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Entrevista: 
Marcelo Badaró

‘A organização sindical tradicional, embora importante, é insuficiente para a organização da classe trabalhadora'

Rodoviários, garis, operários da construção civil: o Brasil tem assistido a uma onda de greves feitas por trabalhadores cuja participação em movimentos organizados não era comum até muito pouco tempo. E nos episódios mais recentes, várias dessas categorias entraram em greve contra o seu próprio sindicato. Seriam ecos das jornadas de junho? Para Marcelo Badaró, professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) que estuda sindicalismo, a diminuição da insegurança no emprego, que fortalece a mobilização de categorias ligadas à iniciativa privada, o aumento da precarização e superexploração dos trabalhadores e o processo de "domesticação" de sindicatos e centrais sindicais são alguns elementos que ele traz para ajudar a entender o momento atual no Brasil.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 26/09/2014 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Temos visto greves organizadas sem sindicato ou mesmo contra os sindicatos das categorias, como foi o caso dos rodoviários em várias regiões do país. O que isso diz de novo sobre os sindicatos e sobre a organização dos trabalhadores?

Um elemento é o impulso muito forte dado pelas manifestações de junho do ano passado para formas de protesto variadas. É verdade que naquelas manifestações os sindicatos não tiveram papel relevante. No entanto, elas tiveram efeito tanto de demonstrar que era possível apresentar demandas de setores da classe trabalhadora brasileira através de uma manifestação mais contundente de descontentamento, quanto de estimular algumas categorias profissionais a irem à luta na forma trabalhista mais clássica de confronto, que é a greve. Junho também não surge do nada: tinha a ver, por exemplo, com a defesa de melhores condições de oferta de saúde pública e educação pública, reivindicações que há mais de uma década são levadas adiante por trabalhadores do serviço público dessas áreas. Ao mesmo tempo, essas manifestações estimularam greves como a dos trabalhadores da educação pública em vários estados e municípios do Brasil no segundo semestre de 2013 e agora novamente em 2014. Essas greves são quase sempre feitas por sindicatos que se mantiveram combativos. Há um outro fenômeno das greves, que também antecedem 2013, que são aquelas de categorias em que os sindicatos não se colocam a favor da mobilização dos trabalhadores e muitas vezes são feitas contra os sindicatos. Isso começa a acontecer com os operários da construção civil nas obras do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], tanto com as grandes hidrelétricas quanto com as obras para a Copa, já em 2011, mas vem com força em 2012. Esse é um fenômeno que vem acontecendo cumulativamente. Em 2012 nós tivemos 873 greves no Brasil, foi o maior número desde 1996. A segunda metade da década de 1990 e os anos 2000 foram períodos de recuo das greves no Brasil. Acho que esse fenômeno cresceu em 2014. Essas greves são feitas por setores que não têm uma tradição recente de muitas lutas e enfrentamentos e em que os sindicatos são completamente acomodados à ordem.

Há diferença entre o enfraquecimento dos sindicatos nos anos 1990 e nos anos 2000?

