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Em foco, a formação em saúde

ESPJV participa de debate no Fórum Social Mundial da Saúde e Seguridade Social, fazendo críticas a uma formação instrumental
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 13/03/2018 11h57 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

‘Formação de trabalhadores de saúde para a ação transformadora e socialmente comprometida’. Este foi o título da mesa da qual a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) participou, fechando o segundo dia do Fórum Social Mundial da Saúde e Seguridade Social, em 12 de março, na cidade de Salvador (BA). “Para debatermos a formação dos trabalhadores em saúde no Brasil há que se levar em consideração a configuração da educação de trabalhadores no país. Esta surge, enquanto responsabilidade do Estado, no ano de 1909. Na época, não tínhamos um desenvolvimento industrial que necessitasse da formação de mão de obra, mas a mentalidade da sociedade demandava que se criassem as escolas de artes e ofícios, com o objetivo de educar pelo trabalho. Leia-se aqui educar moralmente, disciplinar, reprimiros pobres, os desvalidos que vagassem pelas ruas”, historicizou a diretora da EPSJV, Anakeila Stauffer.

Ela lembrou que a história da formação em saúde se dá sob a perspectiva da divisão entre capital e trabalho . Ou seja, explicou, “há aqueles que deverão ser educados para governar e aqueles que deverão ter uma educação voltada para os trabalhos manuais”. Segundo ela, é nesse contexto que surgem em 1942 as ofertas diferenciadas de ensino: às elites foram destinados os cursos médios de segundo ciclo (científico e clássico), visando à formação no ensino superior; às classes trabalhadoras, também na modalidade de cursos em nível médio de segundo ciclo, eram ofertados os cursos de agrotécnico, os técnicos comercial e industrial e o normal, que, por sua vez, não valiam para o prosseguimento dos estudos em nível superior. Anakeila contou que foi entre 1942 e 1946 que surgemas escolas técnicasvinculadas ao Serviço Nacional da Indústria (Senai)e ao Serviço Nacional do Comércio (Senac). “Até hoje estas instituições existem e tomam protagonismo na formação da classe trabalhadora, disputam verbas públicas. Ou seja, as classes dominantes formam as classes trabalhadoras para estarem conformadas com o discurso capitalista de empregabilidade, empreendedorismo e competência”, lamentou.

Duas classes, dois tipos de educação

A educação diferenciada segundo as classes sociais persiste nos dias de hoje, avaliou Anakeila. “Há um número restrito de trabalhadores, proveniente de classes mais favorecidas economicamente, que tem uma sólida educação científico-tecnológica ofertada, na maioria das vezes, por instituições privadas. No entanto, esta formação cria estratificação entre eles”, observou. Anakeila ressaltou que apesar disso há um espaço para a discussão de uma educação integral, omnilateral, laica, unitária, politécnica e emancipadora. “É com esta concepção que nasce a EPSJV em 1985”, revelou.  A diretora explicou que a formação oferecida pela Escola está pautada pela concepção de uma educação politécnica, ou seja, pela ruptura com um modelo dualista de educação, pelo qual o trabalhador tem acesso apenas a saberes instrumentais que lhe permitam desempenhar tecnicamente suas funções produtivas. “É contrária à concepção hegemônica instrumental”, resumiu.          

             
São muitos os desafios a serem enfrentados, de acordo com Anakeila. Um deles é fazer da formação profissional em saúde, em pleno século 21, política pública. “Cada vez mais o SUS tem servido ao mercado na medida em que são as instituições privadas que vêm formando os trabalhadores para os serviços públicos”, criticou a diretora.

Anakeila apresentou também a estrutura da Pós-Graduação da Escola. “Apesar dessa formação serobjeto da luta, no âmbito das políticas públicas educacionais da educação básica, pela valorização dos profissionais da educação, necessitamos ainda firmar uma política específica de formação para esses professores da formação profissional”, orientou, observando que em grande parte a educação profissional foi formada por docentes que se constituíram pela prática e por sua própria formação técnica. “Por isso que, acrescentou, que o objetivo da Escola é formar, sob bases sólidas, docentes que reflitam sobre sua prática de ensino, as tecnologias na sua relação com o mundo do trabalho e as relações sociais que as envolvem.

