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Voluntariado

A Copa já veio, já foi, e, falando do ponto de vista estritamente dos negócios - à parte, portanto, as goleadas históricas sofridas pela seleção brasileira e a repressão violenta da polícia às manifestações contrárias ao evento - foi um sucesso: exemplo disso foi a FIFA, que obteve com a venda dos direitos de TV e marketing do evento uma receita de R$ 8,5 bilhões de reais, a maior da história das Copas. Aliás, recorde é o que não falta quando o assunto é Copa. A edição mais lucrativa da história foi também a edição mais cara: oficialmente, foram gastos R$ 33 bilhões com a organização do mundial no Brasil. Mas houve um outro recorde que, embora menos falado, teve implicações diretas sobre os outros dois: o número de inscritos no programa de voluntariado da FIFA, que atingiu à soma de 152 mil candidatos, o dobro da edição anterior. Desses, 14 mil foram selecionados para trabalhar na organização da Copa por pelo menos 20 dias, em turnos de até 10 horas, recebendo em troca alimentação e transporte. O programa, que recebeu do Ministério do Esporte R$ 30 milhões, foi contestado pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT- RJ), que, em junho, antes do início do evento, entrou com ação civil pública pedindo que todos os voluntários fossem contratados com carteira de trabalho assinada. Em reportagem na Agência Brasil, a procuradora do Trabalho Carina Rodrigues Bicalho, justificou a ação afirmando que a FIFA pretendia atingir "lucros astronômicos", o que afasta a possibilidade de usar trabalho voluntário, que só pode ser empregado por entidades públicas ou associações com "objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social". Na época, o Comitê Organizador Local (COL) da Copa emitiu uma nota em que afirmou que a ação do MPT-RJ não tinha "fundamento jurídico", dizendo ainda que, no trabalho voluntário "a recompensa obtida não é financeira, mas ligada à satisfação de contribuir para a realização de algo importante para a comunidade".

Se ajudar a FIFA a bater recordes de lucratividade economizando gastos com força de trabalho é "importante para a comunidade" ou não, é discutível. Mas o fato é que a entidade é apenas mais uma a ter no voluntariado uma arma importante nas suas políticas de responsabilidade social, bem como no seu balanço financeiro. Segundo dados de um relatório de 2011 do Programa de Voluntários das Nações Unidas, se o voluntariado fosse um país, seria o 9° mais populoso do mundo, com 140 milhões de habitantes. E mais: de acordo com o relatório, o trabalho voluntário representou, em média, 0,7% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países em desenvolvimento e 2,7% do PIB dos países desenvolvidos.

André Martins, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), explica que as Nações Unidas tiveram um papel importante na difusão da acepção de voluntariado que se tornou hegemônica atualmente. "A ONU sempre incentivou o voluntariado e o define como ato de civismo, de doação, altruísmo, em nome do bem comum. A concepção contemporânea de voluntariado foi impulsionada pela ONU, que criou em 2001 o Ano Internacional do Voluntariado, que envolveu a mobilização de 156 países", explica André, completando em seguida: "Igreja, empresas, ONGs e órgãos internacionais como a Fifa, todos foram reunidos dentro de um único movimento. As ações de cunho filantrópico pré-existentes foram refuncionalizadas e assimiladas por esse novo fenômeno que está ligado à ideologia da responsabilidade social, assumindo um conteúdo político, na medida em que vão isentando o poder público de assumir responsabilidade sobre a questão social". Para André, ainda que resguardem características e objetivos específicos dependendo da natureza das entidades que o empregam, o trabalho voluntário assume um papel na conformação de um consenso acerca da noção de cidadania. "A ideia de cidadania nos anos 1980 era ligada à mobilização, protesto, reivindicação. A partir do final dos anos 1990 e início de 2000, vemos que o voluntariado vai redefinindo a construção social de cidadania passando a designar como civismo, como entrega, como participação. O que o voluntariado vem exercendo é uma redefinição da percepção social de cidadania. Tudo vem dentro desse movimento mais amplo que é a construção de uma sociabilidade capitalista internacional", diz.

No caso da FIFA, ainda que ela tenha oficialmente uma natureza jurídica de entidade sem fins lucrativos, o voluntariado assume uma perspectiva empresarial, se inscrevendo numa estratégia de ampliação da acumulação de capital, como afirma André. "Isso se constitui como mecanismo de ampliação das margens de lucro, na medida em que mobiliza ação de trabalho que, amparado pela lei, não gera vínculo empregatício, nenhuma obrigação de natureza trabalhista, previdenciária ou afim, mas da qual se extrai direta ou indiretamente o lucro. Nesse sentido, entidades como a FIFA diretamente economizam recursos ao mobilizar voluntários ao invés de remunerá-los dignamente pelo trabalho exercido". No caso de uma empresa que se utiliza do trabalho voluntário de seus empregados em ações de cunho social, o ganho se dá por meio da melhoria de sua imagem junto a consumidores e investidores, sem aumentar ônus com despesas com marketing ou com pessoal. "Algumas pesquisas já comprovam que o consumidor, principalmente os de maior poder aquisitivo, tem tendência a selecionar os produtos em função da responsabilidade social das empresas. Então se a empresa desenvolve um projeto social que ele reconhece como bom, ele aceita até pagar um pouco mais caro por aquele produto", diz o professor.

