamente dos textos do Michael Marmot, a OMS assumiu o conceito de determinantes sociais sem, contudo, reconhecer a contribuição de 30 anos de trabalho latino-americano. Isso representou uma mudança fundamental de conceitos porque é uma forma de dizer que os determinantes são uma maneira de melhorar a causalidade, ou seja, que agora vamos encontrar as causas das causas dos problemas de saúde. Eu acredito que isso foi uma distorção do conceito original que a epidemiologia crítica latino-americana estabeleceu. Nós não estamos falando de fatores causadores, mas de processos históricos que geram os problemas de saúde coletiva. Então, há uma diferença, um confronto de paradigmas que não é a primeira vez na história que se produz. A visão dos determinantes está inscrita em uma epidemiologia social, ainda muito influenciada pelo positivismo, por uma visão linear e reducionista dos fatores que agora chamaremos de determinantes. Do outro lado, temos a visão de um pensamento crítico, social, profundo, que se fundamenta na economia política e em uma visão material da cultura, dos elementos da política.  Meu temor é de que esta Conferência, apesar de todo o esforço que o Brasil fez para defender um pouco a presença de um pensamento crítico e de um pensamento latino-americano, se converta simplesmente em uma forma de atualizar um esquema de hegemonia do velho pensamento em saúde, que agora teria novos nomes. Eu vejo isso com muita preocupação, pois se não há uma presença forte dos movimentos sociais, das organizações acadêmicas, das organizações políticas da América Latina e de outros continentes, vamos perder um instrumento muito forte de enfrentar essa etapa da humanidade que é de crise muito profunda da saúde. Vai haver uma declaração da Conferência, mas também haverá uma declaração paralela ou pelo menos um documento de posição da Associação Latino-americana de Medicina Social (Alames), onde estará um pensamento diferente, com alguns pontos de contato com essa declaração dos ministros, mas com o pensamento dos setores acadêmicos críticos, dos setores políticos e do pensamento científico mais avançado da América latina.


Por isso o sr. disse que estava um pouco desesperançado com esse evento?

Sim, porque eu vejo que o tratamento dos problemas continua muito superficial. Apesar de estarmos em uma Conferência sobre a determinação dos problemas, seguimos tratando dos efeitos. Uma coisa que resume o problema atual da determinação social da saúde é que o mundo inteiro está dominado por empresas gigantescas da agroindústria, da mineração, das finanças, dos campos-chave da economia e da vida. Há empresas inclusive na própria gestão da saúde — como a Fundação Gates e tantas outras que dizem que têm mais fundos do que a própria OMS. Então, se isso está em mãos de grandes corporações, seus interesses são os que vão induzir políticas de saúde, decisões de investigação, fundos de investigações, fundos para as escolas de pós-graduação. Então, o que me decepciona é que aqui, nesta Conferência, a visão crítica desse fenômeno tão importante praticamente está ausente, a não ser em eventos isolados onde estamos alguns latino-americanos ou algumas outras pessoas fazendo um trabalho de perguntas e de questionamento a respeito de uma proposta diferente. Eu vejo que existe o que Gramsci chamava de um grande processo de hegemonia: convocam-se as pessoas, inclusive jovens, servidores públicos, o setor oficial, os governos, e aí nos colocamos de acordo sobre certas questões — o que será a determinação social ou os determinantes sociais — e simplesmente voltamos ao mesmo de sempre, em um mundo que agora está muito pior. Não há uma mudança, uma influência sobre as universidades, sobre os ministérios no sentido de transformação, mas sim de adaptação à crise e isso me parece muito perigoso.


Quais são as relações entre saúde e modelos de desenvolvimento?

