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Legalizar para preservar vidas

Delegado aponta a legalização das drogas como forma de reduzir as mortes causadas pela guerra contra o tráfico
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 27/03/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

 “Os maiores prejuízos e perigos das drogas ilícitas são causados pela sua proibição. Mais pessoas morrem na guerra contra a maconha e a cocaína, do que pelo uso dessas drogas. Com a legalização das drogas, não haverá mais autorização para matar pessoas com o carimbo de traficantes”, afirmou o delegado Orlando Zaccone, mestre em Ciências Penais, durante a abertura do Curso de Atualização na Atenção ao uso Prejudicial de Álcool e outras Drogas da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV). “As drogas matam proibidas e legalizadas, mas proibidas matam mais porque matam não só pelo uso, mas também pela proibição. Podemos reduzir os danos com a legalização da venda e do consumo”, destacou Zaccone, acrescentando que não é a favor do consumo das drogas, mas da legalização de seu uso. “O campo da moralidade é individual. Posso ser contra o uso, mas entender que a legalização é benéfica para a sociedade. Não devemos confundir a legalização com o estímulo ao consumo”, completou.



Para Zaccone, a proibição é uma tragédia social porque ao criar a figura do ‘traficante’, torna uma pessoa ‘matável’ ou alvo de uma política carcerária ineficiente e cruel. Ele ressaltou que o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, com cerca de 500 mil presos. “A prisão não resolve o problema. Lotamos o cárcere de pessoas rotuladas como traficantes. Isso é muito pior que o consumo de drogas do mundo. Somos um país que está levando para o cárcere crianças e jovens envolvidos com drogas. É muito fácil colocar os problemas para dentro do cárcere ou da vala”, disse o delegado. “Para reduzir os efeitos das drogas, temos que ir pela legalização e o Brasil está muito atrasado nessa questão. Outros países já entenderam que a solução das drogas passa por uma legislação mais branda”, comparou.



De acordo com dados da Anistia Internacional, em 2011, nos 20 países que tinham pena de morte instituída, 676 pessoas morreram condenadas. No mesmo ano, 524 pessoas foram mortas pela Polícia Militar no Rio de Janeiro e 437 em São Paulo, totalizando 961 mortes em apenas dois estados, 42% a mais que em todos os países com pena de morte. “E essas mortes são legitimadas por uma guerra contra as drogas”, observou Zaccone, explicando que quando um PM mata em serviço, é aberto um inquérito como auto de resistência, ou seja, legítima defesa do agente da lei. O PM responde ao inquérito em liberdade e se provar que não tem culpa, não tem processo. “Legítima defesa não condena, 95% a 99% dos inquéritos são arquivados e as mortes são legitimadas. O Ministério Público pede o arquivamento e o juiz de direito legitima a matança”, explicou.



Segundo o delegado, a maioria dos arquivamentos são feitos na comprovação de que o morto era traficante. “Junto com o morto, apresentam sempre uma arma e uma quantidade de drogas e o confronto é sempre em um local conhecido como ponto de venda de drogas. Se morre na favela um negro, jovem, com armas e drogas, já tem o ‘selo’ de traficante e está legitimada a morte. Então, no Brasil, tem pena de morte. A exceção virou regra e o Brasil trabalha em estado de exceção permanente com a execução de pessoas rotuladas como traficantes”, destacou Zaccone. “Temos uma legislação criminal que suspende o direito à vida dos traficantes. Isso já seria suficiente para propor a legalização das drogas ilícitas. O traficante não é visto como um ser humano, por isso, se autoriza sua execução. O fato de a pessoa ser identificada como criminosa não pode dar o direito de o policial matá-la. Se mata o traficante é legítimo, mas se mata o estudante não é. Mas o estudante pode ter morrido trocando tiros com a polícia e o traficante, implorando pela vida. E o policial só é punido quando a mãe consegue provar que seu filho não é traficante, mas a mãe do traficante também pode exigir a garantia da vida do seu filho porque não temos pena de morte instituída no Brasil”.



Proibição



O fato de a saúde não entrar na questão da proibição ou não de uma droga é outro problema levantado por Zaccone. “Todas as drogas, lícitas ou ilícitas, trazem malefícios à saúde. Não tem uma distinção científica para definir por que algumas são proibidas e outras são permitidas. O fato de uma droga ser proibida ou não, não é uma questão de saúde, mas uma construção política de um ambiente social”, destacou o delegado, acrescentando que, em 2014, o álcool, que em alguns países árabes é proibido, vai patrocinar a Copa do Mundo de futebol, o maior evento esportivo do mundo. “E, segundo pesquisas, o álcool é a droga que mais causa danos à população. Mas a propaganda de bebidas não é proibida como a de cigarros e essa diferença de tratamento é fruto do lobby das indústrias no Congresso Nacional. Os prejuízos causados pela proibição da propaganda de álcool seriam muito maiores que os do cigarro. Quando se fala das drogas ilícitas, se esquecem das lícitas. O álcool causa acidentes de trânsito, violência doméstica e não se fala dos efeitos nocivos do álcool.  Mas será que a proibição do álcool iria resolver?”, questionou Zaccone.



No caso das drogas, o controle e a proibição do uso de uma substância muitas vezes estão ligados também ao público usuário. Zaccone lembrou que a maconha, por exemplo, foi proibida há dezenas de anos porque era usada pelos escravos e havia um movimento para reprimir tudo que vinha desse grupo de pessoas, não só a maconha, como também a capoeira e o samba, por exemplo. O objetivo não era controlar o uso da droga, mas a população que fazia uso dela. “O que acontece hoje com o crack é um movimento parecido. Não existe uma preocupação humanista. Querem controlar quem usa essa substância e está nas ruas”, destacou.



Segundo o delegado, de acordo com informações da Prefeitura do Rio de Janeiro, 70% das pessoas recolhidas nas ruas em operações contra o uso de crack não têm problemas com drogas. “A área de saúde pública está contaminada pela polícia. Estão fazendo uma faxina social para tirar das ruas as pessoas que estão no que eles chamam de cinturão de segurança do Rio de Janeiro (Zona Sul, Tijuca e Avenida Brasil até o aeroporto). A luta contra a internação compulsória é um marco e temos que politizar esse debate”, ressaltou.



Zaccone destacou que quanto mais se proíbem as drogas, mais elas são vendidas e consumidas. Já com a legalização, elas passariam a ter sua venda regulamentada. “O crack e a cocaína podem ir para o mercado como permitidos, com regras para a venda e o consumo dessas substâncias. O comércio em uma drogaria é mais saudável do que em uma boca de fumo porque não tem morte, não tem disputa. A violência e a corrupção não são produtos do uso da droga, mas da sua proibição”, disse.



Para o delegado, um mundo sem drogas, como o proposto pela Organização das Nações Unidas (ONU), nunca vai se realizar, pois não existe uma sociedade que não tenha um desvio, algumas vezes até positivos e necessários. “As pessoas vão continuar usando drogas porque há muito tempo a humanidade já fazia uso de muitas dessas substâncias que hoje são proibidas. Além disso, diversas substâncias podem trazer problemas para as pessoas. Tem gente que tem problemas com a comida. Então, vamos proibir a comida?”, questionou.



Curso



A conferência ‘Drogas: os prejuízos da proibição’ foi proferida durante a abertura do curso de Atualização na Atenção ao uso Prejudicial de Álcool e Outras Drogas, no dia 22 de março.

O curso é oferecido há sete anos pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e, neste ano, tem uma turma formada por 51 alunos que atuam em serviços do Sistema Único de Saúde em diversos municípios do estado do Rio de Janeiro.