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Carreira no SUS

Para suprir carência de profissionais em cidades isoladas, grupo de trabalho começa a pensar em proposta de carreira para médicos, dentistas e enfermeiros
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 16/09/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

De acordo com o Ministério da Saúde (MS), a falta de médicos, dentistas e enfermeiros é uma das razões pelas quais em 500 a mil cidades brasileiras, sobretudo nas regiões norte e nordeste, a população não consegue ter atendimento permanente no Sistema Ùnico de Saúde (SUS). É com o objetivo de melhorar esta situação que um grupo de trabalho começa a pensar em uma proposta de carreira para que estes profissionais se sintam atraídos para trabalharem no serviço público de saúde nestas localidades. O grupo foi instalado nesta semana pelo Ministro da Saúde José Gomes Temporão e conta com a participação dos conselhos de gestores (Conselho Nacional de Secretários de Saúde - Conass e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde - Conasems) e de representantes das três categorias profissionais para as quais a proposta de carreira se destina, além do próprio MS.

A portaria ministerial 2.169, de 28 de julho de 2010 instituiu a comissão, que terá 90 dias para concluir os trabalhos. "A carreira incluirá médicos, enfermeiros e dentistas, ou seja, a equipe básica da saúde da família, entendendo que a população sequer tem acesso a esses três profissionais. Essa carreira é apenas para áreas longínquas e de difícil acesso. Esse é o diferencial, não será estendida a todos os médicos, enfermeiros e dentistas do país", explica Maria Helena Machado, diretora do Departamento de Gestão da Regulação do Trabalho em Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Degerts/SGETS) do MS, responsável pela coordenação do grupo de trabalho.

Para Maria Helena, a existência de uma carreira pode ser um incentivo para que esses profissionais se fixem nestes locais longínquos. "Esses profissionais serão atraídos do mesmo jeito que os juizes são atraídos para trabalharem no interior do país. Eles têm uma carreira nacional ou estadual e esta carreira assegura a eles, por exemplo, estarem por um tempo em locais longínquos e de difícil acesso com garantias de qualificação, de moradia, de uma interligação entre o que ele está fazendo e o que a capital está fazendo. Aderir a uma proposta de carreira nacional permite ao profissional ter certeza de que terá aumento salarial, acesso à educação permanente, a mudar de local de acordo com a necessidade do SUS", detalha.

O Conasems avalia que o trabalho da comissão será importante. "Hoje, o grande nó crítico da gestão municipal é justamente a fixação dos profissionais de saúde, sobretudo o médico. Isso é uma prioridade do Conasems: que possamos ter médicos em todos os municípios do Brasil com perfil adequado para atender às especificidades de saúde da população", avalia Elisabeth Matheus, assessora técnica do Conasems.

Elisabeth lembra que há uma sobrecarga muito grande por parte dos municípios na contratação dos profissionais de saúde. "A pesquisa do IBGE de 2005 aponta que quase 70% dos empregos públicos de saúde são de responsabilidade do município, 23% dos estados e 7% da união. Então, com o processo de municipalização, houve uma sobrecarga dos municípios e uma retração por parte da união e dos estados", aponta, destacando que o grupo de trabalho deve levar em conta as dificuldades dos municípios em contratar os profissionais. De acordo com Maria Helena Machado, a proposta é a de que os profissionais sejam servidores públicos federais, e, portanto, pagos pela União.