A determinação da saúde passa primeiro por certos fenômenos macro que impõem uma lógica a toda a sociedade. Que fenômenos são esses? Definitivamente, é o modelo econômico. E o modelo que temos agora não é simplesmente o capitalismo, mas o capitalismo acelerado, uma locomotora destrambelhada. Para poder acelerar a acumulação de capital nessa grande lógica da sociedade, estão-se pressionando os rendimentos dos trabalhadores, impondo condições mais graves de trabalho, utilizando tecnologias sem princípios de precaução suficientes. Então, esse processo de aceleração se faz inclusive sobre a base da pilhagem: ou seja, uma empresa, por meios fraudulentos, toma a terra, a água, os recursos vitais de um povo. Em toda a América Latina, as grandes corporações estão fazendo uma compra massiva de terra e água, estão também com processos transgênicos para definir um monopólio das sementes. Uma agricultura na qual a terra já não é sua, a água já não é sua, as sementes não são suas mostra a perda de soberania sobre a alimentação, e um povo que não tem soberania sobre a alimentação é absolutamente vulnerável. As pessoas estão condicionadas a viver dessa forma que não é boa para a sua saúde, com sistemas de trabalho cada vez mais perigosos, sistema de consumo baseado no desperdício, uma forma que não é protetora de um buen vivir, mas de um consumo comercial, despojada de recursos de defesa, de suportes de organizações protetoras coletivas e comunitárias. Você, como individuo, tem que se mover em uma margem muito restrita de condições, e estas condições estão produzindo doenças evidentes. Por exemplo, temos um crescimento descomunal do câncer, estamos com processos de deterioração genética, aumento de doenças transmissíveis como a tuberculose, que se tornou resistente, depois de alguns países terem começado a solucioná-la-. E por que há tanta resistência? Primeiro porque há uma incapacidade dos sistemas em manter uma terapia, um acompanhamento, apesar de todos os esforços dos programas de tuberculose. Além disso, devemos perguntar, por exemplo, por que há tanta resistência microbiana em geral — não só na tuberculose. Além de outras causas, é preciso atentar que estamos comendo carne de porco e frango que usam hormônios e antibióticos para aumentar a produtividade. Se você ingere permanentemente, em baixas doses, certos antibióticos, é possível que por aí se desenvolva uma resistência, que cada vez se torna pior como um problema de saúde pública. Então, a determinação social no nível desses processos gerais, dos grupos e das pessoas, vai fazendo com que haja adoecimento. Muitas vezes trabalhadores agroindustriais não sabem que têm um problema, porque estão ativos, mas estão gerando um câncer, uma toxicidade hepática ou uma anemia por intoxicação. Esses são processos ocultos que estão massivamente gerando uma patologia que vai incidir nos perfis epidemiológicos do presente e do futuro.

Precisamos pensar como fazemos na América Latina para gerar um novo modelo que seja produtivo, que garanta recursos, mas que não seja às custas do ser humano e da natureza


Um dos exemplos que o Brasil tem apontado como positivo na ação sobre os determinantes sociais da saúde são as políticas focais, que visam reduzir a pobreza e eliminar a miséria. Qual a importância e os limites dessas políticas para a saúde?

Tanto o governo brasileiro quanto outros da América latina caem em uma contradição quando, ao mesmo tempo em que estão tocando programas que têm uma franca vontade política de melhorar as coisas para que os têm menos, de corrigir as grandes iniquidades do passado, não são suficientemente fortes e enfáticos em controlar, por exemplo, as grandes transnacionais da alimentação, da produção agrícola, da mineração, da indústria em geral. Porque às vezes os governos pensam que é explorando os recursos naturais que vão ter dinheiro para os programas sociais. Mas não poderiam fazer isso sabendo que essa produção se dará à custa de efeitos contrários aos que estão tentando fazer os programas que tratam de corrigir exatamente o problema que esse modelo produz. Qual é o modelo de desenvolvimento real que devemos promover que não esteja contaminado pelo modelo civilizatório do capitalismo do século XX? Pois já entramos em um novo milênio e precisamos ter um novo viver, talvez com taxas de crescimento menos agressivas, mas com mais qualidade. A China está crescendo 10%, é o país do mundo que cresce mais rápido, entretanto, para fazer isso, teve que destruir toda a sua água, os bosques, criar situações de crise ecológica profunda, perder direitos sociais, permitir, inclusive, áreas de trabalho escravo. Os chineses não tinham uma crise alimentícia e agora há uma macdonaldização da comida chinesa, que era tão rica, tão diversa. Então, tem sido um desenvolvimento falso, um desenvolvimento econômico de índices abstratos, mas que no humano, no social, no epidemiológico, na natureza, é um desastre. Precisamos pensar como fazemos na América Latina para gerar um novo modelo que seja produtivo, que garanta recursos, mas que não seja às custas do ser humano e da natureza.


