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Democracia em tempos de crise estrutural do capital

Rodrigo Castelo e Paulo Arantes falaram sobre o tema na abertura das comemorações dos 30 anos da Escola Politécnica
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 20/08/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Com a mesa-redonda “Democracia em tempos de crise estrutural do capital”, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) iniciou no dia 18 de agosto as comemorações de seus 30 anos de atuação na educação profissional em saúde, completados no dia 19 de agosto. O evento comemorativo de 30 anos da EPSJV está sendo realizado como atividade de greve dos trabalhadores da Fiocruz, que estão paralisados desde o dia 16 de julho, reivindicando não apenas melhorias salariais, mas também em defesa do direito da população brasileira a uma saúde pública de qualidade e contra o ajuste fiscal do governo, que tem atingido todos os trabalhadores.

A mesa-redonda “Democracia em tempos de crise estrutural do capital” teve a participação de Rodrigo Castelo, economista e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio); e Paulo Arantes, filósofo e professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), com a mediação de Virgínia Fontes, professora-pesquisadora da EPSJV e da Universidade Federal Fluminense (UFF).

 Rodrigo Castelo iniciou sua fala lembrando que, historicamente, a classe dominante sempre tentou impedir que a classe trabalhadora participasse das organizações políticas. “Desde as revoluções burguesas, a burguesia tentava impedir o ímpeto da classe trabalhadoras quando ela se colocava nos processos políticos que, até então, eram monopólio das classes dominantes, com pautas democráticas de conquistas de direitos políticos e sociais que a ordem burguesa não comportava. As classes dominantes sempre nutriram uma enorme desconfiança pela classe trabalhadora”, disse ele, acrescentando que outro elemento importante de barreira para a participação dos trabalhadores era o sufrágio censitário, que limitava a participação nos processos eleitorais a quem tinha um determinado nível de renda e riqueza, além da exclusão de gênero, raça, etnia, dos analfabetos e trabalhadores que recebiam assistência social.

O professor destacou que a organização dos trabalhadores sempre foi vista pela burguesia como uma intervenção indevida em seus interesses econômicos, mas que, ao longo do tempo, a luta dos trabalhadores foi impondo um alargamento dos limites que a ordem burguesa estabeleceu para os trabalhadores, tanto do ponto de vista político, quanto no econômico. Citando o filósofo espanhol Adolfo Sánchez Vázquez, Rodrigo lembrou que o capitalismo, ao longo da história, não hesitou em se desembaraçar de toda forma democrática quando seus interesses exigem. “A burguesia sempre se sentiu ameaçada por qualquer dessas demandas políticas e econômicas, como reformas e revoluções. E, nos momentos de crise, a burguesia ativa com uma força ainda maior os elementos para criar barreiras que estão postas desde o início da civilização”, observou Rodrigo.

Para explicar a conjuntura atual, Rodrigo citou o conceito de crise orgânica, de Antonio Gramsci, que tem como principal característica a abertura de janelas históricas para o surgimento de novos projetos societários. “E é justamente nesses períodos históricos que se acentua o uso da força pela burguesia para manutenção da supremacia. Para a manutenção dessa supremacia, sempre há uma composição do uso da coerção e do consenso. Em momentos de crise, aumenta-se o uso da coerção, que já é usada de forma perene para a manutenção da ordem, e, muitas vezes, também aumenta o consenso. É isso que estamos vivendo hoje na conjuntura atual, tanto no mundo, quanto no Brasil”.

Para Rodrigo, nos momentos de crise, geralmente, há um triplo movimento político de perdas absolutas e relativas de mudanças democráticas conquistadas no passado. O primeiro movimento é o esvaziamento dos procedimentos formais da democracia representativa, que pode ser observado na baixa participação eleitoral nos países onde o voto é facultativo ou, nos países onde é obrigatório, como o Brasil, uma crescente abstenção da participação popular nas eleições. Outro sinal do esvaziamento são as campanhas eleitorais midiáticas, dominadas pelo poder econômico, o deslocamento dos espaços de decisão do Legislativo para o Executivo e a blindagem da economia. “Em suma, temos uma desqualificação da grande política e uma hegemonia da pequena política. Esvazia-se os espaços dos grandes debates nacionais, onde as classes poderiam se colocar e faz-se a política nos gabinetes, decidindo os rumos do país. E essa desqualificação é uma vitória do capital financeiro”, observou Rodrigo.

O segundo movimento, de acordo com o professor, é a oligarquização do Estado e seu uso para a captura da riqueza nacional via o fundo público e outras políticas. “Dessa forma, o Estado se amplia nos seus aparatos coercitivos, muitos deles para gerar consenso, mas, ao mesmo tempo, é um Estado ampliado para poucos, que tem a capacidade de influenciar as decisões políticas e econômicas”, disse Rodrigo, acrescentando que essa oligaquização está relacionada ao aumento das desigualdades socioeconômicas.

O terceiro movimento é o aumento da violência física e subjetiva contra a classe subalterna, suas organizações e múltiplas expressões da questão social, que pode ser observado em fatos como xenofobia, legislações migratórias seletivas e restritivas, LGBT fobia, intolerância religiosa, fortalecimento dos partidos de extrema direita e suas milícias, leis de exceção nos megaeventos, redução da maioridade penal e lei antiterror, entre outros fatos citados por Rodrigo.

