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Terceiro Setor

Para seus defensores, o crescimento do chamado Terceiro Setor trouxe uma possibilidade de ampliação da democracia e de atuação sobre as mazelas sociais para fazer frente à “ineficiência” e ao esvaziamento da capacidade de intervenção social do Estado. Já para quem o critica, essa denominação acoberta um processo de esvaziamento político das lutas sociais e de retirada de direitos dos trabalhadores, garantidos, no contexto brasileiro, pela Constituição de 1988.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 01/07/2013 15h14 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Instituições filantrópicas, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), fundações empresariais...Todas essas entidades já figuraram nas páginas da Poli pelo menos uma vez. Mas essa não é a única coisa que elas têm em comum: essas formas de organização da sociedade civil integram o chamado Terceiro Setor, denominação que abarca, além das entidades citadas, as organizações não-governamentais (ONGs), entre outras, e se refere às organizações privadas que não integram o aparato de governo e nem são orientadas pelo lucro. É no bojo das políticas neoliberais de ajuste estrutural, a partir dos anos 1980, que essa noção ganha corpo, à medida que se multiplicam as entidades que supostamente compõem esse setor. Para seus defensores, o crescimento do chamado Terceiro Setor trouxe uma possibilidade de ampliação da democracia e de atuação sobre as mazelas sociais para fazer frente à “ineficiência” e ao esvaziamento da capacidade de intervenção social do Estado. Já para quem o critica, essa denominação acoberta um processo de esvaziamento político das lutas sociais e de retirada de direitos dos trabalhadores, garantidos, no contexto brasileiro, pela Constituição de 1988.

Iniciativas privadas para serviços públicos

No livro ‘Terceiro Setor e a questão social’, o professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Montaño aponta que essa denominação foi cunhada em 1978 por John D. Rockefeller III, filantropo norteamericano, neto do fundador da petrolífera Standard Oil. Enraizado na tradição do associativismo e voluntariado liberal, Rockefeller entendia que esse setor, composto pelas instituições privadas e sem fins lucrativos, formava, juntamente com o governo (1° setor) e o mercado (2° setor), o tripé que sustentava a “vitalidade” dos Estados Unidos. No Brasil, segundo Montaño, o termo difundiu-se na década de 1990, a partir de um evento sobre filantropia organizado pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), órgão que reúne entidades filantrópicas empresariais como a Fundação Roberto Marinho e o Instituto Ayrton Senna, por exemplo.

O coordenador-geral da ONG Viva Rio, Rubem César Fernandes, escreve no livro ‘Privado porém Público’, de 1994, que o “conceito agrega um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos”. Além de serem privadas, para serem enquadradas no Terceiro Setor essas organizações devem ser não-lucrativas, não-governamentais, autogovernadas e voluntárias, explica Fernandes, que relaciona a emergência do Terceiro Setor ao fim da Guerra Fria e da polarização entre socialismo e capitalismo. “Se o mercado está aqui para ficar e se o Estado tampouco dá sinais de desaparecimento, a polarização global anterior dá lugar a um tipo de questionamento contextual: que tipo de mercado então? E que tipo de Estado?”, escreve. Para ele, nesse novo contexto caberia ao Terceiro Setor a “afirmação de valores”, como “caridade”, “solidariedade” e “compaixão”. “Abre-se espaço na iniciativa particular para outras razões que não as do lucro. A segunda negação (sem fins lucrativos) faz referência a uma série de organizações e de ações cujos investimentos são maiores que os eventuais retornos financeiros. O que elas fazem é simplesmente caro demais para os mercados disponíveis”, escreve, citando como exemplos os serviços de saúde, de educação e de “apoio aos carentes”. “Supondo que o Estado não dê conta de subsidiar toda essa atividade, ou não se disponha a fazê-lo, resulta que elas só podem subsistir se contarem com doações feitas por terceiros”, escreve.

Nova modalidade de intervenção social

Em entrevista à Poli, Carlos Montaño critica essa divisão da realidade social em ‘setores’, tipicamente liberal. “Terceiro setor conduz a uma ideia de sociedade civil desarticulada da realidade econômica, da produção, do consumo, das diferenças econômicas e desigualdade política. É uma ideologia que diz que é possível mudar o mundo na sociedade civil sem alterar qualquer aspecto da dimensão econômica e política, ou seja, os privilégios, as desigualdades econômicas e políticas podem continuar existindo enquanto na sociedade civil nós firmamos um pacto de igualdade e justiça social”, pontua.

