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Privatização, avante!

Além dos já conhecidos casos de tortura e impedimento de pesquisas na área, outra característica foi marcante na ditadura: a intensificação da privatização da saúde. 
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 11/09/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A Comissão da Verdade da Reforma Sanitária está recebendo, por meio de seu site, relatos de vítimas da ditadura para o resgate da história e a busca pela justiça aos trabalhadores da saúde afetados durante o período da ditadura empresarial-militar. Muitos deles foram presos, outros torturados e outros ainda tiveram que se afastar de suas pesquisas e trabalhos, causando grande prejuízo aos estudos e desenvolvimento do setor. Mas esse período também é marcado pela descontinuidade de um projeto para a saúde.

“Quando a gente pensou em organizar a Comissão da Verdade da Reforma Sanitária, foi devido à necessidade de rediscutir esse momento, tendo em vista os desdobramentos que vieram com a democracia. O Sistema Único de Saúde [SUS] atual, por exemplo, não é aquele pensado na Reforma Sanitária, portanto chegou o momento de a gente repensar e entender o que aconteceu e quais foram as limitações que aquele período deixou”, explica a Anamaria Tambellini, presidente da Comissão.

Ao analisar os documentos da 3ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1963, um ano antes do Golpe – e considerada a conferência mais politizada antes da origem da Reforma Sanitária –, identifica-se que o setor apontava para um projeto de país. Nesta conferência, estavam pautadas a análise da situação sanitária nacional e a municipalização, com o objetivo de descentralizar a execução das ações básicas de saúde. Além disso, a articulação das atividades sanitárias nas esferas federal, estaduais e municipais, dando o primeiro passo para a implantação de um sistema nacional de saúde unificado, também se fez presente. Entre os pontos de destaque encontravam-se ainda o incentivo à formação dos trabalhadores da saúde – com ênfase para os de nível técnico –, a reforma agrária aliada ao combate à desnutrição e o incentivo para que as áreas rurais melhorassem suas condições de vida. No entanto, aquele projeto embrionário de proposta para uma saúde mais democrática foi interrompido, assim como o início das reformas de base que marcaram esse período – como apontado na última edição da Revista Poli, de nº 34. Em 1985, a 8ª Conferência Nacional de Saúde recuperou e avançou nas discussões da saúde, mas trouxe consigo os resquícios dos tempos ditatoriais e até mesmo de antes dele, que até hoje não foram superados.

A professora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) Ligia Bahia reconhece que a 3ª Conferência foi um marco, principalmente em relação ao caráter dado ao sistema público de municipalização, mas defende que a 8ª Conferência foi mais progressista. “Elas não são comparáveis por duas razões: a primeira é a participação popular, ausente na Conferência de 1963, e a segunda refere-se ao debate a partir dos conceitos ampliado de saúde e de determinação social da saúde, que permitiram a formulação das diretrizes da Reforma Sanitária e do SUS. O elo entre a 3ª e a 8ª é a mobilização da capacidade técnica de pessoas que trabalhavam em instituições nacionais e internacionais do setor saúde”, explica.

Para José Antonio Sestelo, pesquisador do Grupo de Estudos sobre Empresariamento da Saúde Henri Jouval Jr. (IESC/UFRJ),  o governo militar, assim que assumiu o poder, tratou de desarticular e expurgar os movimentos mais progressistas, e assim as concepções de reformas de base e outras que começavam a entrar em curso caíram por terra, dando origem a outro projeto de país. “De certa forma, o trato da questão social nessa época mimetiza os tempos do Partido Republicano Paulista [1873]. A saúde dos trabalhadores e os acidentes de trabalho não voltam a ser tratados como caso de polícia, mas são deslocados da esfera pública para a privada sob a égide de que a participação social é sinônimo de bagunça e subversão. Nada mais natural, portanto, do que a privatização da assistência médica previdenciária em articulação com a base de apoio empresarial do regime. Essa estratégia garantiu, a um só tempo, o apoio político da elite empresarial tradicional e da nova elite empresarial gestada à sombra dos militares, como também a ampliação da base de apoio popular ao governo por meio da expansão da rede assistencial privatizada”, explica.

