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O último servidor que apague a luz?

Apesar do discurso da autonomia universitária, governo quer impor escolha de Sofia para hospitais universitários: ou aderem à  EBSERH ou definham pela falta de trabalhadores
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 29/01/2016 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Manifestação contra a Ebserh Foto: Tânia Reto/Agência Brasil

“Essa foi uma decisão de governo. A ferramenta que o Ministério da Educação disponibilizou para as universidades para resolver a questão de pessoal foi por meio da EBSERH, tanto que já estamos com 40 mil pessoas concursadas. A contratação via RJU [Regime Jurídico Único], por uma decisão do Ministério do Planejamento, não acontecerá mais. Não haverá mais código de vaga RJU para as universidades”. A declaração é da vice-presidente executiva da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), Jeanne Michel. Ela explicita o cenário ao qual tem sido submetidos os hospitais universitários que não aceitaram transferir suas gestões para a EBSERH, criada em 2011 com a finalidade de gerir essas unidades. A adesão, no entanto, é facultativa, uma vez que pela Constituição, as universidades dispõem de autonomia didático-científica e administrativa.

Questionada sobre se a situação não significa na verdade uma chantagem, já que a contratação da EBSERH acaba sendo a única forma disponibilizada pelo governo para renovação da força de trabalho nos hospitais universitários, Jeanne é taxativa: ou os hospitais aderem à EBSERH ou reduzem o escopo de atuação. “Temos universidades que têm cursos da saúde e não tem hospital e utilizam a rede do SUS para fazer os seus estágios. Então, essa é uma alternativa que essas universidades também tem: reduzir o tamanho dos seus hospitais e utilizar mais a rede do SUS. Sempre há uma alternativa para garantir o ensino mesmo que não seja contratando a EBSERH”, diz. E acrescenta: “A autonomia da universidade é no âmbito acadêmico. Ela tem total liberdade para optar a forma como vai ensinar e onde vai fazer os estágios. Agora, do ponto de vista da gestão, é dada uma opção para facilitar a gestão dos hospitais”.

A Empresa administra hoje 37 dos 50 hospitais universitários do país. Entre os que não assinaram contrato de gestão com a EBSERH, nove pertencem à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ainda no Rio, a reitoria da Universidade Federal Fluminense (UFF) também quer transferir a gestão do Hospital Universitário Antônio Pedro para a Empresa, embora encontre forte resistência da comunidade universitária.

Além destes, segundo a EBSERH, o hospital da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) tem entraves burocráticos que o impedem de assinar o contrato, como parte da estrutura e dívidas vinculadas a uma fundação. Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também há um impeditivo legal uma vez que o prédio do hospital pertence a uma entidade filantrópica. Já o hospital vinculado à Universidade Federal de Porto Alegre, HCPA, usado como referência para a criação da EBSERH, também não vai aderir por já ser administrado por uma empresa de economia mista.

Os concursos mencionados pela vice-presidente da EBSERH estão sendo feitos pelo regime da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) para substituir a mão de obra terceirizada existente nos hospitais.

O Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, mantém hoje 200 leitos de atendimento. Com o atraso no repasse dos recursos do Ministério da Saúde, no ano passado, o hospital chegou a funcionar com 73 leitos, uma queda de mais de 60% na capacidade instalada da unidade. Segundo o diretor geral da unidade, Eduardo Côrtes, o hospital já teve 500 leitos em funcionamento e caso fosse concluída a reforma pendente de dois andares, a capacidade de atendimento saltaria para 780. No momento, há uma enfermaria de 64 leitos e um Centro de Tratamento Intensivo (CTI) com nove leitos estão prontos para serem usados, mas ainda não foram inaugurados por falta de equipes de trabalho. Côrtes caracteriza o discurso do governo via EBSERH como chantagem. “Em vista da difícil situação de saúde que o estado do Rio enfrenta, com o Hospital do Cérebro fechado, enquanto pessoas necessitam de neurocirurgia, um monte de pacientes necessitando de cirurgia de câncer,vem alguém do governo dizer que o critério para mandar gente necesária para abrir nove leitos de CTI e mais 64 leitos que poderiam ser usados para cirurgia é aderir a uma Empresa, sem que isso esteja escrito em lugar nenhum? Como cidadão isso me indigna”.