E é possível construir esse novo modelo?

Eu acredito que sim. Temos riqueza natural, muitas fontes de energia, as reservas de água mais importantes do planeta, a biodiversidade mais alta do mundo. Mas lamentavelmente os grandes poderes das grandes empresas ainda seguem no controle de tudo isso. Enquanto isso não mudar, essa riqueza será mal utilizada e dirigida para um modelo que não é de desenvolvimento, mas de deterioração crescente.

A defesa de sistemas universais de saúde e da saúde como direito de todos e dever do Estado são ‘bandeiras’ do movimento sanitário no mundo. Elas ainda dão conta do que se precisa mudar nas políticas de saúde?

São muito importantes, mas não são suficientes. São importantes porque no mundo continuará havendo sempre processos de adoecimento que precisam de atendimento, então, é preciso que haja bons hospitais, um acesso equitativo aos serviços de saúde e aos programas preventivos individuais. Nisso o Brasil avançou muitíssimo e eu creio que é uma fortaleza que o país tem — e, além disso, nesse avanço, o SUS incorporou algo bem importante, que são a gestão e a participação. Os conselhos de saúde brasileiros são uma das experiências que é preciso analisar com muito cuidado porque podem ser um caminho interessante a propor. E há muitas outras experiências, como a boliviana, com o chamado Estado integral e a equatoriana, com o quinto poder do Estado que é a participação do povo, agora com um conselho de participação cidadã. Mas eu acredito que ainda não foram cobertas essas outras dimensões da saúde, que não se esgotam com a palavra prevenção. Parece que sempre que dizemos prevenção pensamos em vacinas, mas eu me refiro a atuar no controle desses processos estruturais que causam tanto dano à natureza e aos seres humanos. Nenhuma experiência latino-americana abordou de maneira consistente, consolidada, ampla, nacional e integrada todo esse impacto. Existem interessantes experiências na agenda dos países, mas não existe uma consistente política integral de saúde. A universalidade não é só universalidade de acesso clínico e assistencial, é universalidade do Buen vivir, de um viver saudável. Se você não pode fazer esportes saudavelmente, trabalhar saudavelmente, ter um consumo racional, se é limitado em sua cultura e identidade, só porque tem acesso a um hospital e a um serviço de saúde, não quer dizer que você tem saúde. Todo esse conjunto de elementos são os determinantes estruturais da saúde.


No Brasil, existem os campos da saúde pública e da saúde coletiva. O sr. fala em epidemiologia crítica e em medicina social. Qual a diferença desses campos?

