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Entrevista: 
Cecília Coimbra

'Quando vai sendo produzido o medo, a insegurança vai, ao mesmo tempo, produzindo também os matáveis, os torturáveis'

Nesta última semana fez 40 anos da morte de Frei Tito, um frade católico, que foi torturado pela ditadura e não aguentou os fantasmas que ficaram dessas violências. A professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, também passou por isso e conta nesta entrevista o quanto esta prática ainda se faz presente. Para ela, diferentemente do que aconteceu naquele tempo, esta prática hoje é mais recorrente em uma parcela da sociedade, porque tem um viés de classe. Mas, Cecilia diz ainda que os meios de comunicação, que geram a sensação de medo, ajudam a construir também no imaginário da sociedade aqueles que podem ser torturados e até exterminados. Confira.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 17/08/2014 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O que pode ser considerado tortura?

Tortura é qualquer agressão verbal ou física, eu não divido em tortura psicológica e tortura física. Acho que qualquer tipo de agressão verbal ou física que tenta anular a pessoa, eu considero como tortura. Ela não é só feita pelos agentes do Estado. No nosso cotidiano, a gente acaba introjetando certas condutas de tortura. Essa divisão é extremamente errônea. No momento que seu direito está sendo violado é uma forma de tortura. Não há como medir gradação de tortura. A tortura é mais ou menos intensa. Cada sujeito é muito singular. E cada violação é diferente, dependendo das singularidades de cada sujeito.

Estamos em descomemoração da morte de Frei Tito, que foi cruelmente torturado e, depois de tantos fantasmas, se suicidou. Como estão os casos jurídicos de pessoas que foram torturadas?

Os casos de tortura daquele período foram muito pouco falados. Algumas pessoas que foram torturadas ou familiares de pessoas que foram torturadas e desapareceram pediram uma reparação econômica ao governo, o que eu acho que é um direito deles. Embora eu não tenha pedido porque acho uma questão ética. Eu não quero que nenhum Estado me pague porque nada do que eu passei é pagável. Como a gente vive num Estado capitalista, a reparação financeira acaba sendo importante porque, dessa forma, o Estado assume sua responsabilidade. Só que esta questão da reparação financeira, deveria ser em um final de um processo. E eu não estou falando de nenhum conceito de reparação revolucionário, estou falando de um que é determinado pela ONU, que diz o seguinte: reparar é investigar, ver o que aconteceu, dizer o que aconteceu, como aconteceu, quando aconteceu, quem são os responsáveis por estes acontecimentos como sequestro, tortura, desaparecimento e morte. E no Brasil isso ainda não foi feito. Apesar da existência da Comissão da Verdade Nacional e Estadual. Esses casos de quando, como, onde e quem são os responsáveis, acabaram sendo pesquisados pelos próprios atores ou seus familiares. O que o Estado brasileiro fez até hoje é mínimo, é precário. Na realidade, o que tem sido feito, que é muito tímido, é oficializar o que estas pessoas (atores e familiares) denunciam há mais de 40 anos.  Isso se oficializou, mas é perverso porque em momento nenhum se fala que isso foi feito pelos atores e seus familiares. Um exemplo disso: a reunião que houve há uma semana com a Comissão Estadual da Verdade em que a família do Raul Amaro Muniz Ferreira entregou um dossiê mostrando as pessoas que o torturaram e inclusive demonstrando, por meio de documentos, que ele foi torturado no Hospital Geral do Exército. E a grande mídia apresenta que a quem fez foi a comissão. É importante tornar oficial? É fundamental, mas é importante que o Estado diga quem foi que fez essa pesquisa.

Qual é e qual deveria ser o papel do Estado? Existe uma assistência à saúde mental dessas pessoas?

O Tortura Nunca Mais tem um projeto há 23 anos financiado pela ONU, que está terminando em 2014. Um projeto que a gente colocou o que cabe ao Estado fazer. Se ele viola, ele continua violando, tem que ser obrigado a reparar. É um paradoxo, sem dúvida. Hoje existe dentro do que ele chama de processo de reparação, que nós questionamos, a chamada clínica do testemunho. Temos muito respeito aos profissionais que atuam nesta clinica. Foram profissionais que atuaram na equipe clínica do Tortura nesses anos todos, mas discordamos de como este projeto vem sendo utilizado como fazendo parte de um processo de reparação no Brasil, porque ele é limitado, vem vinculado à comissão de anistia, tem uma duração de apenas dois anos, se não me engano. Enfim, uma série de limitações que são extremamente danosas pra um trabalho de apoio psicológico e assistência às pessoas. Hoje a gente está sendo procurado por várias pessoas que participaram não só das manifestações que foram presas e os chamados presos comuns que foram e são violadas pelo Estado.

As práticas de tortura deste período têm sido abominadas por grande parte da sociedade, mas, durante o período, as pessoas naturalizavam essa prática. O que mudou?

A tortura não foi invenção da ditadura. O Estado brasileiro sempre torturou, desde seu início. Não é por acaso que tivemos 300 anos de escravidão neste país. Alguns segmentos sociais sempre foram caracterizados como classes perigosas, como segmentos perigosos. Eu estou estudando isso, inclusive. O porquê é tão naturalizado na sociedade em geral, esse pensamento de que alguns merecem ser torturados, exterminados para minha segurança. Isso está presente em toda a história do Brasil, antes eles eram caracterizados como terroristas e hoje são caracterizados como vândalos e baderneiros. A criminalização feita, principalmente, pelos grandes meios de comunicação é uma coisa extremamente perigosa, na qual você vai produzindo a necessidade da tortura e de extermínio, em alguns casos. Muitos jornalistas não têm ideia do poder que têm os meios de comunicação, de produzir modos e meio de existir.

