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Câmara deve votar terceirização hoje sob protesto de representantes dos trabalhadores

Entidades contrárias ao projeto alertam que a aprovação do projeto de lei 4330 pode significar perda de direitos para os trabalhadores.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 07/04/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Está marcada para hoje, dia 7 de abril, a votação de um projeto de lei que regulamenta a terceirização na Câmara dos Deputados. O projeto em questão, o PL 4.330/2004 , é polêmico. A controvérsia pode ser medida pelo rol de opositores à proposta, que inclui desde centrais sindicais e movimentos sociais como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – que marcaram para o mesmo dia manifestações contrárias ao projeto em diversas capitais do Brasil – até atores globais como Wagner Moura, Camila Pitanga, Dira Paes e Osmar Prado, entre outros integrantes do Movimento Humanos Direitos que gravaram depoimentos para uma campanha contra o PL 4.330. A lista inclui ainda entidades de classe como a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), entre outras. Do outro lado, entidades patronais como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e centrais sindicais como a Força Sindical e a União Geral dos Trabalhadores (UGT) apoiam o projeto.

São vários os pontos polêmicos, mas o principal deles é sem dúvida a possibilidade de terceirização de trabalhadores empregados em setores considerados atividade-fim das empresas. Hoje, de acordo com a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que rege a terceirização no Brasil há duas décadas, a prática só é permitida para contratação de trabalhadores temporários e nas chamadas atividades-meio. Guilherme Feliciano, diretor de Prerrogativas e Assuntos Jurídicos da Anamatra, explica: “Digamos que uma metalúrgica precise de alguém que forneça refeição para seus empregados ou que faça limpeza do pátio. Antigamente a empresa contratava esse pessoal todo. Com a terceirização, as empresas passam a contratar outras empresas para oferecer esse serviço. Elas não precisam se dedicar a áreas que não são da sua especialidade”. O PL 4330 pretende acabar com a distinção entre atividade-fim e meio. Em seu artigo 4°, o projeto afirma que o contrato de prestação de serviços entre a contratante e a prestadora dos serviços terceirizados pode tratar de atividades “inerentes, acessórias ou complementares à atividade econômica da contratante”.

Essa é uma demanda antiga do setor patronal. Atualmente, aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação da empresa Cenibra, do ramo de produção de celulose, questionando a constitucionalidade da Súmula 331. O argumento é que, ao proibir a terceirização da atividade-fim, a Súmula do TST fere o princípio constitucional da livre iniciativa. “É curioso. A Justiça do Trabalho atuou durante 20 anos com esse paradigma e agora algum gênio descobre que é inconstitucional?”, questiona Feliciano. A CNI é uma das entidades que vem pressionando pela aprovação do projeto de lei. No documento ‘Terceirização: esclarecimentos necessários’ , de 2009, a confederação afirma: “A inexistência de uma conceituação e possibilidade de verificação objetiva do que efetivamente seja atividade meio e atividade fim causa insegurança jurídica e uma série de transtornos às empresas, com fiscalizações e decisões judiciais extremamente discrepantes”.

Segundo Feliciano, o PL 4330 defende a ideia de que qualquer serviço pode ser terceirizado, desde que por uma empresa “especializada” naquela área. “Esse é o pulo do gato”, afirma Feliciano, e completa: “Se esse projeto for transformado em lei, pode ocorrer de vir uma empresa, por exemplo, que diga que vai prestar serviços especializados de fornecimento de mão de obra em condução de aeronaves. Aí você imagina o que é isso: um trabalhador que não foi treinado pela companhia, em relação ao qual a companhia não tem maiores responsabilidades e que efetivamente será o responsável pela segurança de 200 pessoas. Hoje isto é impossível porque conduzir aeronaves é atividade-fim de qualquer empresa de trafego aéreo. Se o PL for aprovado, desde que se entenda que exista uma empresa especializada no fornecimento de pilotos, vamos poder ter terceirização até disso. Isso é perigoso para a sociedade”, alerta. Para ele, o preferível seria definir em lei o que é atividade-fim e o que é atividade-meio, e não acabar com essa distinção. “Se o patronato entende que isso é inseguro, discutamos na lei o que são atividades fim e meio”, defende. Para ele, a tendência é que o número de terceirizados exploda com a aprovação da lei.

