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EPSJV recebe o ministro Paulo Vannuchi para aula inaugural

Direitos humanos foram o foco da palestra para alunos dos cursos técnicos.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 18/03/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


 Desde o fim do ano passado, quando foi lançada a terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), o assunto tem pautado intensas discussões. Aproveitando o debate, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) convidou Paulo Vannuchi, ministro da secretaria especial de Direitos Humanos da Presidência da República, para conduzir a aula inaugural dos cursos técnicos em saúde, com o tema ‘Os direitos humanos como marco educativo para o processo civilizatório’. A aula foi proferida no dia 12 de março, no Auditório Joaquim Alberto Cardoso de Melo.



O ministro explicou que um dos importantes direitos humanos é o direito à memória – e que, portanto, é preciso recordar a história de suas violações, como as mortes e torturas que atravessaram o Brasil durante a ditadura militar. Assim, Vannuchi começou sua palestra lembrando que 2010, além de marcar o 25o aniversário da EPSJV, marca também os 25 anos da saída do general Figueiredo do poder e do início da redemocratização do país.



Contudo, ele afirmou também que, apesar da importância da memória, as falas sobre direitos humanos não devem se ater a ela, mas sim ter “alto astral” e apresentar a esperança de construir aquilo que ainda não temos: citando Hannah Arendt, Vannuchi disse que o presente é o fugaz momento entre o ‘não mais’ e o ‘não ainda’. “É claro que ainda não vai tudo bem. Mas é importante ter a percepção de que esse é um momento de afirmação. Nossa geração realiza hoje uma meta que era pouco provável: num sistema de repressão, mortes e tortura de companheiros, metade morreu no processo. Não era certo que seríamos vitoriosos, mas fomos. Na época, fomos derrotados, massacrados. Mas os derrotados de então estão falando hoje, à luz dos holofotes, expondo suas idéias, enquanto nossos torturadores estão se escondendo”, completou.



Direitos humanos e revolução francesa



Liberdade, igualdade e fraternidade: o ministro explicou que a revolução francesa de 1789 consagrou, nessas três palavras, a concepção do que seriam os direitos humanos, e questionou se a platéia já havia parado para pensar no significado de cada um desses termos. Quanto à liberdade, Vannuchi afirmou que ainda não se conseguiu uniformizar uma definição e que sua preferida é a da poetisa Cecília Meireles: “uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.



Em relação à igualdade, o ministro criticou a visão de que ela deve representar uma igualdade de oportunidades. “O que deve haver é igualdade de pontos de partida. Porque se a mesma oportunidade é oferecida, por exemplo, a uma pessoa que usa computadores desde os seis anos de idade e a outra que conheceu o computador aos 16 anos, em telecentros, enfrentando filas e precisando usá-lo por tempo limitado, não há igualdade nenhuma”, disse.



A fraternidade, de acordo com ele, vem da ideia de que dentro de uma mesma família ‘de sangue’ o respeito está assegurado, o que não necessariamente ocorre. “Então há a adequação para o termo ‘solidariedade’, a consciência de pertencimento à condição humana. E essa é a proposta dos direitos humanos: que qualquer sofrimento, dor, violência contra qualquer pessoa do planeta seja sentida por nós como se fossem a nós dirigidas”, explicou.



Vannuchi disse que é difícil articular o sentimento de solidariedade, a liberdade e a igualdade, e que até hoje ainda não foi possível construir isso. “Já nos séculos seguintes à revolução francesa os ideais de liberdade e igualdade se confrontaram. A burguesia fez uma armadilha e o novo movimento operário pisou como não devia: aceitou que os capitalistas ficassem com a ideia de liberdade e os socialistas com a de igualdade. Até hoje essa discussão se mantém. Mas não pode haver liberdade sem igualdade, como vemos no nosso sistema, nem a igualdade sem liberdade, que gerou as experiências socialistas de ditadura”, analisou.



Críticas ao programa



 Para Vannuchi, o que desencadeou a “reação raivosa” ao Programa não foi tanto a existência de temas polêmicos, como a união civil de homossexuais e a legalização do aborto, mas sim o “dedo na ferida”: a consciência de que até hoje o Brasil ainda não consolidou o processo relativo aos direitos humanos. Isso porque, em 1966, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou dois Pactos Internacionais sobre os Direitos do Homem (o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos), aos quais o Brasil aderiu em 1992, e, no ano seguinte, a ONU estabeleceu que cada país deveria construir um programa nacional. Embora já tenham se passado quase 20 anos e essa já seja a terceira proposta, o país ainda não conseguiu aprovar seu programa. Ele explicou então as críticas de quatro grupos principais: o meio militar, os latifundiários, a mídia e a Igreja Católica.



