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Famílias sem casa e casas sem família

Quase 6 milhões de famílias não têm moradia adequada. Movimentos sociais e pesquisadores propõem formas de ampliar o acesso à  habitação nas cidades
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 28/08/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: Mídia Ninja

"Copa? A gente não é contra a Copa, mas a gente quer cozinha, quarto, sala e banheiro também...". Bem humorada, a reivindicação feita pelo Pastor Moisés durante um debate no Rio de Janeiro organizado pelo vereador carioca Renato Cinco, em julho, tem, contudo, como pano de fundo uma experiência traumática: Moisés representa as milhares de famílias que ocuparam um prédio pertencente à antiga Telerj em março desse ano, e que foram expulsas de forma violenta pela Polícia Militar em uma ação de reintegração de posse em abril. O paralelo com a Copa do Mundo, que suscitou questionamentos com relação à priorização na aplicação de recursos públicos em megaeventos esportivos em detrimento das necessidades básicas da população, esteve na ponta da língua de outras lideranças de ocupações, que no período ganharam as manchetes de jornais em várias capitais do país. O exemplo mais óbvio é a ocupação Copa do Povo, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) em São Paulo em um terreno no bairro de Itaquera, onde fica o estádio que recebeu os jogos do torneio na capital paulista. Além de São Paulo e Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Belo Horizonte e Fortaleza, entre outras, viram crescer no período o número de ocupações organizadas por movimentos de luta pela moradia no Brasil. Segundo Guilherme Boulos, coordenador-geral do MTST, o movimento organiza atualmente nove ocupações na cidade de São Paulo, além de outras (que ele não soube precisar) na região metropolitana da capital paulista e em capitais como Fortaleza, Brasília, Palmas, Boa Vista e Recife. Ele calcula em 50 mil o número de famílias de trabalhadores sem-teto reunidos nas ocupações encabeçadas pelo MTST por todo o país. E isso justamente no ano em que o Minha Casa Minha Vida (MCMV), programa que é o carro chefe da política de habitação do governo federal, completa cinco anos de existência. "Como pode, no ano em que se completam cinco anos do maior programa habitacional da historia do país, pipocarem nas grandes cidades brasileiras, por toda parte, ocupações de sem-teto?", questionou Guilherme, que também esteve presente no debate organizado por Renato Cinco no Rio. Ele e Moisés estavam ali para discutir propostas para um problema crônico no país, e que tem relação direta com o recrudescimento das lutas pela moradia atualmente: o déficit habitacional. Militantes de movimentos de trabalhadores sem-teto e pesquisadores ouvidos pela Poli apontam que, apesar dos avanços recentes na legislação que rege o acesso ao espaço urbano, como o Estatuto das Cidades, e nas políticas públicas voltadas para habitação, com a criação do Minha Casa Minha Vida, uma grande parcela da população brasileira continua impossibilitada de acessar seu direito a uma moradia adequada.

Como é calculado o déficit?

Moradia adequada é uma expressão importante para entender como é calculado o déficit habitacional. Engana-se quem acha que esse número é composto apenas por quem efetivamente não tem um lugar para morar. É mais do que isso. Os números oficiais, utilizados pelo Ministério das Cidades, são calculados pela Fundação João Pinheiro (FJP), vinculada ao governo do estado de Minas Gerais. A metodologia utilizada apresenta quatro componentes do déficit, sendo o primeiro deles os domicílios precários. Mas o que são considerados domicílios precários? Para a FJP, entram aqui as habitações improvisadas - aquelas que não têm fins residenciais ou são locais de moradia alternativa, como por exemplo imóveis comerciais, aqueles localizados debaixo de pontes e viadutos ou carros abandonados - e também as habitações "rústicas", ou seja, aqueles sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada. O segundo componente do déficit é a coabitação familiar, que é quando duas ou mais famílias habitam uma mesma casa e declaram ter intenção de viver em casas separadas. O terceiro componente é o chamado ônus excessivo com aluguel, que corresponde ao número de famílias que ganham até três salários mínimos e que gastam 30% ou mais de sua renda com aluguel. Por fim, o quarto componente do déficit habitacional é o adensamento excessivo em imóveis alugados, que diz respeito àqueles domicílios em que o número médio de moradores por dormitório é maior do que três.Mídia Ninja