Tradicionalmente há uma divisão entre saúde pública e saúde coletiva. As críticas à saúde coletiva surgem em parte por desconhecimento do que foi a sua realidade, porque a acusação é de que talvez tenha sido feita muita teorização, boas pesquisas, mas que não há dimensão concreta de ação. Pode-se acusar a saúde coletiva de ser teórica e, assim, os da saúde pública seriam os práticos. Mas isso é falso. Vejamos um exemplo: se há uma criança com um problema agudo respiratório infeccioso, nesse momento eu não posso analisar a determinação desse caso, tenho que cuidar dessa criança com um bom atendimento clínico e talvez, em algum momento, bom atendimento cirúrgico. Mas é um erro definir que a análise sobre por que se produziu esse caso deve se limitar ao momento em que a criança chega à emergência do hospital. Existe também uma emergência coletiva, que não é tão visível assim. E isso não vamos atender com vacinação e serviços de atenção primária à saúde: será atendido modificando leis, melhorando o sistema jurídico urgentemente.  Por exemplo, como faremos agora para proteger do problema do câncer as mães trabalhadoras de agroindústrias do Equador, como faremos para protegê-las do aborto, da intoxicação, da má formação congênita, de uma série de problemas de saúde para elas e para as crianças. Já ocorreu uma situação de eu estar com meus alunos na zona rural estudando um problema de uma plantação de bananas e um avião estar fazendo pulverização aérea em cima de nós. Então, o que a saúde pública tradicional irá fazer esperando no hospital ou no centro de saúde com a atenção primária? Nesse caso, é preciso atuar no sentido de colocar uma regulamentação rígida para que as empresas não causem desastres. Outro exemplo: precisamos fazer mudanças imediatas e urgentes para defender a alimentação dos nossos países. Se em todo o território brasileiro se plantar soja para a exportação ou cana para o etanol, de onde vão tirar os alimentos para os brasileiros? E quem produz esses alimentos? Os médios e pequenos agricultores. Então, é necessário protegê-los, garantir crédito, proteger também o mercado nacional, o pequeno vendedor das cidades, para que os grandes centros comerciais não se apropriem de tudo. Isso quem vai fazer? A saúde pública tradicional, esperando no centro de saúde para vacinar crianças? Então, necessitamos urgentemente de ciência com conhecimento de causa. Necessitamos muito de uma epidemiologia do trabalho, uma epidemiologia de proteção do consumidor, necessitamos de um trabalho na área jurídica para que sejam modificadas as normas, necessitamos de pesquisas para termos técnicas, que a lei diga que os agrotóxicos serão classificados de determinada forma e que não poderão ser utilizados de certa maneira. Nesse caso dos agrotóxicos, o Brasil avançou muito graças à academia, às boas pesquisas que esse país tem sobre os agrotóxicos. A legislação brasileira chama esses venenos de agrotóxicos, outros países continuam chamando de pesticidas ou herbicidas, o que é um erro. Então, como podem dizer que isso não é prático, que não é importante para modificar a saúde? O que acontece é que há pessoas que ignoram que o mundo da saúde vai além dos hospitais e dos centros de saúde.

A ideia de determinantes sociais da saúde aparece muitas vezes relacionada com a de promoção da saúde, enfocando também hábitos individuais. Como essas duas perspectivas se relacionam?

Essa é uma das contradições mais importantes, porque isso parte do desconhecimento da diferença entre estilos de vida e modos de vida. O estilo de vida é um campo de livre decisão das pessoas, mas você não pode tomar decisões absolutamente livres porque você está determinado socialmente, portanto, sua classe social tem um modo de vida. Imagine uma senhora que tem problema de obesidade, é trabalhadora de uma fábrica com um horário de trabalho das sete da manhã até a noite, com apenas quatro dias de descanso por mês. Aí você diz a ela: ‘a senhora tem que fazer exercícios, andar de bicicleta’. Ela irá lhe responder: ‘em primeiro lugar, nunca tenho tempo livre, em segundo lugar, não tenho bicicleta, em terceiro lugar, no meu pouco tempo livre, tenho que lavar roupas dos meus filhos, cuidar da casa, etc’. Não considerar o modo de vida é uma maneira de culpar as pessoas do que é um problema estrutural. A mudança individual é importante, mas só é factível se existe uma mudança coletiva, e a mudança coletiva só é factível se existe uma legislação, uma proteção social, e ações que não são individuais. Então, são dois campos em que se deve atuar, mas não se pode deixar tudo nos efeitos e nas pessoas, porque o resultado disso é que os culpados de tudo são as pessoas.