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Entrevista: 
Ivan Valente

'Não é mais possível financiamento de empresas'

O deputado federal tentou criar uma CPI para investigar os planos de saúde e foi impedido pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Nesta entrevista, Ivan Valente destaca as doações de campanha feitas pelas empresas de saúde suplementar e denuncia a defesa de interesses privados no Congresso.
Cátia Guimarães, Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 13/03/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Luis Macedo / Câmara dos DeputadosO deputado Ivan Valente apresentou à Câmara dos Deputados o pedido de abertura de uma CPI para apurar os abusos cometidos pelos planos de saúde. Alegando “falta de foco”, o presidente da Casa, Eduardo Cunha, que recebeu R$ 250 mil de doação da Bradesco Saúde na campanha eleitoral do ano passado, recusou. Na avaliação de Ivan Valente, posturas como essas só reforçam o que, também na sua opinião, o escândalo da Petrobras já tem mostrado: que o financiamento privado de campanha gera corrupção e cria no Congresso ‘bancadas’ que atuam para defender os interesses de grupos empresariais. Nesta entrevista, ele cita o mapeamento que Ligia Bahia e Mario Scheffer fizeram de todos os candidatos que receberam doação de empresas de saúde suplementar em 2014 para mostrar como tem crescido a presença do setor privado de saúde no Congresso. Na próxima edição da Revista Poli, que estará no Portal EPSJV na próxima semana, você vai ler uma reportagem completa sobre essa pesquisa.

O que a CPI dos Planos de Saúde pretende investigar? Quais são os fatos e informações que sustentam a abertura da CPI?

Na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, nós analisamos várias denúncias — que a imprensa também divulga todos os dias — de irregularidades, ilegalidades e abusos dos planos de saúde em relação ao cumprimento dos contratos que eles têm com 50 milhões de pessoas. Primeiro, em relação ao atendimento: problemas de marcação de consulta, cirurgias adiadas, exames recusados quando os médicos pedem. O aumento abusivo dos preços resultou em dois projetos de lei nossos que defendiam que se utilizasse o IPCA [Índice de Preços ao Consumidor Amplo] para correção dos planos de saúde individuais. Mais do que isso, a não-fiscalização pela ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] é uma coisa recorrente. Temos acompanhado como são feitas as indicações para [a direção da] ANS: aquele Elano Figueiredo acabou sendo rejeitado pela Comissão de Ética Pública por pressão da Comissão de Defesa do Consumidor, porque nós o convocamos três vezes para depor. Acontece hoje o que a gente chama de porta giratória: pessoas vêm da iniciativa privada para a ANS fiscalizar o lugar de onde vieram. É a raposa tomando conta do galinheiro. Isso tudo são denúncias permanentes. Tem também os profissionais de saúde, que são mal remunerados no geral e sofrem assédio moral porque são coagidos a atender os pacientes em prazos mínimos e a não pedir exames que lhes garantam um diagnóstico aceitável. Além disso, uma reportagem da imprensa mostrou que 88% das reclamações contra os planos de saúde têm ganho de causa na justiça, mas essas empresas mantêm uma máquina judiciária de advogados para recorrer, o que faz com que, na média, segundo pesquisa feita pela Folha de S. Paulo, você leve de seis a 12 anos para que seja efetivado o ganho na justiça. Tudo isso faz parte de um arcabouço de reclamações que dão foco ao nosso pedido de CPI. Esse pedido foi feito a partir da coleta de 201 assinaturas em apenas um dia.

No vídeo divulgado pelo mandato, o senhor entra em um embate com Eduardo Cunha, que lança mão do regimento para impedir a abertura da CPI. Ele está correto?  

Ele foi absolutamente arbitrário. Para ser aberta, uma CPI tem que ter foco, ter as assinaturas legais necessárias e ser de interesse público. Nosso pedido atende plenamente a todas as questões. As milhares de denúncias que estão colocadas pela sociedade, a demanda de 50 milhões de usuários, a relação disso com a debilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) —, tudo isso seria debatido na CPI. Por que se transfere tanto recurso público para o setor privado?  Das 201 assinaturas colhidas, 186 foram reconhecidas – o necessário era 171. Tudo isso tem legalidade, tanto que nós pedimos à assessoria legislativa da Câmara dos Deputados, que é muito competente, para dar um parecer completo. Eles nos forneceram esse parecer, que diz que nosso pedido de CPI atende a todos os requisitos e inclusive citaram que a CPI é um instrumento da minoria. Por isso, nós estamos entrando com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal.