O professor reforça que a decisão do governo de não abrir concurso para os hospitais universitários fora da EBSERH é política. “Não há nenhuma lei que impeça o governo de fazer concurso RJU. A UFRJ e a comunidade do hospital já discutiram com a EBSERH amplamente e a proposta de adesão não ganhou aqui dentro. Nós avaliamos e achamos que a EBSERH não é boa para o país e nem para nós. À medida que a universidade transfere o seu hospital para uma empresa que, embora seja estatal, é de direito privado, perdemos a autonomia de fazer nosso próprio currículo. Por exemplo, eu não posso fazer um currículo de formação de médico generalista se a EBSERH decidir fazer um hospital cirúrgico porque hospital geral de clínicas dá prejuízo. A UFRJ não concorda e não aceita este tipo de pressão. Somos uma universidade grande, consumimos muito dinheiro público e nos sentimos na obrigação de refletir sobre propostas de governo. E esta é nossa avaliação”,pontua.

Autonomia às avessas

Um dos argumentos contra a transferência da gestão dos hospitais para a EBSERH é justamente a manutenção da autonomia universitária e o respeito a uma das finalidades dos hospitais: ser um espaço privilegiado para o desenvolvimento casado entre ensino e pesquisa. Na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), uma das primeiras a assinar contrato de gestão com a EBSERH, a transferência de um serviço do hospital universitário tem aumentado a resistência à gestão da empresa.

Há 25 anos, o Hospital Universitário da UFMA mantém dentro da Unidade Materno-Infantil um serviço que atende exclusivamente adolescentes – o Nasa – Núcleo de Atenção à Saúde do Adolescente. No local, trabalha uma equipe multidisciplinar que inclui obstetra, ginecologista, hebiatra [médico especialista em adolescentes], enfermeiro, assistente social, psicólogo e nutricionista. Anualmente, o Nasa atende em média 5,5 mil pessoas. Nos últimos dois anos, 20 adolescentes grávidas menores de 14 anos foram acompanhadas pelo serviço, que também tem como função ser um espaço de prática para os estudantes da UFMA.

A EBSERH decidiu que o Núcleo não pode mais permanecer nas dependências do hospital. A decisão causou revolta nos professores e funcionários que integram o serviço. “A EBSERH tem o discurso de que o Nasa faz ações básicas e que, portanto, deve ser retirado de um hospital de média e alta complexidade”, lamenta o coordenador do núcleo, o médico Fernando Ramos. “A superintendente da EBSERH esteve uma única vez no departamento de medicina ao qual o Nasa está ligado não para discutir o programa, mas para levar a informação da necessidade de retirada. Desde então, o departamento tem se posicionado contra, demonstrando a necessidade da continuidade, até por se tratar de um serviço de referência. E é tão contraditório porque em 2010 a própria EBSERH Maranhão faz uma cartilha à população informando a importância dos serviços do hospital e o Nasa é mencionado”, reforça.

A denúncia feita pela comunidade acadêmica do hospital do Maranhão ganhou força com as manifestações de apoio à continuidade do serviço pela população atendida. E extrapolou os limites do estado com uma nota de repúdio à decisão da EBSERH assinada pelas diversas entidades que compõem a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde. Para Fernando Ramos a situação evidencia a perda de autonomia frente à EBSERH. “Estamos discutindo aqui a quebra da autonomia da universidade. Esse projeto foi aprovado há 25 anos num conselho superior da universidade e a sua extinção só pode ser definida neste mesmo conselho. E a EBSERH, através de um ofício, determina a retirada do Núcleo alegando que se trata de um projeto de extensão que só faz atenção básica”, diz.

