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SUS + 10: novo fôlego por mais recursos

Conheça bandeira e desafios do movimento que planeja reacender a discussão do subfinanciamento da saúde
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 11/05/2012 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Após meses de preparação, mais de 60 entidades da sociedade civil reunidas no recém-criado Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública lançaram a campanha ‘SUS + 10’, que busca garantir que a União destine 10% de suas receitas correntes brutas para o Sistema Único de Saúde. A iniciativa, apresentada no dia 17 de abril em Brasília, segue os mesmos passos da Lei da Ficha Limpa – enviada à Câmara dos Deputados na forma de projeto de lei de iniciativa popular – e precisa coletar a assinatura de 1,5 milhão de brasileiros (1% do eleitorado nacional) em pelo menos cinco estados para chegar às mãos dos parlamentares. Em cifras atuais, a medida significaria algo em torno de R$ 33,5 bilhões a mais no orçamento do Ministério da Saúde, que depois de sofrer um contingenciamento de cinco bilhões este ano, ficou em R$ 72,1 bilhões. 
 
A briga é contra a regra de investimento vigente para o governo federal. Embora tenha sido recém-regulamentada, por meio da Lei Complementar 141 sancionada em janeiro deste ano, a norma diferencia a União de estados e municípios. Enquanto os dois últimos devem comprometer, respectivamente, 12% e 15% do orçamento em ações de saúde, a lei não fixa um percentual mínimo para o governo federal – o consenso gira em torno dos 10% que abrem essa matéria. Dessa forma, o orçamento anual do Ministério da Saúde é calculado segundo o valor investido no exercício anterior acrescido da variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB), que corresponde à inflação do período mais o crescimento da economia. Segundo contabilizam especialistas, essa forma corresponderia a 7% das receitas correntes brutas hoje.

“Os movimentos sociais em defesa do SUS sofreram uma derrota com a regulamentação da Emenda Constitucional 29 através da Lei Complementar 141. Estamos há anos lutando por mais recursos para a saúde e, com a lei, nós não os obtivemos, por parte da União”. A frase é do conselheiro Fernando Luiz Eliotério, coordenador da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS), mas poderia ter sido dita por muitos militantes do campo da saúde pública, que alimentaram por 11 anos – tempo de tramitação do projeto de lei que se transformou na LC 141 – a esperança de que a regulamentação da EC 29 avançasse na resolução do problema do financiamento. 

Foi assim que, algumas semanas após a sanção da lei, no calor da insatisfação com parlamentares e governo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se uniu à Associação Médica Brasileira (AMB) para anunciar a criação de uma ‘Frente Nacional por Mais Recursos na Saúde’, que, dois meses depois, desembocaria no Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública. A ideia resgatava a bandeira dos 10%, emulando outro movimento, o Primavera da Saúde, criado no ano passado para pressionar o Congresso a votar a regulamentação de uma vez por todas. Rapidamente, a pauta dos 10% conquistou o apoio de entidades diretamente ligadas à saúde, como o próprio CNS e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), mas não só: também aderiram organizações da sociedade civil como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), para citar algumas. 
 
De acordo com o conselheiro nacional de saúde Ronald Ferreira dos Santos, que também esteve à frente do Primavera, a nova campanha aposta no consenso para angariar o apoio de muitas entidades. “A estratégia adotada foi limpar a área em torno das divergências e aglutinar o máximo possível de organizações da sociedade que entendem que a saúde é subfinanciada. Hoje, entre os atores que defendem o SUS, existe um conjunto grande de temas divergentes, como a respeito da gestão, por exemplo. Buscar a proposta mais possível é uma tentativa de ter lastro amplo na sociedade para que a União repasse os 10%, que é a proposta original de vários movimentos desde o advento da Emenda 29”, analisa. 
 
O vice-presidente do Cebes, Alcides Miranda, complementa: “O importante é a convergência de que há subfinanciamento. Não se trata do falso dilema entre financiamento e gestão, nenhuma das entidades concorda com a armadilha de que ‘há dinheiro, mas a gestão é ruim’. A partir daí, temos a postura de trabalhar em torno do que nos une e discutir, no momento oportuno, as alternativas para garantir esse financiamento”.  

Mais recursos: de onde, para onde? 
 
De onde sairiam os recursos? A luta pelos 10% significa também marcar posição para que a totalidade dos recursos seja destinada ao setor público gerido diretamente pelos governos? Essas são algumas das perguntas cujas respostas somente a correlação de forças construída ao longo da campanha será capaz de pontar. Isso porque, hoje, o consenso em torno do subfinanciamento tem unido desde militantes a setores empresariais. 
 