A década de 1990 prepara o caminho para o que vai acontecer nos anos 2000. Primeiro a gente tem que observar mudanças nas condições objetivas das relações de trabalho no Brasil. Foram anos marcados pelo crescimento do desemprego a patamares muito elevados, por toda a reestruturação na organização das relações de trabalho nas empresas privadas e nas antigas estatais que são privatizadas nesse período, e pela intensa retirada de direitos dos trabalhadores. Isso tem efeito muito negativo sobre a capacidade de mobilização da classe trabalhadora porque, obviamente, em momentos de desemprego muito elevado o temor das demissões é um freio nas mobilizações. A retirada de direitos cria uma fração cada vez maior da classe trabalhadora com relações de trabalho informais ou, mesmo no chamado mercado formal, cria relações precárias, com contratos temporários e terceirizações. Isso ajuda a entender como nos anos 1990 se domesticou um sindicalismo tão combativo como o do Brasil na década de 1980. Há um outro elemento que é a permanência de uma estrutura sindical corporativista montada, no seu aspecto mais geral, nos anos 1930, em que o Estado cumpre um papel de regulador da atividade sindical. Na década de 1990, novos mecanismos de incorporação de lideranças sindicais tiveram efeito muito perverso sobre uma parcela dos setores combativos da classe trabalhadora brasileira. Um exemplo são as chamadas câmaras setoriais, que ficaram famosas na época do governo Itamar [Franco] no setor automotivo, principalmente. Eram espaços em que trabalhadores, através da representação sindical, negociavam com os empresários e o Estado coisas como garantia de emprego para os trabalhadores da indústria automobilística em troca de redução de impostos por parte do Estado e compromisso dos trabalhadores de não fazerem greve. Especialmente as direções sindicais desse setor se mostram dispostas a negociar não grandes conquistas, mas o mínimo. Isso vai se repetir quando, na época de Vicentinho presidente da CUT [Central Única dos Trabalhadores], em 1996, se negocia o chamado acordo da previdência com o governo FHC. O Vicentinho chegou a aceitar uma proposta que trocava o conceito que regula a aposentadoria de tempo de serviço para tempo de contribuição, em troca da garantia da aposentadoria proporcional para os trabalhadores do setor privado, muito ameaçados pelo desemprego. Essa mudança pegou em cheio o que na década de 1990 era a grande maioria da classe, mais precarizada e informalizada. Esses mecanismos se somam à gestão tripartite de fundos públicos, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e principalmente o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), que foi criado nos anos 1980 para pagar o seguro desemprego mas passou a financiar também os cursos de reciclagem profissional. A partir da década de 1990, as representações sindicais, inclusive as da CUT, passam a participar dos conselhos gestores desses fundos. Assim a CUT, na segunda metade da década de 1990, altera completamente sua base de arrecadação: de uma maioria de recursos vindos da contribuição sindical voluntária, passa a ter quase 70% de seus recursos oriundos de projetos financiados, quase sempre pelo FAT. Isso gera um novo grau de dependência em relação ao Estado. Esse tipo de participação se estende aos conselhos gestores dos fundos de pensão das empresas estatais, em muitos dos quais estavam presentes os representantes sindicais. Quando um conselho entra num consórcio que passa a gerir uma empresa estatal privatizada, tem como interesse que essa empresa seja o mais lucrativa possível. Na década de 1990 as empresas enxugam seus quadros, promovem terceirizações, entram de sola no direito dos trabalhadores. Então, são trabalhadores gerindo fundos de pensão responsáveis por processos de precarização de setores da própria classe trabalhadora. Na década de 1990, o caminho já tinha sido, em grande medida, trilhado para o que acontece nos anos 2000, quando a CUT, antes a referência mais combativa, se transforma efetivamente num braço das políticas do governo federal. Lula fez campanha para que o Marinho se tornasse presidente da CUT em 2003 - quando a Central se opôs às mobilizações do funcionalismo público que protestavam contra a reforma da previdência que ele levou adiante - e, no ano seguinte, nomeou o Marinho ministro do trabalho. Embora Lula, no final dos anos 1970, fizesse críticas duríssimas à estrutura sindical corporativista, o que se fez de reforma sindical no seu governo passa principalmente pelo reforço dessa estrutura. Acho que esses são alguns elementos para entender por que os sindicatos não são capazes de dar resposta às demandas dos trabalhadores e eles apelam para as mobilizações de rua ou para as greves.

O funcionalismo público, menos ameaçado pelo desemprego, costuma fazer mais greves. A volta da mobilização de trabalhadores da iniciativa privada aponta uma semelhança com os anos 1980?

Acho que é difícil chegar a uma conclusão fechada sobre um processo que está em curso ainda. Mas, de fato, na década de 1990, as grandes mobilizações foram de resistência. E o setor que tinha, ao mesmo tempo, a segurança do emprego e uma ameaça mais brutal de perda de direitos era o funcionalismo público. Ao longo dos anos 2000, uma parcela expressiva também do funcionalismo público foi incorporada ao governo, pelo conformismo sindical ou pela via direta da saída de quadros da direção sindical para ministérios. A retomada de mobilizações já nos anos 2010, no funcionalismo público, expressa o fato de que essas acomodações já não estão conseguindo conter completamente esse setor. Por outro lado, no setor privado, a insegurança em relação ao trabalho não desapareceu, mas, de fato, é menor. A gente vive a partir de meados dos anos 2000 uma situação em relação ao nível de emprego muito diferente dos anos 1990. Essa é uma das explicações para a gente ver greves em maior quantidade no setor privado. Acho também que o acúmulo de tanta precarização das relações de trabalho explode em alguns momentos e manifestações. Quando os trabalhadores da construção civil param, claro que querem salários, mas muitas vezes param porque a comida que eles comem é estragada, porque muitos morrem por acidente de trabalho. É interessante que todas as greves nos últimos meses têm gerado protestos de rua. E esse protestos têm recebido uma certa simpatia da maioria da população, o que é também um elemento novo interessante. Todo aquele esforço dos meios de comunicação empresariais para desqualificar a mobilização dos trabalhadores não tem tido a mesma repercussão que em outros momentos. Quando os rodoviários param, isso causa muito transtorno. Mas o trabalhador que muitas vezes se locomove três horas na ida e três na volta para o seu trabalho numa cidade como o Rio de Janeiro, paga caro por esse transporte e viaja enlatado como sardinha, se identifica com aquela luta porque enxerga ali uma luta por um serviço que deveria ser melhor prestado.