Diferindo do apontado no texto da 3ª Conferência, em 1963, menos de uma década depois as iniciativas mudavam o curso das transformações nacionais. Neste contexto, especificamente no caso da saúde, diversas iniciativas simbólicas para caracterizar o que pretendia o regime militar foram implantadas nas décadas de 1970 e 1980. A criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e do Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (Conasp) é um  dos exemplos. Um dos primeiros pontos postos à decadência foi o projeto de universalização da saúde. Vale lembrar que o Inamps só atendia quem tinha emprego formal. Quem não se enquadrasse nesta exigência obtinha atenção à saúde em centros e postos de saúde pública desde que integrasse o perfil dos programas como os de atenção materno-infantil, tuberculose, hanseníase e  outros; ou nos serviços de saúde como as Santas Casas, consultórios e clínicas privadas, desde que tivesse condições financeiras para ser atendido.

Privatização da saúde

Para o professor Sestelo, o período militar foi marcado por forte viés privatista, mas, segundo ele, a história do Brasil nos mostra essa tradição. “Observamos na saúde a comprovação da tese do denominado desenvolvimento tardio, no que concerne ao processo de reorganização das relações entre capital e trabalho. Na época colonial, e mesmo depois da criação das primeiras escolas médicas na Bahia e no Rio de Janeiro, a assistência era obtida mediante pagamento direto. Os que não podiam pagar dependiam da caridade, que era também um excelente campo de prática para aprendizes e iniciantes na carreira médica”, lembra. E completa: “Não havia políticas públicas voltadas para a classe trabalhadora. O quadro começou a mudar no início do século XX por influência do movimento operário urbano. Surgiram as Caixas de Aposentadorias e Pensões que eram iniciativas mutualistas, depois reguladas pela Lei Eloy Chaves, de 1923. A grande virada veio com a crise de 1929 e as mudanças conjunturais no bloco de poder. A partir de 1930, a questão social passou a ser tratada menos como ‘caso de polícia’ e mais como uma questão de interesse do Estado. Os Institutos de Aposentadorias e Pensões formaram a espinha dorsal do sistema previdenciário brasileiro para os trabalhadores do polo dinâmico da economia e, de certa forma, representam um contraponto à prática de assistência médica liberal”.

Fazendo o recorte para o período militar, no livro ‘Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história’ (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e Casa de Oswaldo Cruz, 2010), Carlos Fidelis Ponte, um de seus  organizadores , explica que com a criação do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), em 1974, as empresas de medicina passaram a contar com uma nova fonte de financiamento para construção, ampliação e compra de equipamentos. “Administrado pela Caixa Econômica Federal e constituído principalmente com recursos da Loteria Esportiva, o FAS desembolsou até 1979 cerca de sete bilhões de cruzeiros (moeda de então) para a saúde, dos quais 70% (algo em torno de um bilhão e meio de reais) foram destinados a hospitais particulares situados no eixo Rio-São Paulo”. Tais empréstimos, relata o autor, foram realizados em condições vantajosas para os empresários: “(...) com longos prazos de carência, juros subsidiados e correção monetária abaixo da inflação. Instala-se, assim, um verdadeiro processo de drenagem dos recursos públicos, que passam a capitalizar as empresas de medicina privada, transformando a saúde em um negócio bastante lucrativo”.

Desde sempre, portanto, o cenário da saúde do país é marcado pelo fortalecimento do setor privado. O livro “Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história” mostra ainda que a previdência social, durante o período militar, “patrocinava o desenvolvimento do setor privado mediante a compra de serviços privados de saúde e assim estimulava um padrão de organização da prática médica orientada pelo lucro”. Segundo o texto, a contratação de hospitais e laboratórios privados era remunerada por Unidades de Serviço (US), “modalidade considerada como uma fonte incontrolável de corrupção, já que os serviços de saúde inventavam pacientes e ações que não tinham sido praticadas ou escolhiam fazer apenas as mais lucrativas. A medicina de grupo, outra modalidade de saúde sustentada pela previdência, praticava convênios com empresas que passavam a ficar responsáveis pela assistência médica de seus empregados e, dessa forma, deixavam de contribuir com o INPS [Instituto Nacional de Previdência Social].  O principal interesse desses convênios era diminuir a quantidade de serviços prestados e baratear os custos desses serviços”.

Ligia Bahia aponta ainda que a relação entre a ditadura e a privatização da saúde é “íntima e apaixonada”. “O regime militar poderia ser considerado um precursor da privatização das políticas sociais. A fórmula adotada foi a expansão de coberturas e estímulo à criação de empresas na área da saúde. Um processo de  privatização  sem acompanhamento do ideário da focalização dos anos 1990”, informa. E completa, explicando de que forma isso se consolidou: “ Por meio de duas estratégias: os contratos e convênios da Previdência Social com médicos, dentistas, hospitais, clinicas e laboratórios privados e mediante o estímulo e financiamento de empresas de pré-pagamento (os planos de saúde) para os trabalhadores mais especializados.  Os rastros dessas estratégias permanecem no sistema brasileiro de saúde. É só verificar a terminologia usada pelas empresas e até em teses da área de saúde coletiva.  Conceitos que faziam sentido naquele momento, como o de beneficiários, permanecem em uso”.

