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Por dentro e por fora do SUS: a saúde cada vez mais privada

Aumento da participação da iniciativa privada na saúde é temade debate no último dia do Abrascão.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 19/11/2012 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Com cerca de 2 mil pessoas, o debate 'Público x Privado na Saúde', no último dia do Abrascão,  trouxe à tona o tema que mais esteve presente nas cerca de 100 atividades ao longo de quatro dias de evento: a privatização da saúde. A mesa contou com a presença da professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Abrasco, Lígia Bahia e do professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, Gastão Wagner. O diretor e um dos sócios da Amil, Paulo Marcos Senra Souza, que fazia parte da programação, não compareceu ao evento.

Na abertura, Ligia Bahia apresentou um cenário dos planos de saúde no país. No total, são 1.386 empresas, sendo 320 só de planos odontológicos. Em vigor, existem 47.611.636 contratos de planos de saúde e 16.805.450 de planos odontológicos. “As pessoas adoram se vangloriar de que somos o maior sistema de saúde do mundo, mas esquecem do Japão. O que podemos afirmar é que somos o segundo maior sistema de saúde privada do mundo”, lembrou.

De acordo com a professora, o aumento do valor dos planos de saúde foi maior do que o da inflação no último ano. Além disso, o número de usuários dos planos de saúde também vem aumentando. “O que está acontecendo é o aumento dos planos ‘baratos’, porque R$ 40 não é barato para quem ganha salário mínimo. Esses planos têm uma cobertura pequena, quase que precária, mas se perguntarmos a essa camada que vem crescendo no país, a chamada nova classe média, um dos objetos de consumo é o plano de saúde”, analisa.

Privatização por dentro

Para Gastão Wagner, o SUS já está privatizado por dentro e, segundo ele, exemplo claro disso são as metas impostas a funcionários e unidades de saúde. “Sempre temos na cabeça que o sistema público não funciona e começamos a adquirir lógicas do mercado como o de competição entre unidades de saúde. Os que alcançam melhores índices ganham investimentos, aqueles que não conseguem, continuam sem atenção. Daqui a pouco só teremos hospitais bons no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, enquanto os da Paraíba e Manaus continuarão sem recursos e acabarão”, exemplifica.

Ligia Bahia acrescentou ainda que, ao contrário do que costumam dizer seus defensores, as entidades filantrópicas são lucrativas. Ressaltou ainda que o fortalecimento do mercado da saúde se dá por meio do Estado, inclusive, do SUS. “O Ministério da Saúde paga contratos astronômicos para as organizações sociais e para a alta complexidade”, disse. A professora enumerou outras atuações de políticas públicas que favorecem o setor privado, como os créditos e empréstimos, a associação de banco estatal (Caixa Econômica Federal) com investidores que atuam no mercado de assistência suplementar, gastos diretos com planos privados para servidores públicos e auxílio na obtenção de empréstimos de bancos internacionais. No campo da formação de trabalhadores esta relação também está sendo estreitada. “Os hospitais privados têm bancado pesquisa de formação dos trabalhadores de saúde”, exemplificou.

Indagações e Soluções

“Vitória é a cidade com melhor Índice de Desempenho do SUS (IDSUS) e é a cidade com maior assistência de plano de saúde, com 75,5% da população”, disse Ligia, ressaltando que este dado deve ser pensado e esmiuçado. “As organizações dos médicos, dos sindicatos, a relação da oferta e da demanda não é explicada pelo Produto Interno Bruto ou pela renda”, explicou. As outras capitais com maior presença de planos de saúde são as de São Paulo (61,4%),  Belo Horizonte (55,7%) e Curitiba (55,3%). “O problema é que nosso Sistema é constitucionalmente universal, mas a maior parte dos gastos em saúde é do sistema privado. Nos anos 1970, em pleno regime militar, essa estrutura era diferente. O público era mais favorável do que o privado”, lembrou Ligia.

Para combater tal crescimento, Gastão defendeu que a luta pelo SUS deve ser imediata. “Não podemos achar que a única transformação é por meio de uma revolução. Nós podemos e devemos fazer aos poucos. Desde o século XIX, diversos artigos já mostravam que a saúde e o mercado devem andar separados”, lembrou. Ele ressaltou ainda que há pontos que devem ser defendidos de forma mais intensa. “Precisamos fazer uma luta contra, por exemplo, o BNDES financiar o sistema de saúde. Precisamos bater muito nesses pontos”, afirmou.

A venda da Amil para uma empresa internecional também foi assunto do debate. “Acredito que o diretor não compareceu por conta da venda recente da Amil. É claro que essa movimentação terá impacto. Outra evidência é que, com os R$ 10 bilhões adquiridos com a venda, a Amil comprará hospitais em Portugal”, analisou Ligia.

Reforma da reforma

Gastão defendeu que é preciso realizar uma reforma da reforma. “O investimento do SUS e o que fazer com ele deve ser repensado. A ação do Estado atual é de favorecimento do desenvolvimento do mercado da saúde. Com um maior investimento na lógica de hoje, só vamos financiar ainda mais a iniciativa privada. Mas é preciso sim dobrá-lo. Hoje temos um investimento horizontal”, explicou.

Para Gastão, um dos primeiros passos é acabar com a carga ideológica que o setor público carrega, identificado com ineficiência e de baixa qualidade, o que facilita a crença de que a privatização é a solução para os problemas do SUS. “Chamar a saúde do mercado de saúde suplementar é um eufemismo, essa saúde é um negócio e o Estado está ajudando a desenvolvê-lo”, comentou.

Outro ponto de mudança importante, segundo ele, é a lei de responsabilidade fiscal. “O SUS gasta cerca de 70% com pessoal, então, a lei de responsabilidade fiscal é perversa. Se não pode reformar, muda o item que determina essa porcentagem, mesmo que seja somente para a saúde e para a educação, que são casos especiais. É simples, é só seguir os padrões internacionais”, apontou.