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Sentidos da participação

Cenário político adverso para os direitos sociais e falta de efetividadedas deliberações são desafios para o processo da 15º Conferência Nacional de Saúde.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 10/06/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Faltam cerca de seis meses para a realização da 15ª Conferência Nacional de Saúde e o cenário não poderia ser mais adverso para o Sistema Único de Saúde (SUS) e para as políticas sociais de modo geral. Basta olhar para a lista de medidas que incidem direta ou indiretamente sobre direitos sociais implementadas até agora em 2015: primeiro, em janeiro, o Executivo sancionou a lei 13.079, alterando a Lei Orgânica da Saúde para permitir a participação do capital estrangeiro na assistência à saúde; em março, foi a vez de o Congresso Nacional aprovar a Emenda Constitucional 86, do orçamento impositivo, que torna obrigatória a execução das emendas parlamentares e altera a metodologia de financiamento do SUS, reduzindo o montante de recursos federais destinado à saúde pública; em abril foi a vez do Judiciário, com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou legal a terceirização da gestão dos serviços de saúde através das chamadas Organizações Sociais, que eram alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que tramitava desde 1998. Várias outras ainda aguardam aprovação, como é o caso das medidas provisórias 664 e 665, que dificultam acesso a benefícios previdenciários e trabalhistas, como pensão por morte e seguro-desemprego, e esperam apreciação do Senado Federal, assim como o projeto de lei 4330, que libera a terceirização para todas as atividades. Houve ainda o desarquivamento da Proposta de Emenda a Constituição 451/14, de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que pretende incluir o direito aos planos de saúde na Constituição Federal, e tramita em regime especial na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.  

“Essas questões nos preocupam bastante, de fato é um contexto muito adverso”, opina Haroldo Pontes, secretário-geral da 15ª Conferência Nacional de Saúde. Segundo ele, boa parte dessas medidas receberam posicionamentos contrários do Conselho Nacional de Saúde, e cita como exemplo a PEC 451. “Ela é extremamente danosa para o SUS, porque implica a contratação de plano de saúde por todo e qualquer empregador. O conselho tem uma posição completamente contrária.

Ele tem inclusive há muito tempo expressado posição contrária à isenção fiscal, aos planos de saúde”, afirma. De acordo com Haroldo, muitos desses posicionamentos foram incorporados ao documento orientador da Conferência , divulgado no dia 15 de maio. “O país”, diz o documento, “enfrenta uma crise econômica e política que favorece propostas conservadoras e antidemocráticas, as quais colocam em risco os pilares do Estado de Direito e os avanços políticos e sociais das últimas décadas. O momento exige o compromisso efetivo do Estado, dos governos e da sociedade na defesa da democracia e da cidadania”. Mais a frente, o documento orientador incorpora bandeiras mais amplas como necessárias para o avanço da reforma sanitária, como uma reforma política com controle social do processo eleitoral e financiamento público das campanhas eleitorais e que amplie a participação social mediante plebiscitos e referendos; a reforma tributária; a reforma do Judiciário; e a democratização dos meios de comunicação, bem como outras pautas mais imediatas, como o repúdio às medidas provisórias 664 e 665.  “Como isso vai repercutir, aí é da correlação de forças, é da luta. É óbvio que o Congresso não é obrigado a aprovar aquilo que aprovamos, mas o conselho está lutando por isso, está se posicionando”, garante.

Limites

Ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior acredita que, do ponto de vista político, o documento é interessante. “É um documento bonito, com aspectos muito interessantes, chamando atenção para a necessidade das reformas que a gente defende, reforma política, tributária, democratização da comunicação”, afirma. Mas para ele, o documento passa ao largo do cerne das questões que coloca. “É óbvio que não tiveram a menor preocupação em entrar nas grandes polêmicas. É um documento absolutamente genérico que não vai aos pontos nevrálgicos e aos grandes temas”, critica Francisco. Uma omissão importante segundo ele é a questão da terceirização da gestão dos serviços de saúde. “Ele faz referência ao projeto de lei da terceirização que agora está no Senado federal, manifestando posição contrária, mas não se manifesta contra a terceirização da gestão do sistema pelas organizações sociais. Em 27 páginas não há uma única citação às organizações sociais, às Oscips, a Ebserh, à fundação de direito privado. É um documento oficial, de governo”, reclama.