Pedagogia da hegemonia

O grande problema, como argumenta a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Federal Fluminense (UFF) Virgínia Fontes, é que o voluntariado acaba contribuindo para uma ampliação da exploração dos trabalhadores. "No caso dos funcionários de uma empresa e que vão atuar como voluntários em ações da empresa, isso é geração de sobretrabalho. Uma parcela dos trabalhadores faz porque acredita, e outra porque tem medo de perder emprego. Não é exatamente voluntário nesse caso, é quase obrigatório. Se você está numa empresa em que na hora da avaliação funcional quem fez trabalho voluntário ganha ponto, e quem não fez não ganha, aí todo mundo vai fazer". Para André Martins, a ideia de "empregabilidade", é a chave para entender a motivação de muitos trabalhadores ao se oferecerem como voluntários. "Hoje o discurso dominante defende que o sujeito que registra em seu currículo ações de voluntariado se torna mais empregável do que aquele que não apresenta, seria um diferencial da formação do capital humano". Para ele, tanto num sentido mais amplo, de formação de uma nova concepção de cidadania, quanto no sentido mais estrito das dinâmicas das relações de trabalho, o voluntariado converge para o mesmo ponto. "Trata-se de uma estratégia da nova pedagogia da hegemonia, a educação do consenso, uma nova forma de manter as relações sociais capitalistas dentro de um patamar em que haja pouca turbulência e mais assimilação dos comportamentos que todos devem assumir. Hoje falar em voluntariado é falar de uma nova forma de exploração combinada a uma forma de dominação da classe trabalhadora".

Voluntariado socialista


Mas esse é apenas um dos sentidos assumido pelo trabalho voluntário. Segundo Virgínia Fontes, nas sociedades que passaram por processos revolucionários socialistas, o trabalho voluntário adquiriu outra conotação. "Tanto na Rússia quanto em Cuba, logo após a revolução, as condições nas quais esses países se encontravam eram muito dramáticas e foi feito um apelo aos trabalhadores no sentido de doarem sua força de trabalho em prol da revolução", explica Virgínia, que completa: "O voluntariado socialista pressupunha que os trabalhadores se engajassem, com pleno conhecimento de causa, em atividades que podiam ser as suas já tradicionalmente ou não, no sentido de garantir a produção dos meios necessários para a sociedade como um todo. Um exemplo era o próprio Che Guevara, que ia para o corte de cana de açúcar". Segundo a professora, conceitualmente, o voluntariado socialista tinha também um papel na problematização da divisão social do trabalho. "No caso do Che, por exemplo, a proposta era que aqueles que estavam situados na área do trabalho intelectual nesse momento conhecessem o trabalho manual, vivessem as experiências, convivessem com os trabalhadores, permitindo superar essa distância entre trabalhadores que estão exercendo funções sociais diferentes - porque na verdade trabalho intelectual e manual é função social, já que todo mundo tem intelecto. Essa ideia já estava presente na Revolução Russa: a intenção era que isso permitisse a construção de um conhecimento por todos eles melhor apropriado e, portanto, a superação dessa divisão brutal". No entanto, diz ela, isso não quer dizer que essa divisão foi superada. "O fato de ter levado intelectuais pra fazer trabalho manual não garantiu que os trabalhadores manuais conseguissem de fato sair dessa condição. Mas havia essa postura", ressalta.

Um exemplo mais próximo e recente, diz ela, foi o da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), construída por militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) em Guararema, região metropolitana de São Paulo. "A construção foi feita com trabalho voluntário, garantindo que todo mundo que quisesse participar tivesse sua participação concreta na edificação, ao mesmo tempo procurando socializar o conhecimento no momento do processo de produção. Era uma técnica de construção de novo tipo, de base ecológica, que certamente foi elaborada por engenheiros e arquitetos, mas que foi socializada no processo da produção da escola", exemplifica.



Transformação ou acomodação?

Hoje, porém, a concepção socialista de voluntariado perdeu força, e o termo passou a designar o emprego de uma força de trabalho sem remuneração como forma de resolver os problemas sociais, "desobrigando políticas públicas e custos do Estado", como aponta Virgínia Fontes. "Vivemos numa sociedade de classes e as categorias sociais que remetem a uma determinada classe social podem ser utilizadas e são por outras classes sociais. O voluntariado é mais uma dessas categorias sociais onde a luta de classe hoje é evidente: de uma reivindicação de transformação das condições do mundo para uma proposta empresarial de adequação ao mundo, porque ‘esse é o único mundo possível e não dá para mudá-lo'", conclui Virgínia.