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Solução ou privatização?

Mesa redonda sobre organizações sociais na saúde traz visões diferentes sobre esse modelo.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 07/12/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Uma mesa redonda realizada ontem à tarde na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) discutiu a gestão de instituições de saúde por meio de organizações sociais (OS). Com o tema ‘OSs: Solução ou privatização da saúde?’, o evento contou com exposições da Maria de Fátima Andreazzi, do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Roberto Raposo, coordenador de saúde bucal da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil.



Logo no início de sua fala, Maria de Fátima lembrou uma das decisões que saíram da 14a Conferência Nacional de Saúde , que terminou no domingo: “A Conferência decidiu que o modelo de gestão da saúde deveria ser 100% público”, disse, enfatizando que, se a decisão for mesmo levada a sério pelos governantes, muita coisa vai ter que mudar: “Vivemos num Estado democrático de direito e a conferência é a instância máxima de participação social na saúde. Quero crer que os democratas desse país, inclusive nosso prefeito, respeitarão essa decisão soberana e majoritária. Isso significa que não devemos melhorar ou aperfeiçoar as organizações sociais na saúde: temos que acabar com elas. Para fazer valer a Conferência, nosso prefeito Eduardo Paes tem que encaminhar uma proposta em caráter de urgência prevendo o fim das OS e abrindo concurso público para trabalhadores da saúde”, afirmou.



Origens do modelo



Ela fez um resgate histórico de como e quando foram idealizadas as OS no Brasil – que não se limitam à atuação na área da saúde, mas estão presentes também em áreas como a educação e cultura. De acordo com a professora, a legislação das OS surgiu nos anos 1990, contexto da reforma do Estado proposta por Bresser Pereira, ministro do então presidente Fernando Henrique Cardoso. “Esse contexto não era só brasileiro, mas internacional. Discutia-se que o Estado era um entrave ao desenvolvimento dos países, que sugava as riquezas produzidas. E a proposta era a redução do Estado”, afirmou Maria de Fátima.



De acordo com ela, uma das consequências disso foi a redução de investimentos públicos em políticas sociais, e um dos instrumentos criados dentro dessa mentalidade de redução de gastos foi a Lei de Responsabilidade Fiscal. “Ela estabelece um teto orçamentário que estados, municípios e governo federal podem gastar com trabalhadores. O problema disso é que a terceirização não entra na conta, então esses entes federados acabam precisando contratar por cooperativas, empresas terceirizadoras e também organizações sociais os trabalhadores necessários para a prestação de serviços”, disse.



A professora explicou que hoje o setor privado na saúde não é formado por instituições realmente sem fins lucrativos, mas por grandes cadeias de hospitais, fabricantes de equipamentos, medicamentos e laboratórios que “já ganham muito dinheiro”. “Só que isso está batendo em um ‘teto’. A população que pode ter plano [de saúde], seja pela renda ou pelo emprego, já cresceu muito, mas está chegando a um ponto em que não cresce mais. A partir daí, o SUS passa a ser também objeto de cobiça pelo setor privado”.



Crítica e defesa



Ela disse que, entre os problemas das organizações sociais na saúde, estão o modo de contratação – elas podem contratar profissionais “de qualquer forma”; a aquisição de bens e serviços sem processo licitatório; a precariedade na prestação de contas; e a fragilidade do controle social, uma vez que elas não seguem a lei 8.142 (que trata do controle social na saúde).



De acordo com Maria de Fátima, em São Paulo, onde há organizações sociais na saúde há 15 anos, várias pesquisas já apontam os problemas desse modelo de gestão. Ela apresentou dados do tribunal de contas do estado comparando os custos da administração direta e da administração por OS, e esses dados desmentem um dos argumentos para o uso desse modelo: o de que ele seria mais econômico. Fátima disse que, na realidade, o que os dados mostram é o oposto: a gestão por OS é mais cara. Ela citou ainda uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da assembleia legislativa do estado: “Um dos aspectos mais criticados foram os mecanismos discricionários na contratação por dispensa de licitação. Muitas OS são criadas dentro do aparelho do Estado”, afirmou, citando também Pernambuco: “Lá, na grande OS que existe, um dos principais dirigentes é o próprio secretário de saúde do estado”, disse.



Roberto Raposo rebateu estas críticas, afirmando que muitos desses equívocos já foram trabalhados e solucionados no Rio de Janeiro. “Todas as OS do Rio foram contratados por processo licitatório, com adesão a um contrato previamente escrito e pactuado. Isso elimina um dos mais importantes aspectos da discussão”, defendeu. Ele afirmou também que a contratação de profissionais é sempre feita por processos seletivos organizados por “instituições de renome”, e que uma comissão técnica de avaliação avalia as contas das OS.



De acordo com Roberto, a agilidade que as OS permitem ter é uma das maiores vantagens. “Pela secretaria, estou desde março tentando comprar kits para higiene bucal, e só devo conseguir finalizar o processo no ano que vem. A OS consegue comprar, pelo mesmo preço, num prazo muito mais rápido”, disse, completando: “Se você conversa com a população, ela está satisfeita. E a comunidade quer o serviço, não importa como”. Maria de Fátima, por outro lado, acredita que a legislação de compras e licitação no setor público precisa ser revista para ter mais agilidade, mas que é possível fazer isso sem sair de dentro do aparelho do Estado.



Experiência negativa



Um aluno de mestrado da EPSJV que já trabalhou na gestão de uma OS no Rio deu seu depoimento, e afirmou que sua experiência foi diferente do que Roberto descreveu. “Entrei na OS realmente por processo seletivo. No entanto, com o passar dos meses, alguns gerentes foram saindo, e outros entraram de outras maneiras, por outros processos. E foram entrando pessoas formadas em marketing, por exemplo, ou com experiências apenas na iniciativa privada e sem nenhuma formação em saúde coletiva”, disse, lembrando também que há casos de OS na cidade sendo julgadas por desvios de verbas.

Ele afirmou ainda que, embora a ligeireza nos processos seja apresentada como a grande vantagem das OS, ele não observou isso em sua experiência. “Minha unidade era pequena e sem os equipamentos necessários, e isso que é tido como ponto positivo não acontecia – os insumos que pedíamos não chegavam”, disse. O aluno trouxe outra questão importante: a falta de autonomia dos trabalhadores. “Assim como há facilidade para contratação, também há facilidade para desligamento: eu, por exemplo, quando denunciei a situação da unidade, fui rapidamente convidado a me retirar da organização”, contou.

O aluno também questionou a mesa sobre a relação entre as OS e a financeirização da saúde, citando a possibilidade, nos contratos, de que a OS possa aplicar uma parcela de seus recursos no mercado financeiro, sem prestação de contas. Fátima refletiu: “Sempre me pergunto o que motiva as pessoas a criarem OS. Essa é a grande pergunta que eu gostaria de fazer a quem está na gestão. Na verdade, existe um incentivo para isso. É claro que há algo a ser ganho, e acredito que o que se ganha hoje com a filantropia não é mais simplesmente ideológico, como no caso da filantropia das igrejas séculos atrás, mas também financeiro”. Roberto afirmou não saber se as OS no Rio têm dinheiro aplicado em bolsas de valores. Ele também disse que elas não recebem nenhuma taxa de administração.