Déficit diminui, mas reflete aumento de gasto com aluguel

À primeira vista, o cenário é animador. Somados todos os componentes, o déficit habitacional vem caindo, passando de 6.102.414 de domicílios em 2007 para 5.792.508 em 2012, segundo a FJP. A queda foi puxada pela redução no número de domicílios precários, que passou de 1.264.414 em 2007 para 883.777 em 2012, e da coabitação familiar, que caiu de 2.481.128 para 1.865.457 no período. O adensamento excessivo em imóvel alugado, por sua vez, permaneceu relativamente estável: de 390.891 em 2007 passou a 382.926 em 2012. "No Brasil, em termos de melhoria da qualidade da habitação popular, as experiências mais importantes são as iniciativas de urbanização de favelas e assentamentos precários. São as políticas chamadas de regularização fundiária nas quais o país já tem uma tradição", afirma o professor de direito urbanístico do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ) Alex Magalhães. Segundo Erminia Maricato, professora aposentada da USP, o decréscimo reflete um aumento do investimento público em políticas urbanas. "A política habitacional começou a alavancar em 2005. Em 2007 começam os planos de aceleração de crescimento e a política de urbanização de favelas, por exemplo, que se espalhou pelas cidades brasileiras", avalia.

Paradoxalmente, entretanto, diz Erminia, no momento em que a política habitacional ganha novo impulso, crescem também as dificuldades de acesso e a segregação espacial de grande parte da população de baixa renda. Os novos investimentos, sem o acompanhamento de políticas públicas mais amplas, geraram distorções no setor. "Temos essa dificuldade de moradia que vem exatamente com o investimento federal, porque todo esse dinheiro entra na produção de moradia sem que se tenha feito a chamada reforma urbana, cujo coração era a reforma fundiária/imobiliária e o investimento em transporte coletivo", analisa.

E os números do déficit habitacional apontam desdobramentos desse quadro apontado por Erminia. Ao contrário dos outros componentes do déficit, o número de famílias de baixa renda que gastam 30% ou mais com aluguel aumentou bastante no período, situação preocupante que, para muitos, explica em boa parte a efervescência da luta por moradia atualmente. Enquanto em 2007 esse número era de 1.965.981, em 2012 passou a 2.660.348 domicílios, o que fez com que o aluguel excessivo passasse a responder por 46% do déficit brasileiro em 2012, contra 32% em 2007. "Isso é importante, porque o que estamos vendo agora é um aumento no valor da terra nas grandes cidades e isso influencia o déficit principalmente no que se refere ao gasto excessivo das famílias com aluguel. Tivemos um boom no preço da terra e não teve um boom nos salários; então esse aspecto do calculo do déficit, que é do gasto excessivo com aluguel, aumentou muito mais", afirma a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) Paula Santoro. Rio de Janeiro e São Paulo são os maiores exemplos disso: de janeiro de 2008 até abril de 2014, o valor médio do aluguel subiu 97% na capital paulista e 144% no Rio de Janeiro, segundo o índice Fipe-Zap (elaborado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). Bem acima da inflação do período, por volta de 40%. Segundo Paula, o aumento no preço dos aluguéis foi puxado pelo incremento no preço dos imóveis no período, como é o caso de São Paulo, que teve um aumento de 170% nos últimos cinco anos. Para ela, isso tem a ver com as políticas de ampliação do crédito. "Na hora em que o governo federal aumentou a possibilidade de financiamento com FGTS para imóveis de R$ 500 mil para até R$ 750 mil reais, o mercado imobiliário entendeu que isso aumentou o poder de compra do consumidor, e aí aumentou o preço dos imóveis. O aluguel sofre as consequências desse aumento".

Em artigo publicado na revista Carta Capital, Guilherme Boulos vai pelo mesmo caminho. Segundo ele, a injeção de recursos públicos por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no setor da construção civil, medida tomada como forma de debelar os efeitos da crise econômica de 2008 no país, também contribuiu para o cenário atual. "O BNDES financiou a expansão e internacionalização das Cinco Irmãs (Odebrecht, Camargo Correia, OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão). Elas abriram capital na bolsa, adquiriram um imenso banco de terras e expandiram seus horizontes para outros ramos como a telefonia, a geração de energia elétrica e a petroquímica. (...) Os construtores, ao investirem em terras o dinheiro das ações vendidas com a abertura de capital, tornaram-se também os maiores proprietários de imóveis urbanos", escreve. Como consequência, continua Guilherme, o direcionamento da expansão e da remodelação urbana acabou ficando nas mãos dos interesses de mercado. "Com isso, regiões inteiras foram reconfiguradas sem aviso prévio aos que sempre estiveram por lá. Bairros antes periféricos viram, atônitos, torres serem erguidas ao seu lado. Novos moradores, novo perfil, novos preços. Com os investimentos de mercado veio a inflação descontrolada do valor dos aluguéis".

