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O outro lado do empresariamento da saúde

Defensores da EBSERH, Parcerias Público-Privadas, Organizações Sociais da Saúde e hospitais filantrópicos lucrativos apresentam os argumentos que sustentam esses modelos de gestão e recebem resposta do público presente no seminário.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 20/03/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Uma das principais críticas ao seminário ‘A gestão da saúde no Brasil’ se dirigia à formatação da mesa ‘Diferentes estratégias de gestão de estabelecimentos de saúde vinculados ao SUS’. Militantes contrários à privatização da saúde no país argumentavam que ali estariam reunidos apenas os defensores de modelos como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), Organizações Sociais da Saúde (OSs), Parcerias Público-Privadas (PPPs) e hospitais categorizados como filantrópicos, como o Sírio Libanês, que, no entanto, lucram. Contudo, é de se perguntar se as posições sustentadas com tranquilidade durante as apresentações seriam as mesmas caso houvesse um debatedor reconhecidamente contrário a elas na mesa. Esse papel coube à plateia do evento que, ao longo de quase duas horas, questionou os debatedores fazendo surgir o contraditório. O debate aconteceu no dia 12 de março e fez parte do evento promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pelo Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (GVsaúde/FGV) na última semana em São Paulo.

Ebserh

A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) é fruto de uma dessas leis aprovadas pelo Congresso no apagar do ano legislativo que foi promulgada pelo ex-presidente Lula no último dia de mandato, em 2011. Hoje, reúne 50 hospitais universitários (HUs) em todo o país, constituindo a maior rede formadora da saúde.  A presidente da EBSERH, Jeanne Michel, abriu sua apresentação caracterizando as diversas controvérsias que envolvem a empresa: “Passa pelo viés ideológico, pelos interesses corporativos, por interesses econômicos e pelo interesse do governo brasileiro em resolver um problema antigo”, conclui.

De acordo com ela, desde 2004 o Ministério da Educação (MEC) buscava soluções para o que se chamava “a crise dos HUs”, que sofreram com o subfinanciamento da universidade pública ao longo da década de 1990. A avaliação do então titular da pasta, Fernando Haddad, era que mesmo com aportes de recursos, os hospitais não saíam do vermelho. Nesse sentido, foi criada no MEC uma diretoria de hospitais universitários e residências em saúde para construir um banco de dados que pudesse dimensionar a real situação e, a partir do diagnóstico, propor planos de investimento público que tivessem impacto na prestação de serviços e na formação.

Michel, que participou da diretoria, lembrou que o trabalho gerou ao Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (REHUF), criado por decreto presidencial em 2010, que aumentou a parcela do financiamento do Ministério da Saúde de 30% para 50%. Contudo, problemas de gestão e força de trabalho não foram resolvidos. “A cultura dos HUs era a de que bastava ser um bom professor para ser bom diretor. Não se contratava e fixava médicos com o salário inicial da universidade e falar em controle de frequência era pecado”. Além disso, graças à multiplicidade dos vínculos de contratações consideradas irregulares pelo Tribunal de Contas da União, os HUs tinham recebido o prazo final de resolver a questão até o fim de 2012.

O governo se adiantou e, em dezembro de 2011, viu a solução encontrada aprovada no Congresso. Surgia a EBSERH. “O único HU que sobreviveu ao período das vacas magras ileso, com boa qualidade e alta performance foi o Hospital de Clínicas de Porto Alegre da UFGRS, criado na forma de empresa pública com contratação CLT. Tem problema? Tem porta dupla? Vamos ver o que tem de bom e ruim e trabalhar numa proposta diferente”, relembra. Para ela, o fato de a empresa ter sido criada com personalidade jurídica de direito privado não justifica as críticas de que seria uma porta para a privatização: “Tem patrimônio próprio com capital social integralmente sobre a propriedade da União e isso acaba com o debate da privatização”. Jeanne lembrou outro elemento criticado na lei que cria a EBSERH: a previsão de que a empresa poderá ser ressarcida pelo atendimento a clientes de planos de saúde que, porventura, se consultem nos Hospitais Universitários por meio da porta dupla. Isso também não configura privatização da coisa pública em sua opinião. Segundo Jeanne Michel, a EBSERH é pura e simplesmente uma “ferramenta de gestão” para apoiar as universidades no gerenciamento de seus hospitais e buscar o casamento entre as necessidades das universidades e do SUS. 