Mas isso é acompanhado por um processo de criminalização formal: greves consideradas abusivas, sindicatos submetidos à multa, aumentando o sacrifício do trabalhador que resolve parar. Como essas coisas se relacionam?

Como a Constituição de 1988 consagrou o direito de greve, não era mais possível simplesmente decretar que uma greve era ilegal. Então, via Justiça do Trabalho, se criou o conceito de greve abusiva e começou-se a criar mecanismos como as multas sobre os sindicatos, ou o interdito proibitório, que são lideranças sindicais impedidas de se aproximarem do local de trabalho. Regulamentações foram baixadas por lei ou via jurisprudência, como determinações do mínimo de trabalhadores que têm que se apresentar ao trabalho, o tempo de antecedência em que a greve tem que ser comunicada, o mínimo de serviços que têm que ser oferecidos em áreas essenciais. Sempre que a gente ouve falar em regulamentação do direito de greve, está ouvindo falar em cerceamento desse direito. Interessante é que quando as manifestações são mais fortes, mais contundentes e recebem o apoio de outros setores da sociedade, isso tudo se quebra. Então, a correlação de forças é o único elemento que a classe trabalhadora tem hoje para tentar dobrar esse grau de criminalização dos seus movimentos.

Esse movimento de greves contra os sindicatos pode indicar que essa instituição tem data vencida?

Eu acho que não. Enquanto houver relações de assalariamento o sindicato tem um papel. Por outro lado, o que a gente observa ao longo da história é que muitas vezes os sindicatos tiveram um papel de conformação à ordem, de controle sobre a luta dos trabalhadores mais do que de mobilização. E nem sempre é possível ter uma mobilização sindical ascendente que se constitua em uma vanguarda ou um setor expressivo do movimento sindical com uma perspectiva mais combativa, como no Brasil nos anos 1980. Isso é quase exceção à regra. Mas nada indica que a gente não possa ter isso de novo. Diante do grau de fragmentação e precarização das relações de trabalho que caracterizam o momento em que a gente vive, a organização sindical tradicional, embora importante, é insuficiente para a organização da classe trabalhadora. De junho de 2013 para cá, ganhou destaque, por exemplo, o movimento dos trabalhadores sem teto, com ocupações urbanas e a luta por moradia. São milhões de famílias que não têm moradia digna no Brasil, não tem condições de pagar por um aluguel. Essa é uma demanda típica da classe trabalhadora, organizada por outro tipo de movimento. Eu acredito que é preciso criar cada vez mais vínculos entre esse tipo de movimento social nitidamente com sentido de classe e os sindicatos. Há um esboço disso, por exemplo, na proposta da CSP-Conlutas, que se propõe a ser uma central sindical e popular, reunir outros tipos de movimentos que não só o sindical.

Existem estratégias de resistência e solidariedade entre os trabalhadores que ajudem a equilibrar o poder econômico que torna a greve um grande sacrifício?

Equilibrar é difícil porque os recursos materiais são muito desiguais. Mas a gente conhece experiências de greve de solidariedade: quando uma categoria está sendo muito atacada numa greve e trabalhadores daquela mesma categoria em outros lugares ou de outras categorias se mobilizam em apoio. Outra possibilidade é a solidariedade cotidiana. Os sindicatos que têm maior arrecadação podem financiar as greves dos sindicatos mais frágeis ou as greves tocadas por grupos que não seguem a direção do sindicato. Isso não tem a dimensão que deveria ter porque falta justamente o organismo coordenador que possa facilitar, uma grande central sindical combativa, como a CUT foi nos seus primeiros tempos de funcionamento.

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