Minha Casa Minha Vida: pouco impacto na redução do déficit

Quem mais sofreu com isso foram justamente as famílias de renda mais baixa, muitas das quais se viram forçadas a arcar com alugueis mais altos diante da alternativa de mudar-se para bairros mais afastados de seus locais de trabalho, e acabaram engrossando os números do déficit referente ao ônus excessivo com o aluguel.

E o diagnóstico é de que o Minha Casa Minha Vida, voltado justamente para atender as demandas por moradia das famílias de renda mais baixa, não tem conseguido causar o impacto esperado no déficit. Indício disso, aponta Paula Santoro, é o fato de que, enquanto o programa entregou 1,32 milhão de novas casas desde sua criação em 2009 até 2013, o déficit habitacional não caiu na mesma proporção, reduzindo-se em apenas 350 mil moradias. E a queda foi movida por uma redução do número de famílias com renda entre três e 10 salários mínimos; a porcentagem do déficit formado pelas famílias com renda de até três salários mínimos permanece estável desde 2007, em torno de 70%. Além disso, segundo dados do Ministério das Cidades, da meta do Minha Casa Minha Vida 2, apenas 15% foram contratadas para a chamada Faixa 1, voltada para as famílias que ganham até R$ 1,6 mil por mês. Para a Faixa 2, composta pelas famílias que ganham até R$ 3,1 mil, essa porcentagem foi de 75%.

Para Paula Santoro, essa é uma distorção causada pelo protagonismo do mercado no Minha Casa Minha Vida. "O programa foi uma política econômica de produção de habitação. O foco não era o déficit. O Minha Casa Minha Vida foi criado como programa para superar uma ameaça de crise econômica que vinha desde 2008. Foi uma resposta do governo federal visando à produtividade econômica. No cálculo do PIB a influência da construção civil vem aumentando de forma considerável desde 2009. O centro da política é ter desenvolvimento econômico, gerar empregos e melhorar nossos índices econômicos, e não reduzir o déficit", afirma, completando em seguida: "O Minha Casa Minha Vida é baseado no mercado, e ele se interessa em produzir para as maiores rendas para gerar maior rentabilidade. Se você segue a lógica do mercado numa política habitacional, fica mais difícil atender às necessidades habitacionais, que são de se produzir moradia para as menores rendas".

Em seu artigo, Guilherme Boulos também faz críticas ao fato de que a responsabilidade pelos projetos do Minha Casa Minha Vida fica na mão das construtoras. Para ele, isso faz com que os empreendimentos disponíveis para as famílias com renda de até 3 salários mínimos sejam "de baixa qualidade". "Se a construtora apresenta um projeto de apartamentos de 39 m², que é o mínimo estabelecido para a Faixa 1 (famílias com renda inferior a 1,6 mil reais), ou se apresenta com 60 m² o valor pago pelo programa será o mesmo, 76 mil reais por unidade. Ou seja, na medida em que os agentes dos empreendimentos são construtoras, que buscam rentabilidade e não qualidade da moradia, é mais do que óbvio que as moradias não terão um milímetro a mais que o mínimo. Assim ocorre. O MCMV, portanto, estimula a habitação popular de baixa qualidade", critica. E completa: "Se a construtora tem um terreno num bairro mais valorizado e com mais acesso a serviços e outro no fundão da periferia, o MCMV irá repassar o mesmo valor por unidade nos dois casos. Obviamente as construtoras estão destinando seus piores terrenos para habitação popular. Estimulam com isso a periferização, o crescimento da especulação imobiliária e a piora da qualidade de vida dos trabalhadores".

Erminia Maricato dá um exemplo de como essa piora na qualidade de vida se dá, uma vez que falta articulação entre a política de construção de habitação para baixa renda e os investimentos em infraestrutura urbana, como o transporte coletivo. "Muitas vezes quando se faz conjunto [habitacional] fora da cidade, como está acontecendo, as pessoas não têm acesso ao trabalho e precisam de um transporte que não existe. Ficou comum as pessoas usarem três modos de transporte. Isso tem um impacto no orçamento dessas pessoas", aponta. "Você pode até diminuir o déficit habitacional, mas tem que expandir rede de água de esgoto, de escola, saúde, iluminação, transporte, [ou então] está criando outros déficits", complementa Erminia.