OSs

Em 1998 o estado de São Paulo aprovou a lei que qualifica uma entidade como Organização Social (OSs). Dezessete anos depois, as OSs gerenciam 107 serviços públicos na área da saúde. Dos 91 hospitais públicos, 40 são administrados por OSs, que faz a gestão ainda de 58 ambulatórios médicos de especialidades (AMEs), sete unidades de reabilitação, três serviços de diagnóstico por imagem, três de análises clínicas, uma central de armazenamento de insumos e outra central de regulação da oferta de serviços que operacionaliza a estrutura em rede dos equipamentos estaduais.

Esse foi o cenário caracterizado por Eduardo Ribeiro Adriano, representante da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), que apresentou a “parceria exitosa” no evento.  “Para entendermos do que estamos falando quando falamos de OSs a primeira ressalva é que, por definição, se trata de instituição privada sem fins lucrativos que, por força de lei específica de cada âmbito de governo, se apresenta pleiteando a qualificação de OS para ser autorizada a firmar contrato de gestão. No caso de São Paulo, todos os equipamentos de saúde são próprios e, de forma alguma, perdem essa qualidade 100% SUS gratuito”, argumentou.

Segundo Adriano, a OS que deseja administrar um serviço estadual de saúde deve participar de uma convocação pública apresentando seu projeto assistencial para a unidade. Esse projeto passa por análises da SES, que emite um parecer técnico enviado ao gabinete do secretário estadual de Saúde que tem a última palavra para decidir a OS vencedora. A decisão é encaminhada em até cinco dias para o Tribunal de Contas do Estado.  

Como coordenador de Gestão de Contratos de Serviços de Saúde, Eduardo explicou que o contrato de gestão firmado entre estado e OSs é baseado em metas e resultados que não se restringem a metas de produção e informou que todos os contratos e seus termos aditivos estão disponíveis no portal da transparência estadual. “Mensalmente acompanhamos os indicadores, a cada trimestre temos reuniões com cada um dos gestores dos 107 equipamentos das quais participam também representantes do departamento regional de saúde e técnicos da coordenadoria da gestão de contratos para fazer realinhamentos contratuais que se dão através de termos aditivos”, disse. A prestação de contas envolve órgãos internos e externos, como o Tribunal de Contas, a Secretaria estadual de Fazenda, o Departamento Nacional de Auditoria do SUS (DenaSUS), a Assembleia Legislativa e o Ministério Público. Nessa lista, contudo, não há espaço para as instâncias de controle social do SUS.

PPP: Hospital do Subúrbio

Inaugurado em 2010, o Hospital do Subúrbio foi a primeira unidade hospitalar pública do Brasil a funcionar por meio de Parceria Público-Privada (PPP). Uma licitação feita pela Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab) teve como ganhadora a empresa Prodal Saúde S.A, que comanda o serviço até 2020, quando vence a concessão que pode ser prorrogada por mais dez anos. Instalado próximo à BR 324, principal via de acesso a Salvador, na região conhecida como Subúrbio Ferroviário, que abriga 22% da população da capital baiana, o hospital atende quase completamente a casos de urgência e emergência de alta complexidade.