Quase cem municípios em estado grave

Um estudo elaborado recentemente pelo Observatório de Recursos Humanos em Saúde, do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (Nescon/UFMG) confirma a carência de profissionais em algumas partes do país. Os dados mostram que em 1280 municípios faltam médicos, enfermeiros e dentistas. Para se chegar ao resultado final da carência desses profissionais, o estudo utilizou três indicadores: o número de habitantes por médicos, a porcentagem de domicílios pobres e os índices de mortalidade infantil. Dos 1280 municípios identificados com carência, 783 possuem mais de três mil habitantes por médico. Outros 160 municípios possuem 1.500 a três mil habitantes por médico e uma taxa de mortalidade infantil 100% acima da média nacional. Esta proporção de médicos por habitante se repete em 337 municípios, onde há também 50% dos domicílios pobres e, em 22 deles, a taxa de mortalidade infantil também ultrapassa em 100% a média nacional.A partir do cruzamento dos dados, chegou-se à conclusão de que 91 municípios brasileiros, concentrados, sobretudo, na região norte, têm escassez alta e severa de profissionais. "Isso é para termos ideia de qual é a situação no Brasil e, se houver necessidade de algum tipo de priorização do governo, nós temos uma condição prévia de entender quais são e qual o volume destes municípios", explica o coordenador da pesquisa, Sabado Girardi.

De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), não existe uma proporção ideal de médicos por habitantes, e que, durante muitos anos, se divulgou equivocadamente que a Organização Mundial de Saúde considera a proporção de um médico para cada mil habitantes como ideal. "Não há um índice recomendável que possa ser generalizado, pois isso depende de fatores regionais, socioeconômicos, culturais e epidemiológicos, entre outros, o que varia de região para região, de país para país", diz estudo do Conselho apresentado nesta semana na Convenção Online em Recursos Humanos em Saúde, organizada pelo Nescon/UFMG. Entretanto, os dados do CFM apontam que a proporção média no Brasil girava em torno de um médico para 578 habitantes, o que mostra que vários municípios brasileiros estão bem abaixo da média nacional.

Para Sabado, a elaboração de uma carreira para incentivar profissionais a trabalharem nessas regiões é importante, mas não pode ser a única proposta para resolver o problema. "É uma medida que precisa estar junto com uma série de intervenções. É preciso pensar em medidas gerenciais, de sustentabilidade e de financiamento", comenta. Sabado menciona outra pesquisa, realizada pela professora Eliana Feijó, que exemplifica como há inúmeros fatores que interferem na fixação dos trabalhadores da saúde em determinadas regiões. "Ela cita que na Amazônia, o estado realizou um concurso em abril de 2010 com salário variável de acordo com a distância de Manaus: quanto mais distante era o município, mais o profissional receberia. Um generalista receberia valores entre R$10 mil e R$14 mil e especialistas entre R$ 14 mil a R$ 20 mil. E mesmo assim sobraram vagas. Neste caso, não conseguiram nem atrair o número de pessoas suficientes, muito menos reter estas pessoas. Então, é uma questão muito complexa", observa.

O professor lembra que recentemente a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um documento elaborado com o auxílio de pesquisadores de várias partes do mundo que apresenta recomendações para se combater a carência de profissionais na saúde. Um dos aspectos tratados no documento intitulado Recomendações globais 2010 é a formação de profissionais a partir do incentivo à criação de escolas no interior dos países, fora das cidades maiores. "A ideia da criação dessas escolas tem sido fortemente recomendada, porque aí, em geral, a pessoa não vai embora depois. Aqui no Brasil, temos algumas experiências que mostram que as pessoas expostas a esses conteúdos ou a realidades dessas regiões mais necessitadas costumam ir mais para esses lugares. No Amazonas, mesmo a Eliana Feijó mostra que 50% das pessoas que estão no interior do estado hoje foram formadas nos internatos rurais da Universidade Federal do Amazonas", relata.

Profissionais de nível técnico

Para Sabado, não só é preciso garantir a presença de médicos, dentistas e enfermeiros nos municípios com falta de profissionais, como também trabalhadores de nível técnico. "Esses profissionais aliviam estes estados de carência e diminuem o estado de insegurança ao qual a população está submetida. Então, é muito importante que se leve estes profissionais em conta", ressalta. O professor comenta que quando há a escassez de médicos, enfermeiros e dentistas, também há das outras categorias. Entretanto, quando se trata de avaliar o número de Agentes Comunitários de Saúde, por exemplo, se percebe que há mais desses profissionais onde há carência de médicos e enfermeiros, numa relação inversa.