Hoje em dia estamos discutindo o novo código penal, que é completamente duro, onde as penas são duras. A sociedade pede isso. No preâmbulo deste código cita o caso do João Helio. Os meios de comunicação produzem o medo e o terror pra que você apoie medidas duras, e medidas permanentemente punitivas.

Em compensação, hoje em dia, ainda temos práticas de tortura que não são divulgadas ou são respaldadas, sejam elas ocorridas nas favelas, nas ruas, delegacias e presídios. Existe diferença entre os dois momentos? Complementarmente, há uma continuidade entre eles, ou seja, há algo que permanece das práticas do regime militar no atual regime democrático?

Existe. A ditadura inventou a figura do desaparecido. Ela trouxe essa ideia da Argélia e exportou para as ditaduras latino-americanas. E essa figura é presente hoje nas populações de periferia, populações pobres com números altíssimos de desaparecidos.

Outra questão é a transformação em lei em 1962, e que hoje é muito utilizada, dos chamados auto de resistência, onde você executa o sujeito como legítima defesa e depois registra que resistiu à prisão. Isso foi muito usado naquele período, onde se faziam aqueles teatrinhos. O cara era preso, torturado, levado para o meio da rua e faziam a simulação da prisão.

Enfim, tem uma série de dispositivos que foram utilizados na ditadura e ainda são utilizados hoje. Agora, o contexto é diferente. Não podemos dizer que estamos em uma ditadura, mas vivemos em estado de exceção dentro da democracia. Naquele período, se esses meninos fossem presos, eles não teriam habeas corpus. A gente não conseguia nem visitação. Eu fiquei no DOI-CODI mais de um mês e fiquei completamente ilegal. Assinei depois de um mês um pedido de prisão preventiva. Obviamente não podemos dizer que vivemos em uma ditadura, diferentemente das pessoas que moram em favela que vivem uma ditadura cotidiana. Mas a sociedade brasileira como um todo, apesar de fazermos crítica ao judiciário e temos que fazer, o contexto é diferente. Você vai produzindo figuras de acusação, vai produzindo frequentemente o dispositivo do medo, principalmente, nos veículos de comunicação.

A Vera Malagutti no seu livro ‘O medo na cidade do Rio de Janeiro’ mostra como você domina com a sensação do medo, como o medo e a tortura se tornam dispositivos de controle social competentíssimo.

Há mecanismos de combate à tortura no Estado brasileiro? Como funcionam?

Nós acompanhamos muito no início. E o que deu para perceber é que deixa muito a desejar, que fica muito de campanhas midiáticas de promoção política, eleitoreira e pessoal. O que a gente acompanha no mecanismo aqui do Rio de Janeiro, fazemos parte, inclusive, do comitê, mas, na realidade, ele tem poder muito pequeno. A gente sabe que ela continua acontecendo nos presídios, nos dias como as sextas-feiras, no horário em que chegam os presos novos, a tortura come solta. A gente até sabe os horários e locais. A visitação do comitê de combate a tortura é quase que permanentemente impedida por esse comitê, que é um pessoal implicado com a questão dos direitos humanos. A prática é precária, falta estrutura. E, enquanto isso, assinam mecanismo a nível nacional, ficam fazendo divulgações midiáticas, enquanto, a nível regional, por exemplo, só existe nos estados do Rio de Janeiro e Alagoas. No Rio de Janeiro, que a gente brigou que existisse, não tem nenhuma infraestrutura, nenhum poder de fiscalização. Ficamos quase que enxugando gelo. É importante que essa dificuldade seja divulgada, porque esse mecanismo fica de mãos atadas, sem infraestrutura e com pouco poder para fazer suas visitas.

Quem “pode” e “quem não pode” ser torturado hoje?

Ninguém pode ser torturado. A tortura não pode ser aplicada nem em animal peçonhento. Mas, a sociedade, por conta de todos esses mecanismos midiáticos, por conta de toda essa produção de subjetividade de existir, de perceber o outro, quando vai sendo produzido o medo, a insegurança, vai, ao mesmo tempo, produzindo também os matáveis, os torturáveis.

Para minha segurança o neguinho da esquina, pode ser exterminado, pode ser torturado. Os jornais dos grandes grupos televisivos mostram isso, pede punição, vai mostrando o horror, e mostrando as atrocidades que são feitas por um lado, porque aquelas que são feitas pelo Estado e seus agentes não são mostradas.  A informação é seletiva.

Ainda temos muita resistência em relação à divulgação dos arquivos da ditadura e também em relação ao que acontece nestes lugares à margem da sociedade atual. Como a publicização destes casos pode ajudar? E por que não acontece?

Eu publiquei um artigo no site do Tortura Nunca Mais sobre os acordos que foram feitos desde a época da Anistia, no final dos anos 1970, e depois, principalmente, em 1985 no governo já civil entre forças econômico-militares. São os grandes empresários que adubaram o golpe, que financiaram e apoiaram a tortura e ainda estão no cenário brasileiro. Civis e políticos que também endossaram a ditadura e que hoje estão no cenário brasileiro. E forças armadas de modo geral. Tudo em prol da governabilidade, por isso, as Comissões da Verdade são o que são.  Pouca verdade e nenhuma justiça. A gente tem acordos que foram feitos que impedem que esses torturadores sejam publicizados. Mas, temos que lembrar que falar daquele período também é falar de hoje, em que essa tortura traz viés de classe. É apontar que muitos dispositivos que foram sofisticados naquele período estão presentes hoje e nós aplaudimos isso.