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Conflitantes visões sobre a gestão da saúde no Brasil

Capital estrangeiro na saúde, hospitais filantrópicos lucrativos, parcerias público-privadas, organizações sociais, fundação estatal de direito privado e Ebserh: a lista sintetiza alguns dos assuntos que dividiram participantes e público em evento promovido por Abrasco e FGV que debateu a gestão da saúde no país.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 20/03/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Na semana passada, a Avenida Paulista foi palco de duas manifestações que condensaram posições aparentemente irreconciliáveis sobre a política brasileira. No dia 13, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) organizaram uma marcha que reuniu 300 mil militantes pautados contra o ajuste fiscal, a favor da regulação da mídia e do fim do financiamento privado de campanha. No dia 15, aproximadamente um milhão de pessoas vestiram verde a amarelo para, dentre outras coisas, clamar pela volta da ditadura militar e pelo impeachment de Dilma Rousseff. Não muito longe da famosa avenida, nos dias 11 e 12 de março, o auditório da Fundação Getúlio Vargas (FGV) foi palco de muitas divergências a respeito das variadas formas de gestão (ou privatização) que existem hoje na saúde no Brasil. Promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pelo Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (GVsaúde/FGV), o seminário reuniu debatedores com posições tão contrastantes que, com poucas horas de diferença, foi possível ouvir uma defesa exaltada dos hospitais filantrópicos lucrativos e a óbvia constatação do paradoxo que se encerra em tal noção.  Reunimos a seguir algumas das posições mais progressistas defendidas por lá. Além disso, você acompanha aqui a cobertura completa da mesa mais polêmica do evento.  

“O SUS está descalço”

Citando Eduardo Galeano, a professora da Universidade de São Paulo (USP) Amélia Cohn abriu sua fala dizendo que “a justiça, como a serpente, só morde os descalços”. Anunciando que retomou os estudos sobre a Reforma Sanitária Brasileira, Cohn abordou as diferenças entre a efervescência da redemocratização na década de 1980 e o momento político atual. Uma primeira distinção estaria na organização dos atores que tinham reivindicações, seja em partidos políticos, seja em outras entidades de classe, mais prestigiadas à época, que colaboraram para articular as propostas do Sistema Único de Saúde.  “Mas essa proposta pecou de outro lado porque se centrou nos avanços da organização institucional apoiado pelos setores de ponta mais organizados da sociedade e ficou relativamente de costas para a sociedade de um modo geral”, analisa. O resultado teria sido a negligência da dimensão política do SUS, o que causou pouca ressonância do conceito de direito à saúde na população. “Não só aquela reforma sanitária foi bem-sucedida, mas foi articulada a um processo mais amplo de concepção social, de nação. A reforma da saúde era a reforma da sociedade. Avançar na saúde hoje não é reforma da sociedade por mais que a gente queira. Todo mundo pode sair daqui para a Paulista chamar a sociedade pra apoiar o SUS. O problema está na sociedade, também. E não é só um problema ideológico”. Amélia exemplificou dizendo que na novela de maior audiência da televisão brasileira, um personagem disse a outro que, sem plano de saúde, ele ficaria a mercê da “caridade pública”. “Isto é a formação de uma mentalidade de que saúde como direito não existe”, concluiu.

Outro problema identificado pela professora está na relação entre o público e o privado na saúde, porque o mercado estaria mal acostumado às benesses do Estado, através de isenção de impostos, facilidades na importação de equipamentos e insumos e, principalmente, pela própria existência e ampliação de um mercado consumidor de planos de saúde e serviços privados.

“O problema das formas de gestão dos serviços próprios de saúde é a introjeção dentro do setor público estatal da racionalidade privada de custo-benefício, de custo-efetividade. O Estado da administração direta é ineficiente e é preciso empresariar a gestão do bem público estatal. Uma instituição pública e estatal gerida por OS está voltada efetivamente para o acesso universal como um patrimônio social ou não? O setor filantrópico é lucrativo ou não? Os setores privados são privados? Eles competem no mercado e correm os riscos do mercado? É isso que eu estou chamando dessa articulação perversa do público e privado com crescente ambivalência entre ambos”, explicou.

Amélia Cohn concluiu que, diante da utopia dos anos 1980, o presente se apresentou como distopia. Dentre as consequências, o Movimento da Reforma Sanitária se vê encurralado em uma postura mais reativa do que propositiva.  “Cada vez mais engolimos goela abaixo o sapo da segmentação e da fragmentação do sistema e da sociedade. Nesta sociedade desorganizada – e a desorganização responde a uma lógica –, quais as lideranças que podem organizar uma resistência propondo um projeto de nação e de sociedade mais justa?”, questionou.  

“Reconstruir movimento social passa por uma disputa cultural”

Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Gastão Wagner de Sousa Campos acredita que a saída da crise do SUS está articulada à revitalização das políticas públicas sociais. Ele afirmou que o século XX assistiu à falência dos sistemas socialistas totais, que estatizaram e pensavam que o público era equivalente a Estado. Ao contrário, povos ao redor do mundo protagonizaram lutas por direitos com Estado, como o Bem-Estar Social, ou sem Estado, avançando na equidade de gênero, racial e na luta por liberdade sexual, por exemplo. “Precisamos reconstruir movimentos sociais e atores sociais do direito à saúde dentro do espectro da valorização de políticas públicas. Elas são fator civilizatório e põem limites à ganância que o empreendedorismo radical do mercado. Sem política pública nas cidades, na educação, na saúde, nós vamos para o ralo”, argumentou.

“Vivemos uma encruzilhada”

Para o presidente da Abrasco, Luís Eugenio Portela , o Movimento da Reforma Sanitária está em uma encruzilhada. De um lado, a perspectiva real de consolidação da fragmentação e segmentação do sistema de saúde que redundaria na americanização da saúde no país. Do outro, avanços no diálogo com atores que historicamente defenderam planos de saúde privados como os sindicatos que, segundo o presidente, demonstraram com o engajamento no Movimento Saúde +10 (que buscou ampliar o financiamento federal no SUS) disposição para rever bandeiras. “Me parece que vivemos uma encruzilhada mas essa tendência não é inexorável. Ela pode ser combatida pelo movimento na hora em que milhares de pessoas experimentam os limites dos planos de saúde. É possível que na luta política pela democracia, pela igualdade, gente possa entrar em sintonia mais estreita com esses movimentos que surgiram em junho de 2013”.