De acordo com Maria Helena Machado, o grupo de trabalho também pensará na formação dos trabalhadores técnicos da saúde, ainda que não esteja prevista a elaboração de uma carreira para eles. "Esses profissionais são tão importantes quanto os médicos, dentistas e enfermeiros, mas eles não carecem de uma carreira em nível nacional porque existe uma massa de trabalhadores de nível médio e técnico no próprio município. O que existe é uma carência principalmente de qualificação. A própria população responde muito positivamente, algo difícil de conseguirmos com médicos, enfermeiros e dentistas, que são formados nas capitais e acabam se aglomerando lá e não voltando para os interiores", afirma.

Para a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Mônica Vieira, é importante implementar uma carreira para todos os profissionais, inclusive os de nível médio, para evitar, por exemplo, a contratação precarizada de trabalhadores. "O caso mais emblemático é dos agentes comunitários de saúde, que formam um contingente enorme, integram uma política que vem sendo priorizada pelo governo, mas são inseridos de forma precária. Para mim, carreira SUS deve ser uma carreira para todos os trabalhadores do SUS", questiona.

Mônica considera que é necessário fazer um debate ampliado sobre a saúde pública no Brasil. "Não vamos resolver essa problemática pensando em situações de forma separada, ainda que eu compreenda o esforço de resolver a questão da falta de profissionais em determinadas regiões. Mas também não vamos resolver pensando na saúde sozinha, é preciso pensar em que sistema e em que mundo estamos inseridos", reflete.

Para o Conasems, é preciso observar as diretrizes já aprovadas para a elaboração de um plano de carreira para todos os profissionais do SUS. Elisabeth explica que as diretrizes também foram pensadas em um grupo de trabalho, montado em 2003, e aprovadas na mesa nacional de negociação e em outras instâncias. "Não podemos defender que cada categoria profissional tenha uma carreira. Se estamos trabalhando na perspectiva do trabalho em equipe, da importância dos técnicos, dos agentes comunitários, do médico, do dentista, de todas as profissões da área de saúde, significa que todas são fundamentais e importantes, então por isso defendemos um plano de carreira único, mas que trabalhe as especificidades. Isso já aprovamos. Agora, precisamos lutar para que seja implementado", diz, ressaltando que a comissão montada atualmente para pensar em uma carreira para atrair médicos, dentistas e enfermeiros para municípios longínquos tem um objetivo diferente do de estabelecer um plano de carreiras para todos os servidores do SUS: busca apenas pensar uma política de carreira que atraia esses profissionais para os municípios com carência. No caso de um plano de carreiras, segundo ela, devem ser pensadas condições de trabalho, remuneração, políticas de formação para todos os trabalhadores da saúde pública.

Demandas históricas

No Brasil, já foram realizadas três conferências nacionais de recursos humanos em saúde nas quais foram aprovadas propostas como a realização obrigatória de concurso público para admissão de profissionais, políticas de formação, plano de cargos e salários, entre outras. "Nas conferências de recursos humanos e mesmo nas Conferências Nacionais de Saúde e documentos de atores importantes, este é um tema recorrente e prioritário, porque não dava para se pensar na consolidação do SUS seguindo as orientações do que acreditávamos que deveria ser uma Reforma Sanitária sem pensar na inserção dos trabalhadores nesse sistema. Mas, apesar de esse discurso ser recorrente, até hoje nunca tivemos efetivamente ações que conseguissem mudar essa realidade. Pelo contrário, após a Constituição de 1988, tivemos uma flexibilização do trabalho, inclusive no setor saúde", analisa Mônica Vieira.

A pesquisadora lembra que a proposta de isonomia, ou seja, o mesmo piso salarial dentro de uma carreira de trabalhadores também sempre foi uma bandeira do setor saúde. "São bandeiras de luta que não conseguem se concretizar. E aí continuamos reproduzindo que o médico é mais importante do que o enfermeiro, mas por quê? Isso não tem nada a ver com a Reforma Sanitária e o SUS como pensamos", critica.