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“O Caps é a solução”

Usuários valorizam atendimento recebido em uma das estruturas mais importantes para atendimento em saúde mental após a Reforma Psiquiátrica
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 23/05/2012 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

"Não precisamos de sossega leão. O Caps é a solução". A frase estava escrita em um dos cartazes produzidos durante a manifestação do Dia da Luta Antimanicomial - 18 de maio - no Rio de Janeiro. Historicamente, usuários e familiares são protagonistas junto aos
profissionais de saúde das passeatas realizadas em todo o país no Dia da Luta Antimanicomial. A participação dos usuários nas políticas de saúde mental é um dos princípios da Reforma Psiquiátrica, que ao contrário do isolamento, aposta na liberdade, inclusive de opinião.

No Caps Maria do Socorro Santos, na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, os usuários souberam dos detalhes do ato do dia 18 de maio em uma assembleia realizada no próprio Caps, na semana anterior.  Neste dia, foi organizada a intervenção do grupo na manifestação e também que outras atividades o Caps organizaria para comemorar a semana dedicada ao tema. Rafaela Gomes da Silva, de 23 anos, usuária do serviço, explica o significado da luta antimanicomial: "É para acabar com os manicômios e ter mais Caps", diz. 

 O Caps Maria do Socorro Santos está localizado pouco acima do pé do morro. É uma unidade do tipo III, ou seja, com leitos de acolhimento e funcionamento 24h. Rafaela já precisou ficar acolhida várias vezes no Caps em momentos de crise. Atualmente vai até a unidade apenas para pegar os medicamentos dos quais precisa e participar de atividades como a fabricação de bijuterias e passeios organizados pelos profissionais da unidade. Com poucas palavras, Rafaela conta que ficou internada em outros lugares. "Lá eu sentia falta da família, do meu filho. Tinha gente que ficava pertubando com cigarro", fala. No Caps, Rafaela relata que mesmo no período de internação, ela pôde receber visitas da família. Os funcionários contam que, na verdade, essa  visita não só é permitida como incentivada. Outro aspecto  valorizado pela paciente é o fato de não ter tranca no quarto e ela poder sair quando quiser. "Posso fumar ali fora. Só depois de 22h é que não pode mais", diz.

Rafaela já está de saída quando conversa com a reportagem rumo a sua casa, no alto do morro. Nuzia Pereira, assistente social do Caps, a acompanha até a saída da unidade e a empresta dinheiro para o moto-taxi. "Depois ela me devolve. Nós temos uns acordos", comenta a assistente social. "A Rafaela chegou aqui muito diferente, batia, chorava, era um desespero terrível. E hoje temos uma Rafaela que se sentou com você, concedeu uma entrevista, e a gente se emociona só de vê-la dando uma entrevista. Há um ano você não conseguiria entrevistá-la e hoje, educadamente ela sentou e foi conversar com você", fala Nuzia, com os olhos molhados e a voz embargada.

 Wagner Florencio, de 22 anos, também já permaneceu por vários dias no Caps Maria do Socorro. Assim como Rafaela, é consciente do significado da Luta Antimanicomial. "Com o Caps melhorou muito. Não precisa mais de camisa de força, aquele drama todo. Aqui é um lugar pra gente abrir a mente", diz. Ele, entretanto, acredita que é difícil acabar totalmente com os manicômios. "Tem maluco que é maluco mesmo. Alguns melhoram um pouco tomando remédio", opina.

Antes da inauguração do Caps na Rocinha, pacientes como Wagner e Rafaela tinham que buscar atendimento em outros locais, e, por muitas vezes, permaneciam internados em instituições distantes
da residência e com outra proposta de cuidado. De acordo com Wagner, ele foi levado para o Caps de ambulância após um momento de crise em que começou a quebrar os móveis de sua casa. "Eu comecei a ouvir vozes o tempo todo dizendo para eu fazer as coisas erradas. Ainda ouço, mas agora não dou importância. Vou continuar vindo aqui até o dia que falarem que eu estou bom", finaliza.

Aposta na luta antimanicomial

"Nós não estaríamos aqui se não fosse a Luta Antimanicomial", observa Paula Teixeira, uma das diretoras do Caps Maria do Socorro, em uma comemoração realizada com os trabalhadores da unidade pelo dia dos enfermeiros e dos assistentes sociais. Ailton Romeiro, técnico de enfermagem do Caps, já trabalhou em outros tipos de serviços para pacientes da saúde mental. Em alguns deles, com utilização de métodos que passaram a ser questionados pela Reforma Psiquiátrica. "Aqui tratamos na palavra e não força,
precisamos convencer os pacientes e não contê-los, sem dúvida é mais difícil, mas percebo também como o resultado é melhor", diz.

Nuzia trabalha há 13 anos na área da psiquiatria e também conhece diversos tipos de serviço. Começou como funcionária administrativa do Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ), um hospital-dia, ou seja, de curta permanência de internação, localizado no centro do Rio de Janeiro. A partir do contato com os médicos e os pacientes, foi se identificando com a área e decidiu cursar serviço social. Conheceu vários tipos de serviço e trabalhou com população de rua. "Eu desejei vir para o Caps III por causa da proximidade om a comunidade. Aí encontrei aqui uma realidade super bonita. O Caps tem uma história bem diferenciada em termos de roupa, de cuidado, de a família estar dentro. No manicômio, o paciente está sempre muito afastado dos familiares, perde a referência da amília. Aqui deixamos claro que o cuidado deve ser das duas partes e que o paciente voltará para casa", relata. "Algumas instituições ainda mantêm os trajes do manicômio, com as roupas da mesma cor. Aqui não temos roupas, eles é que trazem de casa. Aqui não temos portões de ferro, trabalhamos junto com o paciente que a segurança está no ser humano e não nas grades do hospital", compara. 

 Desafios

Para a assistente social, um dos desafios é fazer com que as famílias acreditem no tratamento oferecido nos Caps. "As famílias muitas vezes estão acostumadas a internar o indivíduo e ele ficar lá preso por um longo período. Aqui ele não ficará. Nós temos reuniões diárias para discutir os casos que estão em acolhimento noturno e antes de o paciente ficar 100% ele vai para casa e nós vamos acompanhar, vamos a casa dele, levamos para passear. Temos conquistado as famílias, mas o hospital fechado ainda é um grande vilão, porque para muitas famílias é este tipo de serviço é que é bom. Porque lá o paciente não aborrece", analisa Nuzia.  

Outro desafio, para ela, é tirar o indivíduo da invisibilidade, de forma que ele se mostre para a sociedade e para os próprios profissionais da saúde. "Muitos profissionais não gostam de tratar a loucura, porque de fato é muito difícil. Mas quando mostramos que é
capaz de melhorar, que precisamos cuidar das outras partes da pessoa também, não só da cabeça  porque muitas vezes pensam que o paciente psiquiátrico só tem cabeça, e que através da reforma psiquiátrica a população em geral ganhou muito, conquistamos os profissionais também. São os pacientes psiquiátricos que vão para a rua gritar por melhor qualidade de vida para toda a população. Em nenhuma outra clínica se faz tantos momentos de luta e se busca tanto a melhoria das pessoas como a saúde mental. Porque o louco tem coragem de falar o que os sãos não tem", destaca.