Para o professor, esse conjunto de intervenções do Estado pode ser configurado como um processo de militarização da questão social no Brasil, que ele considera uma etapa superior da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais com o objetivo de fechar os circuitos das lutas sociais de contestação da ordem. “O que temos hoje é um Estado ampliado para benefício de poucos. Se, no passado, a ampliação do Estado, com a incorporação de setores da sociedade civil organizada da classe trabalhadora, significou um avanço para os trabalhadores, ao mesmo tempo que era uma concessão das classes dominantes, para amortecer as tensões sociais da ida dos trabalhadores a esfera política, quebrando os monopólios dominantes, hoje, esse Estado se amplia não para amortecer conquistas e concessões para a classe trabalhadora, mas, sim, para combater. Então, vai ser preciso continuar e ampliar as lutas históricas que temos feito, na qual a greve é um dos instrumentos mais legítimos. Cabe a nós lutar, a classe trabalhadora já saiu de coisa muito pior e saiu porque temos acúmulo, não estamos saindo do zero”, finalizou Rodrigo.

"Desdemocratização"
 Para Paulo Arantes, a conjuntura atual pode ser definida como um processo de “desdemocratização”, termo criado por alguns autores para denominar os processos de enfraquecimento da democracia nas últimas décadas. “O que vivemos hoje não é um processo de tratorização da democracia, é como se tirasse da tomada e deixasse funcionando com a bateria até gastar, aí acaba e ninguém percebeu. Esse processo de ‘desdemocratização’ do capitalismo tem um antecedente histórico e paradoxal que eu chamo de governo direto do capital”, observou o professor.

Fazendo um retrospecto histórico, Paulo destacou que a burguesia nunca pode legitimar seu poder econômico enquanto poder político, pois sempre precisou de uma escora, que era o Estado, que tinha uma classe dirigente que vinha de um período histórico. “A grande experiência histórica que nós chamamos de imperialismo significou a primeira vez que a burguesia fez a experiência real do exercício político do governo sem nenhuma mediação institucional, a colonização foi o governo direto do capital. A burguesia, pela primeira vez exerceu o poder de administrar populações, principalmente na África e na Ásia”, disse Paulo, acrescentando que o sucesso do empreendimento burguês nas colônias começou a impregnar a cultura política e as instituições da metrópole. “Foi o chamado ‘efeito bumerangue’, que desmoralizou a antiga classe política dirigente”. Segundo o professor, quando os chamados arrivistas do negócio voltaram bem-sucedidos das colônias, a classe política antiga percebeu que um governo direto, sem mediações, poderia ser mais eficiente. “E o efeito histórico disso é o fascismo, que foi uma adaptação feita pela Europa, na Alemanha e Itália, para administrar pessoas. Um campo de concentração e extermínio é um campo de administração de pessoas, de regulação demográfica da cota permitida para determinadas raças”.

Depois da Segunda Guerra Mundial, veio o que Paulo chamou de “30 anos de trégua social” na convivência entre democracia e capitalismo. “Durante 30 anos, montou-se a história da carochinha que capitalismo e democracia são afins. A China é uma demonstração que isso não é necessário. As grandes corporações europeias e americanas invejam o milagre chinês porque fazem uma sociedade de mercado funcionar a todo vapor, com crescimento, sem precisar de democracia. Na fachada, criticam a China, que não respeita os diretos humanos, mas na verdade, invejam a China que cresce a 7% ao ano e não tem nenhuma inquietação social. E, quando tem, eles matam, massacram”, disse o professor, acrescentando que o fim dessa trégua veio a partir da metade dos anos 1970 até hoje.

Para Paulo, com o fim dessa trégua, a democracia, aos poucos, foi sendo enfraquecida. “A democracia, com todo o seu aparato histórico de representação, mecanismos de controle e participação, tinha uma racionalidade política diferente da econômica, uma coisa era a esfera pública e outra era uma empresa, que tem a lógica da acumulação. Com o tempo, essa distinção passou a erodir e uma única racionalidade passou a tomar conta das duas esferas, engolindo a democracia sem precisar destruí-la e atacá-la”. Dessa maneira, segundo o professor, a lógica da produção de mercadorias começou a se estender para outros âmbitos, que não apenas os econômicos, que produzem mercadorias. “Uma coisa é você expandir a produção de mercadorias na lógica do capital, outra é você expandir essa lógica para âmbitos sociais que não podem ser governados por ela porque não produzem nada”, ressaltou Paulo. Ele citou como exemplo o funcionamento dos sistemas nacionais de educação ou de saúde na Inglaterra como se fossem produtores de mercadorias. Segundo ele, essa reorganização é feita por dentro, com todos os órgãos que administram os sistemas funcionando como empresas. “Com isso, se instala uma nova lógica, uma nova racionalidade social, que faz com que todos os atores desse grande empreendimento de saúde se comportem como agentes econômicos sem serem agentes econômicos de verdade porque não produzem nada. Eles produzem cuidado social, que não é mercadoria”.

Em contraste ao que aconteceu em um período histórico anterior, que terminou em fascismo e guerras mundiais, para Paulo, esse período não vai terminar assim, mas já existe um caos geopolítico. “Com isso, a democracia está evaporando, não é que ela esteja sendo massacrada, ela começa a se tornar uma desnecessidade, passa-se sem ela. O drama é que estamos implicados voluntariamente nisso, agindo livremente a favor dessa progressiva desnecessidade da democracia. No cotidiano, ela desapareceu e se tornou inútil, portanto, ela pode continuar, não é necessário um golpe de estado, abolir ou rasgar a constituição. As violações circunstanciais são recorrentes. A lei é apenas um expediente tático, ora serve, ora não serve, quando não serve, se ignora, mas não precisa abolir, temos uma constituição para evitar uma guerra civil entre os membros do poder”, concluiu Paulo.