O diretor técnico do HS, Jorge M. Mota, falou pela empresa em uma apresentação que, como a do representante da SES-SP, colocou no centro o contrato. “Independente da questão da privatização, [o Hospital] fortalece o SUS porque seja amarrado contratualmente, seja definido no seu projeto de construção, o foco são os princípios do SUS”, afirmou. Segundo Mota, a PPP não difere das OSs, uma vez que tem que atender a metas quantitativas (70%) e qualitativas (30%) e está sob auditoria de comissão específica da Sesab, do DenaSUS, do Tribunal de Contas e, ainda, contrata às próprias expensas um verificador independente do contrato. Também aqui, nem sinal do controle social, aparentemente substituído por uma meta qualitativa de “satisfação do usuário”.

Filantrópico, mas lucrativo

Aproximadamente R$ 1 bilhão é o montante da renúncia fiscal executada anualmente pelos seis “hospitais de excelência” inseridos no Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS). Essas entidades –Hospital do Coração, Oswaldo Cruz, Albert Eisntein, Samaritano e Sírio Libanês e Moinhos de Vento – foram certificadas como “beneficentes de assistência social em saúde” (Cebas-Saúde) a partir da lei federal 12.101 de 2009 e, por isso, podem apresentar projetos ao Ministério da Saúde que serão executados com os recursos da isenção fiscal (contribuições sociais) a que a certificação dá direito. Cabe ao Proadi coordenar esses projetos, que devem se dividir entre de apoio ao SUS (70%) e de assistência médica (30%). Divulgado recentemente em matéria do jornal O Globo, um bom exemplo de projeto de apoio foi a compra pelas entidades beneficentes de um software de gestão para registro e controle de consultas, internações e materiais ao custo de R$ 34,5 milhões que, depois de quatro anos, sequer conseguiu ser implantado integralmente nos hospitais da Rede Federal, no Rio.

Quem representou a experiência das entidades no evento foi o superintendente do Hospital Sírio-Libanês, Gonzalo Vecina Neto, que abriu sua fala exortando os presentes a ultrapassarem a ignorância: “Nós, sociedade brasileira, somos ignorantes de uma série de questões. O desafio é suplantar a ignorância. Quando vejo em alguma discussão sobre Fundação Estatal algum idiota falando que aquilo é privatização ou que o poder público, quando terceiriza, entrega... O que está entregue é a gestão, não a política. Não saber a diferença entre os dois é ignorância. Existe um mar de ignorância que temos que vencer”. 

Único representante do setor privado que, de fato, se expôs a ponto de gerar verdadeira polêmica no evento, Gonzalo defendeu ainda uma revisitação da discussão sobre o lucro na filantropia. “Nós vivemos em uma sociedade capitalista e na saúde tem lucro. Ponto. Como resolve essa questão?”, questionou, completando: “As entidades filantrópicas são entidades não lucrativas. Qual é o problema das não lucrativas em relação às lucrativas? As lucrativas têm dono. Essa entidade não lucrativa tem uma relação diferente com a sociedade e deve ter uma regulação diferente. Além disso, as não lucrativas tem desobrigações no recolhimento de impostos, imunidades e isenções que compõem uma renúncia fiscal importante para a sociedade e nós fazemos de conta que isso não existe. Temos que voltar a falar de filantropia e de isenção fiscal porque quando você pega um hospital com capacidade de incorporar tecnologia que oferta 60% de 200 leitos para o SUS, [ele recebe do SUS] um terço do custo. Como equilibra a conta? O resultado é ‘pilantropia’”.

O superintendente do Sírio relembrou que os hospitais de excelência “com poder político importante” levaram a discussão de apuração dos custos ao Governo Federal e, foi assim que o presidente Lula assinou um decreto que depois virou a lei que cria a figura das Cebas-Saúde. “São hospitais que não fazem 60% de seus serviços para o SUS mas que devolvem a renúncia para a sociedade em serviços que são medidos pelo custo. Se apura o custo e se apura a renúncia e uma coisa tem que ser igual a outra”, afirmou. De acordo com ele, em 2015 o Sírio Libanês vai executar uma renúncia de R$ 140 milhões. “O grande projeto do Sírio está em educação. Ano passado, tivemos mais de 20 mil alunos em cursos presenciais e semipresenciais, sem contar os a distância”, informou.