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Foco no controle do aluguel

Uma proposta que vem sendo apresentada por movimentos sociais e pesquisadores da área são as políticas de controle do preço dos aluguéis. O MTST, sugere, por exemplo, uma alteração na Lei do Inquilinato para vincular o aumento do aluguel à inflação. Hoje isso já é feito de ano a ano, mas o problema é que, na hora de renegociar os preços ao fim dos contratos de locação, os proprietários ficam livres para aumentar os preços da maneira que quiserem. Orlando Santos, também professor do Ippur/UFRJ, propõe ainda uma legislação que limite o número de imóveis urbanos de propriedade de uma mesma pessoa. "Vamos supor que não posso ter mais do que duas propriedades em uma cidade. O que aconteceria com aquele que tem 10? Teria que ofertar, vender, haveria uma oferta maior no mercado e isso tenderia a baixar o preço, nas regras do próprio mercado", afirma Orlando.

Alex Magalhães ressalta que a questão da regulação dos aluguéis é um dos maiores desafios hoje da política habitacional no país. "A locação se converteu no principal mecanismo de acesso à moradia para a população de baixa renda nas grandes cidades do país. É preciso uma política mais agressiva de oferta de moradias para a população de baixa renda. Lotes populares, moradia popular em locais bem servidos e a preços acessíveis, com uma oferta maior e atrativa em termos de qualidade, localização e preço - que, a meu ver, são os aspectos fundamentais em termos de moradia popular", opina. Paula Santoro concorda, apontando o que entende como outro problema do programa Minha Casa Minha Vida. "Ele está baseado apenas na propriedade privada e a gente sabe que temos outras formas que poderiam garantir que as famílias ficassem nas áreas valorizadas da cidade. Por exemplo, não temos política de locação social. Se eu tenho imóveis públicos com aluguel com preço controlado, as famílias podem ir para esses imóveis e pagar um preço mais baixo. Inclusive, se tivéssemos um parque de imóveis públicos, poderíamos influenciar o mercado. Se o governo esta ofertando aluguel a R$ 400 e o mercado está R$ 800, o mercado vai ficar sem alugar, e então vai baixar o valor. Mas para isso precisamos de políticas de reserva de terra", avalia.

Famílias sem casa, casas sem família

Uma possibilidade para colocar isso em prática seria aproveitar o enorme estoque de imóveis vagos, ou seja, que se encontram desocupados, existentes hoje no país. Isso reduziria a necessidade de criar infraestrutura em bairros periféricos para abrigar conjuntos de moradia popular. Movimentos de luta pela moradia têm inclusive chamado atenção para o fato de que esse número é maior do que o déficit habitacional: segundo dados do Censo 2010 do IBGE, existem mais de 6 milhões de domicílios vagos no país, sendo que 77% deles ficam localizados nas áreas urbanas.

O caso de São Paulo é emblemático, segundo Evaniza Rodrigues, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular (UNMP). "Temos levantamentos feitos pelo próprio poder público que dizem que no centro de São Paulo há 55 prédios vazios que já foram vistoriados e identificados como aptos para serem adquiridos e reformados para habitação. Só que aí você novamente esbarra na valorização desenfreada do preço da terra", diz Evaniza. Ela dá o exemplo do Edifício Marconi, prédio atualmente ocupado por famílias de sem-teto. "Se você fosse comprar aquele prédio, só o preço de aquisição daria por volta de R$ 200 mil reais por família, sem contar a reforma. Um preço de mercado que não corresponde a nada. A expectativa do proprietário e do mercado como um todo é que ele não seja usado para habitação popular, e sim para outro tipo de uso de alto padrão, como está acontecendo em vários lugares na cidade", ressalta.

E muitos desses prédios inclusive encontram-se em situação irregular, como afirma Sidnei Pita, coordenador de uma ocupação de sem-teto na região, na rua Libero Badaró. Desde o dia 8 de abril, cento e vinte famílias ocupam o prédio pertencente à Cruz Vermelha e abandonado há duas décadas. "O prédio deve R$ 1,527 milhão de IPTU, coisa muito comum aqui no centro de São Paulo. A gente não aceita essa situação. O centro é uma área muito conflitante, com muita disputa e ocupações. O poder público tem que intervir. São mais de 90 prédios ocupados no centro de São Paulo. É uma situação crônica que se instalou dentro da capital", defende Sidnei. Segundo ele, no entanto, a Justiça paulista decretou a reintegração de posse do prédio, marcada para o dia 19 de agosto.