Nesse ritmo de privatizações, na 4a Conferência Nacional de Saúde (1967), primeira após a instauração do regime militar, surge a proposta do Plano Nacional de Saúde (PNS), que pretendia vender todos os hospitais para a iniciativa privada. Como aponta Carlos Fidelis Ponte no livro já citado nesta matéria, o decréscimo da participação direta do Estado no atendimento à população e sua consequente substituição pela rede privada torna-se mais evidente nesse período. Os números expostos no artigo mostram que as internações nos hospitais próprios da Previdência Social caíram dos reduzidos 4,2% do total de internações em 1970 para 2,6% em 1976, enquanto os hospitais particulares passaram a responder por quase 98% deste serviço. Além disso, 96% das internações ficavam sob a responsabilidade de empresas de saúde contratadas pelo Ministério da Previdência e Assistência Social. De 1964 até 1974, o número de hospitais com caráter lucrativo foi de 944 para 2.121, aumento que ultrapassou o percentual de 200% em dez anos.

De lá pra cá

Muitos desses atores ainda estão presentes no quadro de gestão do negócio de saúde no Brasil, principalmente as empresas de plano de saúde. Ligia Bahia indica, por exemplo, as empresas Intermédica e  Unimed como exemplos daquelas que ficaram ou se fortaleceram desde os tempos ditatoriais. Entre os principais resquícios daquele período no setor, a professora da UFRJ aponta o lobby das empresas com o setor público. “Ficou a herança de uma rede privada pouco eficiente, mas moldada nas lides da negociação política e, portanto, nos lobbies das empresas, e em um padrão de remuneração que estimula a realização de procedimentos que pagam mais, e não aqueles necessários para a melhoria de saúde da população”, explica.

Para Sestelo, o fim do regime militar tampouco representou plenamente a restauração de um modelo não privatista. “A influência de fatores conjunturais de âmbito nacional e internacional se fez sentir com a crise fiscal dos anos 1970, seu impacto regressivo sobre os países periféricos nos anos 1980 e com a eleição de Collor de Mello nos anos 1990. O Banco Mundial identificou claramente, a partir de 1987, que as atividades de assistência à saúde poderiam ampliar seu potencial como campo de acumulação de capital, agora pautado, cada vez mais, em uma lógica financeira de curto prazo e escasso lastro material”, informa.

Para ele, o cenário político hoje se explica por uma nova geração de representantes da elite colonizada latino-americana que assumiu a prescrição do Consenso de Washington. Além disso, a década de 1990 difundiu internamente a ideia de privatização de ativos públicos como solução para a crise. “A vitória eleitoral de uma coalisão de centro-esquerda em 2003 estabeleceu um limite à expansão de políticas privatistas mais agressivas, mas não reverteu o que havia de fundamental na herança neoliberal”, avalia.

Além disso, o professor lembra que as empresas de planos e seguros de saúde abriram capital nas bolsas de valores e, assim, sistemas de assistência à saúde passaram a ser objeto para auferir lucro em um mercado instável. Ele destaca também a associação dessas empresas ao poder político e às instituições: “Ganharam musculatura e poder de influência política por meio de uma estratégia inteligente de financiamento de campanhas a cargos eletivos. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi capturada por representantes do setor regulado. Grupos econômicos que têm suas estratégias empresariais pautadas no agenciamento e intermediação de transações de compra e venda de serviços de saúde jamais poderiam ser considerados como polo de inovação e promoção de desenvolvimento econômico e social em um país tão desigual como o nosso. Não inovam, não contribuem para reduzir desigualdades, não há sustentabilidade possível em seus modelos que não seja ancorada em subsídios públicos. Por que haveria o conjunto da população subsidiar a acumulação de uma pequena comunidade de negócios insustentáveis?”, pontua.  E completa, pensando nas perspectivas: “Entretanto, não se cogita impor limites a esse tipo de prática que subverte a lógica e os princípios do Sistema Único de Saúde. Em uma visão de perspectiva futura de médio prazo, o verdadeiro horizonte de disputa que se anuncia está na definição política sobre o destino do excedente produzido pelo trabalho e se a parcela dos recursos para investimentos em saúde e educação será aplicada na compra de serviços ou na construção de valores solidários e instituições e ações pautadas pelo direito de cidadania”.