A vice-presidente executiva da EBSERH, Jeane Michel, reforça que o Núcleo de Atenção à Saúde do Adolescente sairá do HU por se tratar de um projeto de atenção básica. “O Nasa é um serviço que pertence à rede de atenção à saúde do próprio gestor municipal. Em comum acordo com o gestor, esse serviço não foi fechado, vai ser transferido para um outro local. E isso está sendo feito porque o perfil do hospital universitário é desenhado, em comum acordo com os gestores do estado e do município, em seu contrato com o SUS, para fazer prestação de serviços de alta complexidade. Os serviços voltados à atenção básica têm que ficar na rede de atenção básica. Então, o Nasa é caracterizado como um serviço de pré-natal e muito focado em ações de atenção básica. As pacientes do Nasa que precisarem de um atendimento especializado por estarem com gestação de alto risco vão continuar sendo atendidas regularmente no ambulatório do Hospital Universitário”, defende. Segundo ela, o espaço que hoje é ocupado pelo Nasa servirá à EBSERH na ampliação de serviços de alta complexidade demandados pelo SUS municipal.

No entanto, o coordenador do Núcleo e os professores que idealizaram o projeto discordam dessa caracterização. “O Nasa atende garotas menores de 14 anos grávidas que são consideradas pelo próprio Ministério da Saúde como tendo gravidez de alto risco, porque toda adolescente menor de 14 anos grávida é vista como de alto risco. O Estatuto da Criança e do Adolescente considera a gravidez nesses casos como estupro de vulnerável. Atende também adolescentes que já estão experimentando ou em uso contínuo de drogas, atende laços familiares fragilizados, meninos que vivem em abrigos, também meninos e meninas vítimas de abuso e exploração sexual, processos depressivos na adolescência, inclusive com tendências de suicídio. Tudo isso é atenção básica?” questiona.

O professor lembra ainda que o Núcleo contempla assistência, extensão, ensino e pesquisa. E é justamente esse aspecto acadêmico que é desconsiderado na decisão. “Os estudantes do 4º período e do estágio de medicina passam sistematicamente pelo Nasa”, reforça. Os docentes denunciaram o caso ao Ministério Público Federal. Embora a vice-presidente da EBSERH tenha garantido que o Núcleo continuará funcionando em algum outro espaço destinado pela prefeitura de São Luis, o coordenador do Nasa ainda não foi informado a respeito.

“Esses servidores, como os do Hospital Universitário da UFMA, ainda são vozes dissonantes que vão defender uma série de princípios dos hospitais. Então, há um resistência mesmo dentro daquelas unidades que são geridas pela EBSERH. Mas essas pessoas vão se aposentar e vai chegar um momento em que o hospital terá como trabalhadores apenas os vinculados à EBSERH. O dia em que isso acontecer, a universidade ficará totalmente refém, porque ela não terá dentro dos hospitais nenhuma voz que possa ter um posicionamento diferente”, alerta a professora do Departamento de Medicina Preventiva e do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Fátima Silianski.

Descontinuidade

Além do caso do Nasa, que tem sido apontado como um exemplo do descompasso entre os interesses da empresa e os da comunidade universitária, recai sobre a EBSERH a acusação de desrespeitar a democracia interna dos hospitais universitários, o que acaba gerando prejuízos no processo de ensino. A vice-presidente executiva da empresa rebate as críticas. “Os superintendentes dos hospitais são indicados pelos reitores dentro do corpo docente da própria universidade, isso tem uma razão que é justamente garantir uma ponte entre a academia e o serviço. Além disso, todos os hospitais da EBSERH têm na sua estrutura uma gerência de ensino e pesquisa que também é ocupada por um docente indicado entre as faculdades que utilizam o hospital, e o papel é justamente fazer a interlocução com os docentes para garantir e viabilizar as melhores condições de ensino e aprendizagem e de realização de pesquisa.”, defende. Ela argumentaque, além disso, existem formalmente outras instâncias de controle social e escuta, que são o conselho consultivo e a ouvidoria. “Sempre vai haver em qualquer comunidade os que estão mais satisfeitos e os menos satisfeitos”, sintetiza.