As ocupações recentes na capital paulista revelam que o problema vai além dos edifícios sem uso no centro da cidade. Ganhou destaque na mídia o caso da ocupação Copa do Povo, citada no início desta reportagem e realizada em um terreno no bairro de Itaquera, zona leste da cidade. Ocupado desde o dia 3 de maio, o terreno de 150 mil metros quadrados fica a três quilômetros do estádio onde foram jogadas as partidas da Copa do Mundo. Josué Rocha, um dos coordenadores da ocupação, relata que o terreno, pertencente à construtora Viver, estava abandonado havia mais de 20 anos. "Não tem nem muros, só mato alto e entulho", revela Josué. "E o mais interessante é que desde o Plano Diretor de 2002 foi retirado o zoneamento rural da cidade, mas a construtora pagava imposto desse terreno como imposto rural: para um terreno deste tamanho, pagava apenas R$ 53 reais por ano. É o único encargo que o proprietário tinha", diz. Segundo ele, a área servia apenas como garantia de empréstimo pela construtora. Hoje, 5 mil famílias ocupam a área, a maioria delas, segundo Josué, fugindo do aumento do preço dos alugueis em Itaquera, que segundo o índice Fipe-Zap aumentou 94% nos últimos cinco anos.

Em Belo Horizonte, a situação é parecida. De acordo com Leonardo Péricles, coordenador do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), um levantamento realizado pela prefeitura contabilizou um total de 3,5 milhões de metros quadrados de áreas passíveis de abrigar habitações de interesse social na cidade. "São glebas, áreas em loteamento irregular pouco ocupado, lotes vagos", explica Leonardo. Essas áreas poderiam abrigar 318.743 novas unidades habitacionais. Segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit na região metropolitana de Belo Horizonte é de 148 mil domicílios. "Esse dado é cabal pra nós, porque qual é o discurso nacional oficial? Que não existem terras para programas habitacionais. Esse dado desmente isso", avalia. "A prefeitura poderia com tranquilidade pegar esse monte de terrenos vazios na cidade e desapropriar, a maioria tem dívida de IPTU maior que o valor do terreno. Outra opção seria pagar os proprietários com títulos da dívida pública. Tem varias opções. Mas não tem diálogo com a prefeitura. Tem um processo em curso na cidade de atender aos grandes especuladores imobiliários, que estão dirigindo a política urbana", critica. O resultado disso, aponta Leonardo, foi uma explosão das ocupações de sem-teto na cidade. Segundo ele, só as ocupações com menos de cinco anos na cidade contam hoje com cerca de 20 mil famílias.

A região do Isidoro agrupa grande parte delas. São 8 mil famílias que atualmente ocupam terrenos vazios na região, em três ocupações: Rosa Leão, Esperança e Vitória. Coordenadora da Rosa Leão, Charlene Egídio afirma que o terreno escolhido para a ocupação estava abandonado há 40 anos. "Servia para jogar entulho e lixo. Teve inclusive casos de estupro aqui", revela. Segundo ela, as 1,5 mil famílias hoje ocupando o terreno foram para ali fugindo dos altos preços dos aluguéis, que subiram bastante. "O aluguel aqui é altíssimo, e cada dia que passa vai aumentando mais. Muitos que estão aqui viviam de aluguel, pagavam R$ 600 por mês, o quê, para quem ganha salário mínimo, não tem condição. Não se acha nada por menos de R$400, e pra pagar isso tem que ser no pior lugar e num apartamento com um cômodo e um banheiro", diz Charlene. Ela critica a falta de sensibilidade do poder público e também da mídia, que retrata os sem-teto como aproveitadores. "Eles omitem a nossa realidade. Nós já construímos 500 casas de alvenaria, mas a vida aqui é muito difícil, não temos energia de qualidade, não tem nem como ter geladeira. Saneamento é a mesma coisa, ainda utilizamos fossas. Fizemos um levantamento socioeconômico e vimos que a maioria [dos moradores da ocupação] são trabalhadores braçais: ajudantes de pedreiro, diaristas, cozinheiras. Só que muitas vezes as pessoas que estão em ocupação são julgadas. Geralmente as pessoas olham o que a mídia expõe, e ela esconde muito a realidade de uma ocupação. A maioria das pessoas aqui ganha salário mínimo, não tem para onde ir", alerta.