Terceirizados: a superexploração do trabalhador em números

Essa ampliação preocupa os opositores ao projeto de lei, uma vez que os dados indicam que a os terceirizados em média trabalham mais, ganham menos e são mais propensos a sofrer acidentes de trabalho do que os trabalhadores contratados diretamente pelas empresas. De acordo com dados de 2013 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), os terceirizados somam 12,7 milhões de trabalhadores, 26,8% do mercado formal de trabalho brasileiro. Segundo o dossiê ‘Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha’ , elaborado pela CUT, os terceirizados trabalham três horas por semana a mais do que os efetivos para ganhar um salário 25% menor, em média; a taxa de permanência no trabalho entre os terceirizados é de 2,7 anos, três anos a menos do que os efetivos, sendo que a rotatividade é de 64,4%, quase o dobro do que entre os efetivos. Além disso, afirma Graça Costa, secretaria de Relações de Trabalho da CUT Nacional, de cada dez acidentes de trabalho, oito envolvem terceirizados; e de cada cinco trabalhadores que morrem em acidentes de trabalho, quatro são terceirizados.

Para a CNI, porém, a ampliação das possibilidades de terceirização de mão de obra é o melhor dos mundos. No mesmo documento citado no início desta matéria, a entidade defende a terceirização, argumentando que ela permite às empresas “incorporar melhor técnica e tecnologia, obtendo produtividade e qualidade e diminuindo custos”. Segundo levantamento da CNI, 91% das empresas que terceirizam o fazem para reduzir custos. “Trata-se de um círculo virtuoso, onde menos custo gera maior demanda e, portanto, necessidade de maior investimento das empresas, criando-se também mais oportunidades de emprego. Assim, há dois ganhos claros para toda a sociedade: mais inclusão social pelo consumo e mais empregos”. Os opositores do projeto de lei contestam os argumentos com base nos dados sobre a situação dos terceirizados. O dossiê da CUT calcula que se a jornada dos trabalhadores terceirizados fosse igual à jornada de trabalho dos contratados diretamente, seriam criadas 882.959 vagas a mais de trabalho. Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo em 2013, o sociólogo da Universidade de Campinas (Unicamp) Ricardo Antunes argumenta que a terceirização não gera empregos, e sim o contrário. “O que ocorre é que onde três trabalham com direitos e por tempo não determinado, aproximadamente terceirizados acabam por realizar o mesmo trabalho, padecendo de maior intensificação e jornadas mais longevas. Desse modo, em vez de efetivamente empregar, a terceirização desemprega”, escreveu.

Quem paga a conta da redução de custos?

Para Guilherme Feliciano, os dados apontam que os terceirizados acabam pagando o preço pela redução dos custos dos empresários. “Para quem sabe ler as entrelinhas, os dados demonstram que uma das razões pelas quais a mão de obra terceirizada é mais barata é porque há menor investimento no setor de segurança e saúde do trabalho. Se hoje isso é contido pela jurisprudência na dimensão das atividades-meio, com a aprovação do PL 4330 vai se generalizar. A tendência é que o Brasil, que já foi campeão mundial de acidentes de trabalho na década de 1970, volte a concorrer a esse ‘magnífico’ titulo”, afirma. 

Graça Costa concorda, lembrando de outro fator de redução dos custos a partir da terceirização: o menor salário dos trabalhadores terceirizados em relação aos efetivos. “Se essa lei passar da forma como está, vamos precarizar todo o mercado de trabalho. Vamos ter uma queda na renda dos trabalhadores e isso tem um impacto econômico no desenvolvimento do país”, alerta. Para ela, terceirização implica perda de direitos para os trabalhadores. “Hoje no Tribunal Superior do Trabalho temos mais de 20 mil ações de trabalhadores cobrando FGTS, 13° salário, verbas trabalhistas e salários que deixaram de ser pagos no momento em que se encerrou o contrato da empresa com os trabalhadores”, revela. O que ocorre hoje com os trabalhadores terceirizados no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), para Sebastião “Cacau” Pereira, da Secretaria Executiva da CSP-Conlutas, é um exemplo dos riscos envolvidos na terceirização de trabalhadores. “Basta ver o que está acontecendo com as empreiteiras que estão encerrando suas atividades em meio à Operação Lava Jato. Temos milhares de trabalhadores sendo demitidos sem qualquer garantia de pagamento dos direitos trabalhistas. A empresa contratante, Petrobras, não está repassando o dinheiro das empresas envolvidas em corrupção que, por usa vez, estão abandonando o trabalhador ao ‘deus dará’!”, exemplifica.

Essa é outra questão que vem gerando controvérsia em torno do projeto de lei 4330. Pelo texto atual, a instituição que contratar uma empresa terceirizada para determinado serviço fica subsidiariamente responsável pela garantia de direitos trabalhistas dos trabalhadores terceirizados. A Força Sindical defende que essa responsabilidade deve ser solidária. A diferença é que, no caso da responsabilidade subsidiária, o terceirizado só pode cobrar o pagamento de direitos trabalhistas da empresa contratante após se esgotarem os bens da empresa que terceiriza; na responsabilidade solidária, o trabalhador pode cobrar o pagamento de direitos trabalhistas tanto da prestadora terceirizada de serviços quando da empresa contratante. Segundo Sérgio Leite, da Força Sindical, que apoia o PL 4330, o relator do projeto, deputado Arthur Maia (PMDB-BA) se comprometeu a incorporar uma emenda do deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP) durante a votação do projeto com essa alteração.