Alinhavando sua linha de argumentação, ele acha que a sociedade brasileira faz uma grande confusão com as noções de público, estatal e privado: “Nem tudo o que é estatal neste país é público, e não é de agora. O privado pode ser público. As Santas Casas são entidades privadas públicas, com certeza. Acho que os hospitais de excelência com o modelo que estão oferecendo para a sociedade são instituições públicas com certeza”.

Sobre modelos de gestão, tema da mesa que integrou, Gonzalo entende a contratualização como uma “saída inteligente” ao subfinanciamento, embora não resolva a questão do controle social. Nessa seara, ele entende que a relação das entidades que recebem renúncia com o SUS é um desafio, principalmente no que diz respeito à transparência e participação, mas se posicionou contra “esse modelo de controle social que construímos na Constituição e na lei específica” que, a seu ver, fortaleceu o corporativismo dos profissionais da saúde. Segundo ele, novos modelos de gestão também vêm para dar uma resposta a mudanças que ocorreram no mundo nos últimos 30 anos garantindo maior eficiência ao poder público. “Não estamos buscando terceirizar a gestão porque somos privatistas mas porque precisamos aumentar a eficiência do Estado. Isso não implica em entregar, desde que haja um Estado com competência para definir políticas e auditar. Tem soluções dentro do Estado, como as fundações estatais de direito privado, as empresas públicas, o serviço social autônomo. Podem ser alternativas às OSs e PPPs? Podem. Mas é preciso tomar  a decisão de que é essa a saída por causa dessa confusão que se faz entre o que é público e o que é privado no Brasil”.

Debate

Ironizando a afirmação de Gonzalo Vecina Neto de que há muita ignorância na saúde, o público apresentou diversos argumentos contrários à visão predominante na mesa. A começar pela vice-presidente da Abrasco e  coordenadora da mesa, Eli Iola Gurgel, que questionou se seria possível separar o empresariamento da saúde da tendência crescente à mercantilização: “É possível pensar que a mercantilização não incide nas dificuldades de acesso da população à saúde como um direito universal?”.

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alcides Miranda lembrou que as diferenças entre o direito público e o direito privado não se resumem a questões apontadas como obstáculos à eficiência, como o regime de trabalho estatutário e regime de compras por licitação. “O marco do direito público regula a res publica, o interesse público, o direito social. O marco do direito privado versa sobre direito de consumo, relações de outra natureza que são compostas nessa complexidade. Quando uso uma justificativa de que vou transmigrar uma institucional idade do direito público para o privado porque a do público é rígida, não estaria colocando a gestão acima da política?”, observou.

Miranda também afirmou que o “modelo” usado pela EBSERH, o Hospital de Clínicas da UFRGS, tem problemas que vão muito além da dupla porta, pois das ocupações médicas, 25% não têm vínculo com o SUS, 56% tem um pé no SUS e outro nos planos de saúde, restando para o Sistema Único uma exclusividade de apenas 18%. Segundo ele, embora os profissionais tenham regime de dedicação exclusiva, há um andar inteiro reservado a consultórios particulares no hospital. Isso ocorreu graças à justificativa de que, para fixar o médico, é preciso trazer “um pouco do mundo” dele para o hospital. Sendo o mundo dos médicos, naturalmente, a prática privada da medicina. “O andar que tem plano de saúde serve para esses jogos do SUS utilitário. Quando é necessário transferir custo, é SUS. Quando é interessante, há o manejo privado. É uma das características desse tipo de empresariamento que não é dito muitas vezes nos discursos. A expropriação do valor da política pública pode ter desdobramentos no longo prazo invisíveis para aqueles que só enxergam o presente na lógica do pragmatismo utilitário”, concluiu.