Segundo ela, mesmo depois do movimento ter realizado ocupações nos prédios da Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (Urbel) e da Advocacia Geral do Estado e ter protestado em frente à sede da prefeitura, o governo municipal se recusa a negociar. "Nessa ocupação na Urbel conseguimos marcar uma reunião com a prefeitura. Fomos à reunião e não compareceu nenhum representante da prefeitura. Um descaso. Não apresentam nenhuma alternativa, nem sentam pra conversar", critica. A Justiça mineira, contudo, já apresentou ordem de reintegração de posse para as três ocupações do Isidoro, que deve ser realizada a qualquer momento. Charlene afirma que o clima é de apreensão, uma vez que a Polícia Militar tem um histórico de violência em ações de desocupação. Inclusive, afirma Leonardo Péricles, um dos legados deixados pelo aparelhamento das forças de segurança da cidade para a Copa do Mundo foi o aumento da repressão aos movimentos populares na cidade. "A primeira vez que usaram um ‘Caveirão' em Belo Horizonte foi para reprimir uma ocupação urbana, para atemorizar famílias. E desde então a cidade já adquiriu mais três desses veículos, que são verdadeiras máquinas de guerra", revela.

Repressão violenta foi também a marca de uma ação que ganhou as manchetes dos jornais esse ano, que foi a ocupação de um prédio da antiga Telerj no Rio de Janeiro. O prédio, pertencente à União mas cedido à empresa Oi em meio ao processo de privatização da Telerj, estava sem uso há mais de 10 anos, e havia sido ocupado em março por cerca de 5 mil famílias. Ele foi alvo de uma ação de reintegração de posse cumprida pela Polícia Militar em abril, que chocou pela sua brutalidade. Em declarações à reportagem do jornal A Nova Democracia, que acompanhou a ação da polícia, sem-teto reclamavam da maneira pela qual foram tratadas as famílias na hora da desocupação, realizada à base de bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta. "Não tem nenhum assistente social, nem defensoria pública, muito menos direitos humanos aqui. Eles prometeram isso tudo e só mandaram a polícia. O barraco, que nós construímos com muita dificuldade, foi derrubado com uma ‘pezada'. Eu mesmo preguei preguinho por preguinho, carreguei cada tábua daquela, para depois ver tudo no chão e minha família na rua. Enquanto não tem moradia nesse país, a gente vive assim: no meio da rua", lamentou-se a diarista Cristiane Ramos à reportagem do jornal. Retiradas do local, as famílias vivem até hoje de improviso no ginásio de uma igreja no Rio.Mídia Ninja

 

Função social da propriedade

O que os casos recentes de ocupações mostram é que a Justiça brasileira tem favorecido os grandes proprietários com ordens de reintegração de posse, mesmo nos casos em que a propriedade do terreno é alvo de disputas. Mas isso não significa que a legislação brasileira não tenha mecanismos considerados progressistas para tratar dos limites à propriedade privada. Um deles, que está na ponta da língua dos movimentos de luta pela moradia na hora de promover ocupações, é o princípio da função social da propriedade inscrita na Constituição Federal de 1988. O professor do Ippur Alex Magalhães explica que o sentido da expressão faz um contraponto à noção de função individual da propriedade. "A propriedade no Ocidente, a partir das revoluções da modernidade, foi concebida tendo uma função apenas individual num primeiro momento, ou seja, a propriedade serve apenas para atender ao proprietário. A partir da metade do século 19 os movimentos socialistas e anarquistas começam a fazer uma crítica da propriedade burguesa e, então, no início do século 20, surge a ideia de que a propriedade deve também atender à coletividade", explica Alex. Segundo ele, esse princípio foi incorporado à legislação brasileira na Constituição de 1934, conhecida inclusive por seu caráter pouco democrático. "O termo ‘função social' só aparece na década de 1960, mas essa noção de que a propriedade não pode atender só ao dono, que há também um interesse social, está dito de outras formas desde 1934", relata.

Esse princípio, explica Alex, obriga que os governos tenham uma política de uso da terra que combata a especulação imobiliária, o não aproveitamento de terras, "situações que agridem ao interesse da coletividade", como também obriga o Legislativo a editar leis nesse sentido e o Judiciário aplicar a noção de função social em casos de litígios sobre a posse da terra.