Na avaliação do professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e membro da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde Geandro Pinheiro, é preciso politizar o debate para que prevaleça o interesse público.  “Precisamos de mais dinheiro, não há como ser contra manifestações políticas que lutem por mais recursos para a saúde. Por outro lado, um movimento em defesa da saúde pública não implica apenas em lutar por mais dinheiro. Não queremos mais dinheiro para a saúde per se e, sim, que fundos públicos financiem a prestação de serviços públicos”, justifica, detalhando: “Temos que politizar a discussão, vinculando outras categorias de análise. A privatização está muito forte, cada vez mais os fundos públicos vão para o setor privado, seja via renúncia fiscal para quem tem plano de saúde, seja via prestação de serviços, como no caso das OSs [Organizações Sociais]. Olhar as contradições e determinantes do subfinanciamento é essencial para gerar um debate franco, não apenas em nome de uma pauta que unifique, mas não politize o debate. Não podemos correr o risco de o aumento dos recursos da saúde ser simultâneo ao avanço da privatização”. 
 
Alcides Miranda, pelo Cebes, e Fernando Eliotério, pela Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), revelam que as entidades que representam são a favor da aplicação dos 10% nos serviços públicos. “É o posicionamento do Conselho Nacional de Saúde. Mas, dentro do Movimento, não é consensual, inclusive não é algo que foi ou será discutido porque desagrega. Precisamos agora de uma mobilização grande para conseguir as assinaturas. Vamos discutir as alternativas concomitantemente, com a campanha na rua”, afirma Alcides, para quem o corpo a corpo da militância com a população é das iniciativas mais relevantes da campanha: “O processo de ir às ruas, argumentar, fazer o convencimento e inclusive esclarecer – porque a grande mídia muitas vezes passa uma visão deturpada – é de suma importância porque traz em seu bojo a discussão sobre o peso do setor saúde e o modo como ele vem sendo desprezado, pois é anunciado sempre como prioridade em campanhas eleitorais, mas na prática há um desprezo governamental, não só por parte da esfera federal, em quase todos os governos a saúde acaba virando moeda eleitoral”. 
 
Um posicionamento unificado diante da grande variedade de projetos em pauta no tocante ao financiamento por enquanto também não está no horizonte do Movimento. “Há setores que apontam a necessidade de novas fontes; outros que os recursos existem, basta mudar a prioridade da política econômica. Essa discussão, necessária, será feita no processo de politização do debate. O próprio CNS deliberou como bandeira para este ano a taxação das grandes fortunas e a garantia dos recursos do pré-sal. Várias proposições estão colocadas, mas elas ficam por conta das organizações”, explica Ronald. Segundo ele, a necessidade de focar nos 10% se relaciona com a própria natureza do processo do projeto de lei de iniciativa popular. “Não se pode buscar assinaturas para uma proposta genérica. Ela deve ser objetiva, clara e o mais simples possível”.   
 
Quanto falta? 
 
Embora os 10% das receitas correntes brutas da União – R$ 33,5 bilhões – seja uma forma de incrementar o gasto público com saúde, projeções dão conta de que o SUS precisaria de muito mais. O próprio ministro da Saúde, Alexandre Padilha, admitiu no ano passado no plenário do Congresso que o déficit estimado pela pasta é de R$ 45 bi. No entanto, não há um valor único: a estimativa varia conforme parâmetros e metodologias de cálculo.  
 
De acordo com as contas do médico especialista em saúde pública Gilson Carvalho, divulgadas no site da campanha SUS + 10, para se equiparar ao gasto do valor por usuário dos planos e seguros de saúde, que, em 2010, chegou a R$ 1.560 por pessoa, as três esferas de governo deveriam, juntas, injetar R$ 162 bilhões a mais no SUS. Com uma diferença: planos e seguros não ofertam imunização, vigilância sanitária e muitas outras ações que o Sistema Único tem a obrigação de oferecer. No Brasil, 53% dos gastos com saúde são privados e alcançam 46 milhões de conveniados. O restante dos investimentos são públicos e precisam beneficiar os 190 milhões de habitantes do país.  
 
Quando comparado a outros países, o Brasil também se sai mal no percentual do PIB destinado à saúde pelo setor público. Os últimos dados, de 2010, mostram que os governos aplicaram apenas 3,8% do PIB brasileiro – que totaliza R$ 3,6 trilhões – no SUS. A média do gasto público internacional, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, é de 5,5%. Para chegar lá, o país teria de acrescentar R$ 60 bi aos R$ 138 bilhões gastos no ano passado. Para se equiparar às nações de maior renda, que investem 6,7% do PIB, o país necessitaria de R$ 742 bi. 
 
Segundo Gilson, o Ministério da Saúde já foi responsável por 75% do financiamento da saúde na década de 1980. Em 2010, essa proporção encolheu para 45%. No mesmo ano, estados foram responsáveis por 27% e municípios por 28%. Quando relacionado ao PIB, o gasto da União alcança 1,7% daqueles 3,8% de gastos públicos com saúde. Caso a o projeto de lei de iniciativa popular ‘vingue’ – entre na pauta do Congresso, seja aprovada e sancionada pela Presidência da República – os gastos do governo federal passarão a representar 2,5% do PIB.