Representação sindical no foco dos debates

Como condição para o apoio da Força Sindical ao projeto, segundo Sergio Leite, outro ponto que o relator da proposta se comprometeu a incorporar ao texto por meio de uma emenda foi uma mudança em relação à sindicalização. Segundo ele, no caso de uma empresa contratar outra para prestar um serviço que pela legislação de hoje seria considerado atividade fim, esses trabalhadores deverão ser representados pelo mesmo sindicato dos trabalhadores contratados diretamente pela empresa, com os mesmos direitos. “Para nós, essa é a principal trava da possibilidade de se utilizar a terceirização como forma de precarização das relações de trabalho”. Já para Guilherme Feliciano, essas emendas devem mudar pouco a situação: “O ponto de partida é que não são da mesma categoria. Hoje existem inclusive sindicatos dos trabalhadores das empresas prestadoras de mão de obra. Qual é a garantia que eles têm lá adiante que uma empresa prestadora de serviços de mão de obra de condução de aeronaves, por exemplo, será considerada da categoria dos aeronautas? Não tem a menor garantia disso”, argumenta.

Sebastião “Cacau” Pereira acredita que a Força Sindical está “semeando ilusões” ao defender o projeto. “Que confiança podemos ter num Parlamento tão corrompido como o atual, tão conservador na sua composição, com um peso muito grande de empresários?”, questiona. Ele não acredita que o projeto altere a situação atual dos terceirizados em relação à representação sindical, que para ele é precária. “Muitos dos sindicatos que representam exclusivamente os terceirizados atualmente foram criados pelos próprios patrões, num desrespeito à autonomia e à liberdade sindical do trabalhador. A terceirização tem esse objetivo, também perverso, que é dividir o trabalhador no seu local de trabalho, com diversos sindicatos representando uma mesma categoria”, critica. Graça Costa concorda e acredita que uma consequência da ampliação da terceirização que deve acontecer com a aprovação do PL 4330 é o enfraquecimento dos sindicatos tradicionais. “Isso vai desmontar a organização dos trabalhadores porque quanto mais empresas terceirizam, mais pulverizada vai ficar a organização sindical”, opina.

Alternativas

O PL 4330 não é o único projeto de lei sobre a terceirização que tramita no Congresso Nacional. A CUT defende um projeto alternativo, o PL 1621/07 , apresentado pelo deputado federal Vicentinho (PT-SP). Graça Costa explica que o projeto foi construído pela CUT e difere do PL 4330 em vários pontos, principalmente em relação à terceirização da atividade fim, que continua proibida. Além disso, o PL 1621 defende que os terceirizados tenham os mesmos direitos dos efetivos, o mesmo salário e sejam representados pelo mesmo sindicato da categoria preponderante na empresa contratante. “Se os sindicatos fortes hoje como o dos bancários e dos metalúrgicos tiverem na convenção coletiva deles o direito de representar também os terceirizados, teríamos aí a garantia de que na negociação uma entidade forte vai poder proteger os terceirizados”, argumenta. Por fim, o projeto apresentado pela CUT defende ainda a responsabilidade solidária sobre os terceirizados. “Se a empresa vai terceirizar, que ela se responsabilize por todos os direitos e condições de trabalho dos trabalhadores da empresa terceirizada”, diz Graça.

Embora o deputado Arthur Maia tenha dito após uma reunião com centrais sindicais que já contava com o apoio da maioria dos representantes dos trabalhadores ao projeto de lei 4330, o fato é que o cenário é mais polarizado do que ele alega. Enquanto Força Sindical, UGT, Nova Central Sindical e CSB apoiam o PL 4330, a CUT, a Intersindical e a CTB são contra ele, sendo que a CUT defende um projeto de lei alternativo. Já a CSP-Conlutas tem posição contrária inclusive às tentativas de alterar o PL 4330. “A saída, não temos dúvida, é lutar para barrar o projeto como um todo e não ficar discutindo remendos num projeto que é globalmente nocivo ao trabalhador”, defende Sebastião Cacau. O sindicalista é crítico também da proposta apresentada pela CUT, por entender que ela naturaliza que a terceirização pode ser feita de forma justa. “A legislação trabalhista brasileira já é por demais flexível em relação aos direitos do trabalhador. No Brasil não existe estabilidade no emprego, há uma ampla gama de formas de contratação que buscam burlar a Consolidação das Leis Trabalhistas e a regra do concurso no serviço público. Nós somos contra aceitar que a terceirização e esses mecanismos flexibilizadores sejam encarados como normais, apenas para satisfazer a sede de lucro dos empresários”, conclui.