A inscrição desse princípio na Constituição de 1988 acabou servindo de inspiração para outras leis que vieram depois. O maior exemplo foi o Estatuto das Cidades, aprovado em 2001. Segundo Orlando Santos, o Estatuto expressa em lei parte do ideário do direito à cidade, e traz avanços no que diz respeito ao direito à moradia, à regulação pública e a gestão democrática do solo urbano. De acordo com o Estatuto, cada município deve ficar responsável pela elaboração de um plano diretor - com participação dos movimentos sociais e da sociedade civil por meio dos conselhos municipais da cidade - de modo a fazer valer a função social da propriedade. O Estatuto estabelece, por exemplo, o parcelamento, edificação e utilização compulsórios das propriedades urbanas. "Se você tem uma terra vazia, o município pode te obrigar em um espaço de tempo a construir ou lotear aquele bem, não o deixando sem utilização. O Estatuto regulamentou isso, só que em várias cidades esse instrumento nunca foi aplicado", critica Alex, citando como exemplo o caso do Rio de Janeiro. "No Rio, o que se fez foi obrigar os proprietários não a utilizarem e, sim, a murarem os terrenos vazios. É uma legislação preocupada em evitar que o terreno seja invadido e não que seja aproveitado, o que é um contrassenso que agride os preceitos constitucionais da política urbana". No caso de descumprimento, a lei estabelece que o município deverá cobrar IPTU progressivo e, caso o proprietário não tome providências no sentido de fazer uso de sua propriedade, possibilita a desapropriação com base no pagamento em títulos da dívida pública. "Existe inclusive uma figura legal que chama-se ‘arrecadação de bens abandonados', que até independeria de desapropriação, que ocorre quando você tem que pagar o dono. O bem que você não usa, sobre o qual não exerce posse e não paga impostos por três anos consecutivos pode ser arrecadado. A lei presume que você não quer mais o bem e o poder público não só pode como deve arrecadar o imóvel e reutilizá-lo para fins sociais. Isso está no Código Civil brasileiro", afirma.

"O Minha Casa Minha Vida é baseado no mercado, e ele se interessa em produzir para as maiores rendas para gerar maior rentabilidade. Se você segue a lógica do mercado numa política habitacional, fica mais difícil atender às necessidades habitacionais" (Paula Santoro)

O que ocorre, no entanto, é que a propriedade privada ainda é vista como inviolável no país, e a Justiça tem refletido isso em inúmeros casos, segundo Alex. "Há uma certa complacência do poder Judiciário que, de fato, ainda protege mais a propriedade do que a moradia. É impressionante como esses mecanismos que democratizariam a propriedade não são sequer cogitados. A propriedade privada é um tabu que existe no país", critica Alex. Mas ele ressalta que essa visão não é unânime. Há uma disputa também no Judiciário, e alguns juízes têm dado ganho de causa para quem exerce a posse da terra, mesmo que não detenha sua propriedade. "Teve, por exemplo, um caso em São Bernardo do Campo (SP) em que o juiz não deu uma liminar de reintegração e chamou todos os interessados para uma audiência incluindo o poder público para encontrar uma saída pacífica para o conflito. Ou seja, o juiz se recusou a meramente devolver o imóvel para o dono, entendendo que havia outros interesses a serem protegidos", relata. Mas complementa: "Há alguns juízes de uma mente dita progressista, que são sensíveis a essa noção de função social e levaram essa ideia às últimas consequências. Disseram que o interesse de moradia prepondera. Mas infelizmente são decisões que não se tornaram majoritárias".

Para Alex, a presença desses mecanismos na legislação brasileira dá espaço para que os movimentos sociais pressionem o poder público para fazer valer seus interesses. "Vimos que em alguns momentos os movimentos sociais conseguem usar das possibilidades que a legislação oferece e obtêm vitórias pontuais, soluções para algumas regiões, grupos, assentamentos", diz o professor.

Mobilização e avanços

Exemplo mais recente disso foi o Plano Diretor de São Paulo, cuja votação foi marcada por diversas manifestações de movimentos sem-teto, lideradas pelo MTST, que tiveram algumas de suas demandas atendidas no texto final da lei. Uma delas foi a ampliação da área destinada à produção de moradia popular, as chamadas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), previstas no Estatuto da Cidade. Com a criação de novas Zeis em regiões centrais da cidade, a área total destinada a esse fim praticamente dobrou, de 17 km² para 33 km². Nessas áreas, 60% das construções deverão ser destinadas à moradia para população com renda de até três salários mínimos.

