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Memória, experiência e juventude

Conferência de Maria Rita Kehl encerrou as comemorações dos 30 anos da Escola Politécnica
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 26/08/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 Com a conferência “Memória, experiência e juventude”, a escritora e psicanalista Maria Rita Kehl encerrou as comemorações do aniversário de 30 anos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), completados no dia 19 de agosto. Maria Rita também fez parte da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que apurou violações aos direitos humanos ocorridas no período entre 1946 e 1988.

Para Maria Rita, a memória é a função mais importante das nossas funções psíquicas, pois é a memória que nos diz quem nós somos e nos identifica como a mesma pessoa ao longo da vida. “O sentimento de uma certa unidade do nosso eu se constitui e se transforma ao longo da vida, às vezes de maneira traumática. Pessoas que passam por torturas, campos de concentração, sofrem rupturas na integridade do eu que são muito sofridas porque depois de uma experiência muito traumática fica difícil a pessoa reconstituir quem ela foi, fazer o laço de quem ela era antes do trauma e quem passou a ser depois da ruptura do tecido psíquico. Sem a memória, nós nos perdemos a cada dia, ela é o fio da vida, por isso, temos prazer em recordar até as experiências infelizes porque nos dizem quem nós somos”.

Citando o filósofo Walter Benjamin, Maria Rita falou sobre a transformação da memória em experiência. Para Benjamin, a vivência se transforma em experiência quando é elaborada em uma narrativa. “Nas greves de 1979, no ABC [região metropolitana de São Paulo, formada pelas cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul], eu estava grávida do meu primeiro filho, e quando tive a oportunidade, participei de uma assembleia comandada pelo Lula. E pensei: meu filho vai nascer em um mundo modificado por essa gente aqui, mesmo sem imaginar que um dia Lula iria ser presidente. Isso se introduz na minha experiência de vida porque eu fiz parte disso, contou ela”.

Maria Rita uso o exemplo dos metalúrgicos do ABC para explicar como a memória pode reconstruir a experiência. No documentário “Peões”, de Eduardo Coutinho, vários sindicalistas em suas entrevistas dizem que sem aquilo não seriam quem são hoje. “Eles vão se lembrando de suas experiências de greve e dizem que, apesar dos problemas, foi um dos melhores momentos da vida deles porque estavam construindo algo coletivamente. Você também reconstrói a experiência pela memória”, disse ela, acrescentando que, para Benjamin, o que pode se chamar de experiência é que se pode compartilhar.

Segundo a psicanalista, a memória é responsável pela construção de narrativas que podem ser transmitidas para as próximas gerações e que criam uma consciência imaginária de toda uma sociedade. “Em uma sociedade moderna, as narrativas têm que ser preservadas porque se não preservarmos, quem vai fazer a versão oficial delas é a Rede Globo. Temos que manter fortemente a tradição de sindicatos, encontros, discussões. Porque há muito tempo a experiência coletiva tem sido unificada pela televisão”.

Para explicar que quando o vivido se transforma em relato, ele se inscreve de novo na forma de experiência, Maria Rita contou um pouco sobre seu trabalho na Comissão Nacional da Verdade, na qual foi coordenadora do grupo de trabalho sobre povos indígenas e camponeses. “Minha experiência na Comissão foi extraordinária. Escolhi o tema dos camponeses porque tenho uma antiga simpatia pelo MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra] e durante seis anos fui psicanalista de lideranças e militantes na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP). O MST cultiva muito a memória coletiva porque sabe que essa memória dá alento aos militantes para as próximas lutas”.

Um exemplo do como se tece uma experiência a partir da vivência, pode ser observado durante o trabalho da CNV na região do Araguaia. Maria Rita contou que entre os camponeses entrevistados pela Comissão, e que foram torturados pelos militares para contar sobre o paradeiro dos militantes, todos contaram que, durante a tortura, ao serem perguntados: “Onde estão os terroristas?”, respondiam: “Eu não conheço nenhum terrorista aqui, quem está praticando o terror aqui são vocês”. “De alguma forma isso se espalhou entre os camponeses e vários deles responderam assim para os seus torturadores. A gente fica na dúvida se todos tiveram essa ideia na época, sob tortura, ou se, passado o período militar, os remanescentes passaram a contar a história assim e todos se identificaram com essa ideia. O que deu para observar é que se construiu uma experiência coletiva. Eles teceram de novo sua experiência traumática da tortura, incorporando a valentia de alguns na sua própria narrativa. Com isso, se teceu uma narrativa coletiva e se criou uma experiência transmitida para outras gerações e para a Comissão”.