A enxurrada de ameaças a direitos sociais pautou também os debates da 19ª Plenária Nacional dos Conselhos de Saúde, Entidades e Movimentos Sociais e Populares, ocorrida nos dias 13 e 14 de abril em Brasília. “A conjuntura invadiu a plenária”, diz Geandro Prinheiro, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A carta resultante da plenária trouxe moções de repúdio a todas as questões apresentadas no início dessa matéria, além de solicitar a aprovação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular 130/2012, que institui o imposto sobre grandes fortunas revertido para a saúde e do Projeto de Lei Complementar 251/2005, que aumenta o teto permitido por lei para gastos com pessoal da saúde nos municípios pela Lei de Responsabilidade Fiscal. “A plenária foi organizada para ser um evento de defesa do governo, contra o ‘golpe’, pela democracia. Nem era para ter saído carta. E as cartas que saíram foram todas vinculadas à conjuntura”, aponta Geandro, e completa. “Ninguém discutiu saúde do ponto de vista mais estrito, a conjuntura entrou ali e as pessoas tiveram que se posicionar”, relata. Segundo Batista Junior, uma novidade da 19ª Plenária foi a atuação do ministro da saúde Arthur Chioro, o que para ele marca uma tentativa de abertura de diálogo político. “Foi a primeira vez que numa Plenária dos Conselhos e movimentos sociais da saúde um ministro de estado se dispôs a ouvir representantes de todos os estados. Eu tenho absoluta discordância da política que ele está adotando, mas tenho que reconhecer que ele está sendo competente tendo esse tipo de postura numa plenária importante”, reconhece. No entanto, ele afirma não ter ilusões. “Ele está querendo sustentação política junto à militância para continuar esse processo sobre o qual tenho absoluta divergência. O documento foi bom, foi aprovado praticamente por unanimidade, mas o governo não está ligando nem um pouco para ele. Eles vão continuar tocando a agenda deles.Infelizmente nós sabemos disso”, ressalta. 

Para Geandro Pinheiro, a questão levantada por Batista Junior aponta para outro problema que concorre para tornar ainda mais complicado o cenário em que deve ocorrer a conferência, que é a falta de efetividade das deliberações. “Se você pegar a 14ª Conferência e fizer uma análise, vai ver que não foi implantado nada. No campo da privatização, por exemplo, de todas as propostas ali nenhuma foi implantada: se falava contra as Os, redução de subsídios aos planos de saúde. E nada saiu do papel. O que faz com que se desacredite desse espaço como espaço de controle social de fato, de participação popular”, acredita Geandro. Para ele, esse quadro não deve mudar diante de uma conjuntura particularmente adversa. “Não acho que seria melhor se a Conferência acontecesse ano que vem ou no ano passado. Porque na verdade tem um problema que antecede isso. A participação social se burocratizou tanto nos últimos anos, se cristalizou tanto, que hoje o controle social não tem poder popular, é controlado e fragilizado ao extremo”, critica.

Mudanças e propostas

Segundo Haroldo Pontes, a organização planejou algumas alterações para tentar ampliar a participação social na 15ª CNS e fazer com que suas decisões sejam cumpridas. Uma delas é a inclusão, no regimento interno, das conferências livres. “Qualquer grupo de pessoas pode fazer conferências para debater os eixos temáticos. Não há limite de número de pessoas nem a constituição prévia de tipo de organização. Varias delas já estão acontecendo, e o resultado disso será encaminhando e divulgado no portal da 15ª Conferência para o Brasil todo”, explica. Segundo ele, os relatórios produzidos a partir das conferências livres, ainda que não sejam incorporadas como propostas para a etapa nacional da conferência, serão importantes como “fator mobilizador e de constituição de opinião” sobre as temáticas. Essa, segundo ele, é a função também das cinco Plenárias Regionais de Conselhos de Saúde, Entidades e Movimentos Sociais e Populares, além da etapa nacional, realizada em abril. Além disso, após o término da conferência nacional, em dezembro, deve acontecer uma etapa posterior. “Ela vai ser chamada de etapa de monitoramento, em que iremos fazer o acompanhamento das diretrizes e propostas aprovadas. Isso ainda vai ser regulamentado pela comissão organizadora no decorrer do ano”, explica Haroldo.

