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Técnico em Gestão em Saúde (Gerência em Saúde)

Imagine que uma unidade de saúde seja como um castelo de cartas. A última carta desse castelo é o atendimento, que será chamado de atividade-fim. As cartas que estão na base representam a infraestrutura da unidade, ou seja, para que se possa construir um castelo sólido não há como abrir mão de uma estrutura predial adequada. Afinal, rachaduras e infiltrações não rimam com bom atendimento. Na medida em que avançamos, encontramos cartas que tanto dependem de sustentação quanto sustentam. Essas são as atividades-meio de um serviço, que em uma unidade correspondem aos setores administrativos: recursos humanos, compras, financeiro, almoxarifado, entre outros. Embora muitas vezes passe desapercebido pelos usuários, o bom orquestramento dessas ações é indispensável para garantir o sucesso das atividades-fim. Neste texto, vamos conhecer melhor o trabalho de um dos profissionais cuja função é garantir a resolutividade desses processos: o técnico em gerência de saúde.

Segundo o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos , o técnico em gerência de saúde tem como atribuições o planejamento, controle e avaliação da implementação de políticas públicas de saúde. Para isso é necessário que ele conheça bem as especificidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e esteja a par de todas as atividades que constituem a gestão em saúde. De acordo com Gilberto Estrela, coordenador do Laboratório de Educação Profissional em Gestão em Saúde (Labgestão) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), o objetivo dessa formação é contribuir para que esse profissional alie competências administrativas a uma dimensão política. “Um bom técnico é aquele que, além de conhecer muito bem a sua função, também é capaz de entender a dinâmica de todas as atividades desenvolvidas na sua unidade”, afirma, exemplificando: “Se ele trabalha no setor de compras, deve saber quando fazer uma licitação ou não, controlar o que está em falta, otimizar os recursos. Mas nunca deve se restringir a isso. Empoderar-se do processo significa construir um perfil de profissional que seja crítico, reflexivo e tenha a capacidade de contribuir nos processos políticos da tomada de decisão”, completa.

A guinada da gestão

Essa perspectiva política da gestão, no entanto, não esteve sempre em voga. Gilberto conta que, em sua gênese, a concepção de gestão nada tinha a ver com emancipação. “No mundo do trabalho, a partir da década de 50, surgiu um campo de conhecimento denominado administração científica, voltado, principalmente, para a indústria. Ford, Taylor e Fayol introduziram a idéia de gerência. Para eles, o ideal era criar condições para que houvesse mais produtividade. Como eles planejavam fazer isso? Com o gerenciamento das ações, dos serviços, dos processos de trabalho”, informa. Segundo ele, o panorama começou a mudar a partir dos anos 80. “Nesse momento, o campo da gestão passou a agregar não só uma concepção técnica, mas também um caráter político. O SUS foi pensado assim”, diz.

Gilberto lembra que, no campo da saúde, as mudanças acompanharam as bases sobre as quais o SUS foi construído. “A década de 80 foi um marco estratégico para as mudanças que ocorrem na organização do sistema de saúde público brasileiro. O SUS já surgiu com uma concepção ampliada de gestão em saúde, em contraposição ao modelo anterior, hospitalocêntrico. Com o SUS, outras estratégias foram criadas, como a atenção básica”, avalia o coordenador, que ressalta a importância de ligar esse contexto com as competências exigidas de um técnico em gestão hoje. Pedro Areas, técnico em gestão formado pela EPSJV e atual assessor de planejamento da direção do Hospital Geral de Bonsucesso (HGB), no Rio de Janeiro, concorda: “Hoje, a partir da organização da atenção por níveis de complexidade, o trabalho do técnico envolve planejar e organizar sistemas de referência e contra-referência”, afirma.

Funciona assim: vamos supor que um paciente atendido pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) reclame de falta de ar, cansaço e tenha desmaios esporádicos. O procedimento da equipe deve ser encaminhá-lo para uma unidade de média complexidade, uma clínica, por exemplo, para que ele faça mais exames que facilitem o diagnóstico. A transição de um nível de atenção para outro seguinte é chamado sistema de referência. Se os resultados indicarem um quadro que possa ser controlado sem precisar referenciá-lo para uma unidade de alta complexidade, a clínica o contra-referencia de volta para a ESF, onde será mantida uma estratégia de vigilância. E é o técnico de gerência quem vai orquestrar essas idas e vindas, conectando-as.

Os desafios do técnico

“O maior desafio do trabalhador da gestão no SUS é fazer o Sistema Único funcionar”. A frase de Gilberto Estrela ilustra bem as contradições específicas da área. Formado pelo SUS, o técnico em gerência ainda é pouco absorvido por ele. A resposta unânime para o aparente paradoxo é a falta de reconhecimento desse profissional. Gilberto explica: “Na verdade, não há um mercado constituído para o técnico de gestão. Os trabalhadores são absorvidos nos serviços de saúde através de concurso, que, para as atividades de administração, não exige formação específica. Em geral, eles recebem a denominação de auxiliar administrativo. O ideal seria a criação de um plano de carreira especial para o técnico”. Bruna Duque, recém-contratada pelo HGB para a área de planejamento e ex-aluna da EPSJV, conta que quando começou a estagiar, em 2007, eram poucos os colegas que sabiam exatamente as atribuições de um técnico em gerência. “A maioria das pessoas nunca tinha se deparado com esse tipo de trabalhador e tinha dificuldade de entender o ganho que ele trazia para a unidade de saúde”, lembra.

Uma das razões que explicam esse fenômeno é o fato de a própria formação não ser tão disseminada quanto deveria. Isa Chrisóstomo, coordenadora do curso do Centro de Formação de Pessoal para os Serviços de Saúde Dr. Manuel da Costa (CEFOPE/RN), uma das três Escolas Técnicas do SUS que oferecem o curso, explica a importância de uma política de formação mais abrangente para os trabalhadores da gestão: “O trabalhador sem formação aprende a fazer observando os outros. Ele não vê o todo, pois só conhece a atividade que pratica. Esse isolamento o leva a não saber o porquê da sua função, no que ela resulta e qual a sua importância no processo. Não é raro um trabalhador da área de gestão se sentir marginalizado. Nosso curso procura mostrar que sem as atividades-meio seria impossível haver atendimento de qualidade, pois todas as partes do processo são importantes para a eficiência da assistência”, destaca.

Um fator apontado pelos entrevistados como sendo decisivo para a categoria é a falta de uma política pública mais consistente. Para Isa, a melhoria do Sistema Único passa necessariamente pela educação: “Sabemos que só a formação não vai resolver o problema, mas ela já melhora muito. Nós temos visto uma melhoria, principalmente na tomada de consciência do trabalhador, que passa a ter uma outra visão ao conhecer todo o processo de trabalho. Até o relacionamento dele com a instituição muda. Então, não podemos pensar que investir nas atividades finalísticas é o único caminho. Prestar atenção também na gestão é uma opção nada desprezível de fazer um SUS melhor”.

Maíra Mathias

*Texto publicado na Revista Poli - saúde, educação e trabalho nº 2 , de novembro/dezembro de 2008

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