Citando Benjamin, Maria Rita lembrou que o que vai tecendo o fio que une as gerações é a narrativa e que cada geração se inscreve dando continuidade a esse fio narrativo. No entanto, cada um que conta a história muda um pouquinho a narrativa para inserir a si mesmo nela. “A gente vai inserindo e tem um momento da vida que você não tem mais a certeza absoluta do que é a sua memória individual, do que você estava presente, e do que você ouvir falar ou seu amigo viveu”.

A escritora contou que seu trabalho na CNV possibilitou também que ela conhecesse a cultura indígena, percebendo que eles têm dispositivos simbólicos para manter viva a experiência do passado. Um exemplo disso, segundo ela, é o fato dos índios Guarani e dos Tupinambás não abandonarem suas terras. “Eles dizem que não abandonam seu ‘tekoha’, que é o lugar onde exercem seu modo de viver. Eles não abandonam não só porque tem uma ligação entre a cultura e a natureza, mas também porque isso implica a ligação com os mortos. Cada vez que precisam tomar uma decisão, eles vão até o cemitério e se consultam com os mortos. Por isso não abandonam a terra onde estão seus mortos”.

Juventude

A experiência de gerações anteriores marca também as gerações jovens, que ainda não tem a memória, a experiência e o passado dos mais velhos, segundo Maria Rita. Para ela, a juventude tem outros valores como a disponibilidade para abraçar coisas novas, a generosidade e a curiosidade. “Tudo na gente envelhece, mas eu gostaria de nunca perder a curiosidade porque quando uma pessoa diz que já viu de tudo, é uma espécie de queda da libido da vitalidade, do gosto pela vida. E não é necessário perder isso porque você envelheceu”, ressaltou ela, acrescentando que, durante seu trabalho na CNV, foi interessante observar entre os familiares de mortos e desaparecidos, muitos presos e torturados também, como a maioria deles conseguiu recuperar alguma libido pela vida. “Tanto que, mesmo sabendo que não tem mais esperanças de encontrar seus familiares, eles continuam procurando”.

Memória apagada

 Citando o fato de o Brasil ter sido o único país que anistiou seus torturadores e o último país a ter instituída a Comissão Nacional da Verdade, 24 anos depois do fim da ditadura, Maria Rita ressaltou como é danoso para uma sociedade o apagamento da memória. “Essa falta de memória faz com que, hoje, pessoas insatisfeitas com o governo ousem sair às ruas pedindo intervenção militar. Isso está recalcado em uma fantasia, que foi a história oficial dos militares, que naquele tempo não havia corrupção. Não tinha era notícia de jornal, que era censurado, mas havia muita corrupção nas estatais comandadas pelos militares”, observou ela.

Segundo Maria Rita, com a demora na instalação de uma Comissão Nacional da Verdade no Brasil, muita coisa já havia se reacomodado na sociedade, 24 anos depois do fim da ditadura. “Só os familiares ou quem sofreu ainda estava traumatizado, a sociedade já estava recuperada. E os militares não falavam nada para a Comissão, só diziam que não tinham nada a declarar”, contou ela. Por conta dessa recusa dos militares, membros da CNV visitaram algumas instalações militares onde houve mortes e torturas acompanhados de pessoas que foram torturadas e familiares de mortos. Com essas visitas, houve o reconhecimento de alguns lugares e a lembrança de fatos que aconteceram nesses locais. Essas informações puderam ser incluídas no relatório final da CNV, divulgado em 2014. “Nem todos aceitaram ir para a Comissão reviver um momento tão traumático. Alguns não tiveram condições. Mas nos que foram, nós não percebemos que eles estavam voltando lá com horror. A impressão que nós tivemos é que poder escrever essa experiência quase inominável da tortura e poder tornar isso público, colocar em um relatório que o país inteiro vai poder conhecer, é uma alegria, faz bem para pessoa, não faz mal. Sai do trauma e se inscreve na experiência coletiva porque o Brasil vai participar pela narrativa, vai poder entrar no circuito de narrativas que compõem a nossa história. É isso que a gente espera, embora a repercussão durante o trabalho da comissão tenha sido muito grande, mas a do relatório tenha sido pequena. Mas está aí, para as próximas gerações, para se transformar o trauma em experiência”, conclui Maria Rita.

Após a conferência de Maria Rita, foi realizado um Almoço Comunitário em comemoração ao aniversário da EPSJV, e, em seguida, uma roda de jongo com Lucio Sanfilippo. O evento comemorativo de 30 anos da EPSJV foi realizado como atividade de greve dos trabalhadores da Fiocruz, que estão paralisados desde o dia 16 de julho.