Para ele, Terceiro Setor é uma denominação ideológica que encobre um fenômeno real: a emergência de um novo padrão de resposta às demandas sociais baseado em valores neoliberais, com a desresponsabilização do Estado, a desoneração do capital e a transferência da responsabilidade sobre as mazelas sociais para a esfera individual. O que está por trás disso, diz ele, não é uma disputa sobre que “setor” deve se responsabilizar pela ação social, se o Estado ou as empresas privadas, como a questão é tratada hoje. “O que deveria estar sendo debatido é a modalidade central de intervenção na ‘questão social’. Na Constituição brasileira, isso é claro: a modalidade é através da política e da ação estatal, através dos valores de direito de cidadania e dever do Estado de garantir direitos universais”, afirma. Segundo Montaño, com o desmonte dessa modalidade de intervenção sob o neoliberalismo a partir do governo de Fernando Collor de Mello no Brasil, se promove uma “retirada da responsabilidade social do Estado, que fica apenas com uma política focalizada orientada para a extrema pobreza, transferindo essa responsabilidade ou para as empresas privadas, que vão lucrar vendendo e transformando em produtos o que é constitucionalmente um dever do Estado e um direito de cidadania, ou para a esfera do Terceiro Setor, que vai tornar esse direito uma ação filantrópica, voluntária”.  Como coloca em seu livro ‘Terceiro Setor e Questão Social’, o Estado tem atuação destacada nesse movimento. “É o Estado que nos inunda de propaganda sobre o ‘Amigo da Escola’, que promove o Ano Internacional do Voluntariado, que desenvolve a legislação para facilitar a expansão destas ações, que estabelece ‘parcerias’ repassando recursos públicos para estas entidades privadas etc.”, exemplifica Montaño, para em seguida completar: “Desresponsabilizar-se e afastar-se parcialmente da intervenção na ‘questão social’ não elimina o fato de o Estado ter um papel fundamental nas transformações operadas pelos governos e pelo capital sob hegemonia neoliberal”. Segundo ele, a partir de meados da década de 1990, foram aprovadas várias novas leis no Brasil que beneficiaram organizações privadas com ‘interesse público’, ‘não-governamentais’ e ‘sem fins lucrativos’, “como corolário e justificativa para o processo neoliberal de desresponsabilização do Estado”, entre elas a Lei 9.790/99, que criou as Oscip, credenciadas para receber recursos públicos por meio de ‘termos de parceria’. Hoje, segundo dados da Associação Brasileira das Sociedades Civis de Interesse Público (Abrascip), existem 6.515 organizações deste tipo no Brasil. O professor informa ainda que essas entidades receberam, em 2011, R$ 4,4 bilhões em recursos do governo federal, sem licitação.

Cooperação entre classes ou cooptação?

As políticas neoliberais também significaram uma reorientação das estratégias de intervenção social levadas a cabo pelas chamadas organizações não-governamentais, expressão mais conhecida do chamado Terceiro Setor. No artigo ‘Imperialism and NGOs in Latin America’ (‘Imperialismo e ONGs na América Latina’), o sociólogo norteamericano James Petras, especialista em política latinoamericana, escreve que muitas entidades semelhantes ao que hoje chamamos ONGs surgiram na década de 1970 para denunciar as violações de direitos humanos cometidas pelas ditaduras militares. Segundo Petras, na década de 1980, à medida que crescia a oposição às políticas neoliberais, os governos dos Estados Unidos e de países da Europa e o Banco Mundial passaram a destinar mais recursos para as ONGs. Rubem César Fernandes, em seu livro, comemorava o crescimento da fatia dos orçamentos das ONGs composta por recursos públicos e a interpenetração de agências multilaterais nas ONGs, que via como um exemplo do caráter supraclassista do Terceiro Setor. Fernandes cita ainda movimentos como a adoção crescente de políticas de “investimento social” por grandes empresas nacionais e multinacionais e o apoio de fundações norteamericanas, como a Ford, a projetos de promoção da filantropia empresarial. “Todos ilustram a tendência de romper barreiras anteriormente insuperáveis, que definiam alianças e oposições em termos de grandes divisões partidárias e ideológicas. Evidenciam também a busca de formas interativas mais leves e circunstanciais, capazes de expressar um sentimento difuso de urgência no enfrentamento dos problemas sócio-institucionais”, aponta.

Para Petras, esse movimento significou uma cooptação das ONGs, à medida que os organismos financiadores incentivavam essas entidades a minar as tentativas de implementação de Estados de Bem-estar Social. “Ao mesmo tempo em que os regimes neoliberais centrais devastavam comunidades inundando o país com importações baratas, extraindo o pagamento da dívida externa, abolindo legislações trabalhistas e criando uma massa crescente de trabalhadores mal pagos e desempregados, as ONGs recebiam financiamento para oferecer projetos de ‘auto-ajuda’, ‘educação popular’ e capacitação para o trabalho, para absorver temporariamente pequenos grupos pobres, cooptar lideranças locais e minar lutas contra o sistema”, argumenta, no artigo.

No livro ‘O Brasil e o capital-imperialismo’, a historiadora e professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Federal Fluminense (UFF) Virgínia Fontes mostra a inflexão na atuação de ONGs brasileiras, que surgem como polos de assistência e capacitação de movimentos sociais, com referências anticapitalistas, mas que na década de 1990 abandonam o discurso de superação do capitalismo em favor da cooperação entre classes. A autora usa o exemplo do Movimento Ética na Política, que exigiu a destituição do governo Collor. “Embora voltado para alvo diretamente político, eximia-se da perspectiva de organização de classes, limitando-se a uma abordagem moralizante”, escreve Virginia. Um desdobramento da campanha foi a Ação da Cidadania contra a Miséria pela Vida, capitaneada por Herbert de Souza, o Betinho, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que mobilizou diversos setores sociais a contribuir por meio de donativos. “O direcionamento da Campanha evitou cuidadosamente enraizá-la nos elementos contra-hegemônicos, o que exigiria denunciar as gritantes expropriações em curso (e não apenas apiedar-se diante de seus efeitos), insistindo para assegurar uma participação de todos – sobretudo dos empresários com perfil moderno [...], que desconsiderava as clivagens de classe. Assim, a campanha permitiu à nova tática burguesa de ‘administração’ de conflitos acelerar o trânsito da demanda de igualdade para o terreno da ‘inclusão’”, escreve. Segundo ela, as ONGs recusaram-se à construção de uma diretriz contra-hegemônica, pela rejeição que provocaria em alguns de seus integrantes da campanha. “Sobretudo, arriscaria bloquear o acesso ao financiamento empresarial, aos órgãos e recursos públicos e finalmente, à grande imprensa”, conclui Virgínia Fontes.                                                                                                                                                                                                                 

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