Outra medida foi a instituição de um mecanismo chamado cota de solidariedade, que cria contrapartidas na construção de empreendimentos de grande porte. Pelo texto aprovado, 10% da área de imóveis com mais de 20 mil metros quadrados deverão ser destinados para a construção de habitação de interesse popular. "A cota de solidariedade é uma iniciativa importante para trazer moradias para áreas mais bem estruturadas", opina Evaniza Rodrigues. No entanto, ela lamenta que o texto tenha sofrido alterações que acabaram flexibilizando esse mecanismo. Os movimentos propunham que esse percentual fosse de 20% e que a doação só poderia ser em terras. O texto que acabou sendo aprovado reduziu para 10% e colocou a possibilidade de que a contrapartida seja feita com a doação de um valor equivalente a 10% do imóvel para a construção de moradia popular na mesma macrorregião. "É uma ferramenta para dar condição ao poder público de fazer uma política fundiária, já que ele diz que não faz porque não tem dinheiro para comprar terra. Agora vai ter", diz Evaniza.

Segundo ela, os movimentos reunidos em torno da votação também apresentaram propostas ao governo federal visando a melhorias no Minha Casa Minha Vida. Ela destaca a reivindicação por mais verbas para o Minha Casa Minha Vida Entidades, modalidade do programa que permite que os movimentos sem-teto participem ativamente do planejamento e da construção de suas moradias. Apenas 1% do total de recursos destinados ao programa foi para essa modalidade. "O problema da maioria das políticas públicas é que elas contam apenas com o mercado como parceiro principal, e a gente entende que tem uma energia na população que se organiza", avalia. Para Evaniza, com o mesmo valor destinado pelo governo às construtoras para a construção de apartamentos de 42 metros quadrados para famílias com renda de até R$ 1,6 mil, os projetos contratados através do Minha Casa Minha Vida Entidades conseguem construir apartamentos de até 55 metros quadrados, no mínimo. "Porque não temos lucro, todo o recurso é colocado na melhoria da moradia, em centros comunitários, áreas de convivência", afirma.

Reforma urbana: contraponto à lógica da cidade-empresa

Orlando Santos considera que a mobilização em torno da votação do Plano Diretor de São Paulo trouxe avanços importantes, mas destaca: "Sua aplicação significa manter viva essa mobilização. Mobilização, ocupação, conflitos, são formas de colocar em prática isso que está no papel. É preciso entender que a cidade é construída por uma diversidade de agentes e o poder público joga papel central nisso, mas se não houver mobilização dos agentes populares, são os agentes vinculados aos grandes interesses econômicos que vão se apropriar da cidade e que vão bloquear ou permitir a aplicação de leis que favoreçam seus interesses". Para ele, ampliar a participação popular na gestão das cidades é essencial para avançar com as propostas da chamada reforma urbana. "A reforma urbana contesta a primazia da propriedade privada, a lógica da produção capitalista da cidade. A questão da reforma urbana na conjuntura atual pauta o controle público do uso do solo, a gestão democrática da cidade, a necessidade de garantir a desmercantilização da habitação de interesse social, do solo urbano, garantindo o acesso à moradia a todos os que vivem na cidade", aponta. Segundo ele, a aprovação de leis como o Estatuto da Cidade foi importante passo nesse sentido, mas reitera que sua efetivação depende de uma mobilização que se contraponha à concepção hoje hegemônica de gestão da cidade. "Hoje a política urbana segue a lógica da cidade-empresa, que é uma metáfora que usamos pra dar conta de um processo em que a lógica do gestor passa a ser do empresário que vai buscar áreas da cidade que são atrativas, as oportunidades de empreendimentos, de eventos, capazes de atrair investidores. [Isso ocorre] por exemplo fazendo investimentos seletivos no território da cidade, capazes de atrair investidores, privatizando-se serviços e áreas rentáveis através de parecerias publico privadas. Tem vários mecanismos para tornar áreas atrativas para o mercado imobiliário", critica. Erminia Maricato concorda, e considera que o obstáculo central para a democratização das cidades hoje passa pelo enfrentamento da simbiose existente entre poder econômico e poder político. "Quem define para onde a cidade vai hoje são as grandes empreiteiras, o capital imobiliário articulado politicamente por meio do financiamento de campanha. Tudo isso, somado à falta de incentivo ao transporte coletivo e às isenções de impostos para automóveis, tem como consequência esse descalabro que estamos vivendo", finaliza.