A professora Fátima Silianski aponta nesse aspecto uma das diferenças na gestão direta dos HU’s pelas próprias universidades. Os conselhos que com a gestão da EBSERH são consultivos, na administração direta das universidades são deliberativos. E a mudança não é apenas lexical, já que um conselho deliberativo tem poder de decidir, por exemplo, a manutenção de um projeto como o Nasa dentro do hospital universitário. Fátima participa neste momento do grupo de transição para a nova gestão da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), que recentemente empossou como reitora Maria Valéria Correia. Valéria, assim como o reitor da UFRJ, Roberto Leher, se elegeu com um discurso contrário à transferência da gestão dos hospitais para a EBSERH. E dentro do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes, ela obteve 80% dos votos. Fátima Silianski tem se debruçado sobre a situação do hospital da Ufal que está há dois anos sob gestão da EBSERH. “Os contratos com a EBSERH falam que a autonomia universitária tem que ser respeitada. Mas o que se viu na Ufal é uma retração dos órgãos da universidade. As faculdades que usam o hospital, principalmente as da área da saúde, não são mais chamadas, nem os alunos, nem os professores são chamados a participar da gestão democrática, que também é um principio da universidade. Já que eles dão o caráter de ensino ao hospital, essas pessoas perderam a capacidade de opinar sobre os modelos que são implementados, sobre as práticas, diretrizes, protocolos. Este conselho consultivo nunca foi instalado nestes dois anos “, destaca.

Segundo Fátima, essa situação incorre em outro problema, que é a não observância de critérios de formação dos estudantes da área da saúde. “As decisões sobre como aumentar os leitos de determinadas especialidades e reduzir de outras não tem se dado em função do ensino. Por exemplo, se vem aumentando a mortalidade no Brasil por determinada doença, então eu adapto a minha oferta de serviço a essas realidades epidemiológicas, porque os meus alunos, quando estiverem formados, vão se defrontar principalmente com estes aspectos. E não acontece assim, o ensino passa a ser secundário”, reforça.

Resistência

Os procedimentos de aprovação da transferência da gestão dos Hospitais Universitários para EBSERH têm sido marcados por muita resistência por parte dos trabalhadores, professores e estudantes. Pesa sob os gestores das universidades que são favoráveis à EBSERH a acusação de conduzirem processos antidemocráticos para a aprovação do contrato com a empresa. O processo mais recente e ainda sem uma conclusão é o da Universidade Federal Fluminense (UFF), sediada em Niterói. Nos dias 21 e 22 de janeiro, o diretor do Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap) decidiu realizar uma consulta eletrônica para legitimar a transferência da gestão para a EBSERH. Docentes e um estudante que tem assento no conselho deliberativo da unidade se negaram a participar do processo e, mesmo assim, tiveram suas mensagens questionando o método de votação consideradas como abstenções para que fosse atingido o quórum mínimo. Dessa forma, a direção do hospital considerou como aprovada por 10 votos a contratualização com a Ebserh. No último dia 27, uma liminar suspendeu a votação. A ação foi movida pelo sindicato dos docentes da universidade (Aduff-sind). O diretor do Huap, Tarcísio Rivello foi procurado, mas não respondeu ao pedido de entrevista.

“A forma como a universidade conduz os seus processos internos não é da nossa alçada. A única coisa que a EBSERH faz é nos colocar à disposição para participar de debates e audiências publicas, eu mesma fui a um debate promovido em Florianópolis. Nós fomos pelo menos cinco vezes a audiências públicas. E posso lhe dizer que muitas vezes os representantes da EBSERH têm sido hostilizados de uma forma vergonhosa para uma comunidade acadêmica”, respondeu a diretora-executiva da EBSERH, Jeanne Michel. Na Universidade Federal de Santa Catarina, última a aprovar a adesão à EBSERH, em dezembro de 2015, a reunião do conselho universitário foi realizada dentro do batalhão de treino da Polícia Militar.

Tramita no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4895) contra a criação da EBSERH movida pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. De acordo com a ADI, a lei de criação da EBSERH viola dispositivos constitucionais ao atribuir à Empresa a prestação de serviços públicos. O processo aguarda relatoria do ministro Dias Tofolli.