O curso de Especialização Trabalho, Educação e Movimentos Sociais (TEMS), realizado pela Escola Politécnica em parceria com o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foi também apresentado por Anakeila. “O objetivo central do TEMS foi consolidar uma base teórica crítica, embasada no marxismo, e realizar uma substantiva iniciação à pesquisa para professores e militantes do MST, atuando principalmente no setor de educação”, revelou.  Ela destacou como desafios da Escola e da formação em saúde a dificuldade de sistematizar as experiências para avaliá-las e possibilitar a disseminação e a socialização dessas práticas. “É a partir dessa perspectiva que resistimos, buscando construir formações coerentes com um projeto de sociedade no qual a saúde e a educação não sejam concebidas como mercadoria”, concluiu.

Experiências comuns

Ary Miranda, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) e coordenador do mestrado, apresentou também uma experiência de formação com o MST. Tratou-se doMestrado Profissional em Trabalho, Saúde Ambiente e Movimentos Sociais, organizado pela ENSP em 2013 como parte da estratégia de implementação da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF). Segundo ele, o curso foi voltado exclusivamente para profissionais graduados em cursos reconhecidos pelo MEC, em qualquer área do conhecimento, que atuassem na Saúde, na Educação do Campo ou nas Ciências Agrárias, em áreas de Reforma Agrária ou comunidades camponesas. “Esperávamos que nosso curso colocasse a ciência em favor da luta desses povos. Para isso, o currículo deveria ser específico. A alternativa foi incluir na coordenação um representante do MST em condição de igualdade na tomada de decisão”, justificou Ary.

O curso contou com 28 alunos, buscando consolidar conhecimentos acerca do método científico, da teoria crítica, bem como desenvolver investigações em torno das relações trabalho, saúde, ambiente e movimentos sociais. A parceria foi exitosa e rendeu belos frutos, revelou o pesquisador da ENSP: “100% de aprovação nas 27 dissertações de mestrado apresentadas pela turma Primavera de Luta, em 2016”. Segundo ele, os projetos de pesquisa revelaram a realidade de vida de cada aluno.  “Os trabalho trataram de temas como saúde no assentamento, uso de agrotóxicos, agroecologia, entro outros”, destacou, acrescentando: “Foi um experiência incrível, pois foi o primeiro passo para trazer o movimento social para academia”. Ele lamentou, porém, que a segunda turma, já aprovada pelo Ministério da Saúde, tenha sido cancelada pelo atual ministro Ricardo Barros. “Essa gestão não prioriza o ‘empoderamento’ desses povos, infelizmente”, criticou.

Capitalismo X formação

Nancy Jeanet Molina Achury, professora da Universidade Nacional da Colômbia e militante do Movimento Nacional pela Saúde, apresentou algumas reflexões sobre a formação profissional. Segundo ela, essa formação apresenta muitas incoerências: “Há uma grande divisão do trabalho teórico e prático; e, no momento em que os profissionais tenham que escolher suas competências, faz com que o trabalhador assuma uma tarefa sem ao menos entender como funciona a dinâmica do trabalho”.
Para Nancy, há uma intencionalidade de provocar essa fragmentação da prática profissional pela formação. “Há uma pressão permanente para que o trabalhador não tenha controle sobre o processo de trabalho. Essa fragmentação funciona como mecanismo de controle do trabalhador, criando uma série de protocolos de atuação na saúde, por exemplo. O trabalhador perde a capacidade de pensar”, observou. O mesmo acontece com a precarização dos trabalhadores. “Formar uma mão de obra barata é extramente fundamental para o capitalismo. Logo, a educação também estará pautada em cumprir os anseios do capital”, acrescentou. Visando à superação dessa fragmentação, Nancy propôs aproximar a prática ao currículo. “É preciso conhecer nossos profissionais e onde atuam. Esse novo currículo teria a possibilidade de aproximar a teoria da realidade, fazendo com que o processo de formação seja transformador e problematizador”, concluiu.