Geandro Pinheiro é cético com relação às mudanças apresentadas pelo CNS. “Vejo como bem-vindas as alterações, mas insuficientes. Elas caem no erro de achar que é por dentro da própria engrenagem das conferências que ela vai ser mudada. Se as conferências e conselhos se afastaram do povo, não é por um regimento que vai aproximar. Então como você faz para o povo ocupar? Acho que a conjuntura pode até ajudar nesse sentido”, opina. Ele argumenta que uma conjuntura ruim pode ser boa por deixar mais claras as contradições na sociedade e dar ânimo novo à militância. “Talvez a conjuntura ruim possa ajudar o que as mudanças do modelo previsto dentro do regimento novo das conferências não estão dando conta, que é a tentativa de movimentos se organizarem para poderem ocupar e dinamizar esse espaço”, diz o professor-pesquisador da EPSJV. 

Francisco Batista defende que essa dinamização das conferências passa por um processo de abertura para outros atores que não têm tido participação nesse debate. “Isso ajudaria a estabelecer uma nova ordem de disputa política e ideológica. Eu conversei inclusive aqui no meu estado, o Rio Grande do Norte, com a OAB[Ordem dos Advogados do Brasil], que tem certa facilidade de dialogar com todos os setores da sociedade. Tem um papel fundamental para cumprir. A partir dessa ampliação da participação, temos que alterar nossa forma de dialogar com esses setores para superar questões que a gente não está conseguindo superar”, defende. Uma dessas questões, segundo ele, é o diálogo com a sociedade no que se refere ao direito à saúde. “A população acha que ter direito à saúde, ao SUS, é ter acesso ao serviço independente de se esse serviço é privado, conveniado, terceirizado. Nós não conseguimos convencer a população que é necessário pensar que se o serviço a que ela está tendo acesso é privado, tem um custo maior e esse custo está desfinanciando e inviabilizando o serviço público. Eu estou tentando dizer da importância de mudarmos nossa forma de dialogar com a população, com a sociedade civil, para conseguir convencer a população que as reivindicações e bandeiras delas devem ser outras. Não podem mais ser ter direito a plano de saúde,  ter acesso a um serviço independentemente se é terceirizado ou não”, defende.  Outro ponto importante se refere aos subsídios do governo para o financiamento de planos de saúde para servidores públicos. “Não posso concordar que nenhum governo deva pagar plano de saúde para qualquer servidor. Primeiro porque a obrigação do governo é com Sistema Único de Saúde e no momento que ele paga plano de saúde está desfinanciando o SUS. Segundo porque no momento em que financia plano de saúde está alimentando um sistema paralelo privado que inviabiliza qualquer possibilidade de um sistema público universal integral. É o tipo de debate que não estamos conseguindo fazer com uma parcela fundamental da sociedade brasileira que a gente não conseguiu convencer a vir para o nosso lado”.

Essas contradições se dão também no interior do Conselho Nacional de Saúde que, para Francisco Batista, tem se mostrado refratário a discussões de cunho mais estrutural sobre o SUS. Ele dá o exemplo do tema do financiamento. “O subfinanciamento é um sintoma da doença mais grave. Eu não vou defender mais recursos para o SUS para ser aplicado preferencialmente na atenção especializada em detrimento da atenção básica, por exemplo; para serem aplicados no setor privado contratado conveniado enquanto nossa rede fica sucateada”, completa. No entanto, ele afirma que foi voto vencido dentro do CNS. “O Conselho achou que se a gente fosse discutir isso perderia parceiros importantes nessa luta. Que parceiros? Entidades médicas que defendem as cooperativas e os serviços privados onde eles atuam, o deputado Darcísio Perondi, que defende as Santas Casas e a rede privada, e grandes interesses do setor privado da saúde. É mais importante fazer esse tipo de aliança conservadora a debater o que é importante para o sistema”, critica. Geandro Pinheiro concorda: “O sistema de saúde que a gente tem hoje — focalizado, privatizado — não tem nada a ver com o SUS que estava colocado lá no horizonte da utopia do movimento sanitário. Pela opção estratégica de fazer o que dá, o que a correlação de forças permite, chegamos a esse ponto”. Ainda assim, Geandro defende que as conferências ainda são um espaço de disputa importante, apesar de acreditar que elas deixaram de ser espaços de mudança popular. “As conferências são um lugar para disputar, fazer articulações. Mas eu acho que as mudanças devem vir de fora da institucionalidade, a partir da construção de uma mobilização dos movimentos populares”, opina.