A proposta de criação da Comissão Nacional da Verdade – grupo destinado a investigar abusos cometidos durante o regime militar –, trouxe uma resposta negativa não só das Forças Armadas como também do ministro da Defesa, Nelson Jobim. Para Vannuchi, a reação é equivocada: “Os primeiros beneficiários serão o exército, a marinha e a aeronáutica, porque não é justo que milhares de pessoas ligadas a essas áreas e suas famílias carreguem para sempre as torturas, as mortes, as mulheres violentadas, por equívoco dessa transição entre passado e presente. Em outros países, como Uruguai e Argentina, os chefes militares já pediram perdão formalmente”, disse. A Comissão também será importante para que as famílias de mortos e desaparecidos tenham assegurado o direito à informação sobre o que aconteceu realmente. “O que menos importa é se vão colocar os torturadores na cadeia ou se eles serão perdoados. Mas é preciso que seja jogada uma luz completa sobre todos os fatos: quem matou quem, quando e onde, e como podem ser localizados os restos mortais das pessoas”, justificou.



Os latifundiários, segundo Vannuchi, criticam o Programa por acreditarem que ele se opõe ao direito à propriedade e pretende se superpor ao Poder Judiciário. O ministro explicou, citando o artigo 30 do PNDH-3: “O que o Programa diz é que deve haver um mecanismo de mediação pacífica de conflitos, sem desrespeitar o direito à propriedade mas sem passar pela via da criminalização”, disse.



Também em relação às repostas da mídia – tem havido críticas de que o Programa cerceia a liberdade de imprensa –, o ministro afirmou que se trata de novo engano: “O que se pretende é definir critérios editoriais de ranking de matérias e programas que envolvam direitos humanos, como os que tratam com naturalidade os casais homoafetivos ou portadores de deficiências. Além disso, que haja também punição para veículos que violem os direitos humanos – porque, de fato, há programas que fazem campanhas contra os direitos humanos”, explicou.



Por fim, o ministro falou de dois temas que têm provocado a “ira” da Igreja Católica: o aborto e a união civil entre homossexuais. “Vinte anos atrás, o Brasil viveu um debate parecido quando discutíamos o divórcio. Mas, hoje, quem lembra o divórcio como um problema legal? Os bons católicos continuam evitando o divórcio, mas a lei não tem que proibi-lo. A lei não pode proibir ou permitir nada com base em convicções religiosas, mas apenas em convicções científicas”, argumentou, e, falando sobre o aborto, lembrou que ainda não há comprovações científicas de que a vida começa na concepção. Quanto ao direito à diversidade sexual, Vannuchi disse que é preciso acabar com o tabu da sexualidade e permitir que as pessoas vivam livremente. “Os homossexuais são o único segmento da sociedade cuja dimensão não conseguimos saber ao certo, porque as pessoas nem sempre podem se assumir. Já houve melhoras, mas há muitas pessoas que não podem contar nem mesmo com a própria família. E esse não é o mundo dos direitos humanos”, disse.



“A vida é dura”



Após a palestra, durante o debate, o ministro foi questionado sobre as divergências que o programa provoca dentro do próprio governo e ainda em relação a governos estaduais e municipais aliados, como é o caso do Rio de Janeiro no que se refere à segurança pública: enquanto o PNDH-3 condena a violência policial e traz propostas como a formação em direitos humanos dos trabalhadores da segurança, o Rio ainda aposta em ações violentas. Vannuchi respondeu que “a vida é dura”: “É preciso tentar compreender a complexidade do processo, com todas as suas contradições. A contradição é parte constituinte de toda matéria e o governo Lula é portador de evidentes contradições”, explicou o ministro. E reconheceu: “O país da segurança pública dos direitos humanos é praticamente o contrário do que nós temos. É preciso que haja mudanças, como penas alternativas, um sistema aberto. Mas, no sistema que nós temos, se formos defender isso, vamos passar por um processo eleitoral em que, provavelmente, o eleitor vai escolher aquele que diz o contrário. Haverá uma eleição, e é preciso fazer um discurso capaz de sensibilizar maiorias, com o grau de consciência que o povo tem hoje. Quem está certo e quem está errado, só o processo histórico vai dizer”.