Do nosso ponto de vista — inclusive questionamos isso em plenário —, o deputado Eduardo Cunha evidentemente não quis abrir a CPI por motivos políticos. Um desses motivos é que ele é um dos 30 e tantos parlamentares eleitos que foram financiados pelos planos de saúde. Declarado, ele recebeu R$ 250 mil da Bradesco Saúde. Nós temos um documento mais completo do professor Mario Scheffer e da professora Ligia Bahia sobre o financiamento das campanhas eleitorais por esse setor comercial da saúde, mostrando quanto cada candidato majoritário e proporcional recebeu. E, entre os parlamentares, está o nobre poderosíssimo. Na legislatura anterior, o deputado Eduardo Cunha foi relator da Medida Provisória 627, que tratava de outras questões, mas na qual ele inseriu uma emenda em que anistiava os planos de saúde em cerca de R$ 2 bilhões. Ele foi o autor dessa emenda, que foi posta de última hora, passou no Congresso mas foi vetada pela presidente Dilma. E nós denunciamos isso na época. Então, na minha opinião, a decisão dele não é técnica, é política.

Temos acompanhado uma série de votações da Câmara dos Deputados contrárias ao SUS. Em dezembro, foi aprovada a Medida Provisória nº 656 de 2014, com inclusão da autorização para entrada do capital estrangeiro na saúde. Em fevereiro, foi aprovada a PEC do Orçamento Impositivo. Qual é a correlação de forças na Casa para a aprovação de medidas que fortaleçam o SUS e regulem/penalizem empresas privadas de saúde?

Eu acho que tem uma questão de ordem mais geral que a CPI da Petrobras está trazendo à tona. Porque 60% dos deputados e senadores foram financiados por 13, 14 empreiteiras, que estão todas na Lava Jato, com seus proprietários presos. Então, isso criou todo um debate sobre o financiamento privado de campanha. Quando você fala no estatuto do desarmamento, vê que a maioria dos deputados foram financiados pelas empresas produtoras de armas, particularmente o Rio Grande do Sul. Quando vai para a questão dos planos de saúde, você vai ver que tem aumentado não só a quantidade de parlamentares, mas o volume de recursos para fazer um poderoso lobbie. E o pior de tudo é que uma grande parte desses deputados está na Frente Parlamentar da Saúde, como o deputado Darcisio Perondi, que foi um dos que mais recebeu dos planos de saúde e coordena essa Frente. A saúde está vendida nessa história. Tudo isso mostra o seguinte: a questão que está ganhando corpo na sociedade é que não é mais possível financiamento de empresas porque isso gera corrupção, gera compromissos e não só em um ou outro setor. Na contramão dessas evidências, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes está sentado em cima da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) da OAB [nº 4650, que questiona a legalidade do financiamento privado de campanhas], que já foi votada por seis votos a um e ele pediu vistas, há 11 meses. E a primeira medida do deputado Eduardo Cunha [como presidente da Câmara] foi avocar da CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] para o plenário a PEC que institucionaliza o financiamento privado, na contramão do que está acontecendo no Brasil. O escândalo da Petrobras está mostrando que toda essa dependência do financiamento de empresas gera só negócios em detrimento do interesse público e corrupção também. O deputado Eduardo Cunha abriu a comissão da Reforma Política na contramão da denúncia do escândalo da Petrobras. Esse é o grande embate que está tendo hoje. Se acabarmos com o financiamento privado de empresa, vamos atingir amplamente essa possibilidade de não ter mais interferência do poder econômico no processo eleitoral e menos lobbie no Congresso.

Alguns analistas discordam dessa afirmação e dizem que o escândalo da Petrobras mostra que o problema não é o financiamento de empresas porque grande parte do que se está discutindo hoje era caixa 2. O que o sr. acha?

É exatamente o contrário. O escândalo da Petrobras está mostrando que não há como distinguir entre propina e doação legal. A propina virou doação legal. Então, os defensores da continuidade do financiamento empresarial, como o sr. Merval Pereira, dizem que o problema são as coligações partidárias, os acordos espúrios. Sim, isso é verdade também, mas não é essa a questão. O acordo partidário não tem base e não tem transferência de recursos se não há o financiamento privado. O caixa 2 é crime. Se você falar: ‘vamos votar o financiamento público exclusivo’, alguém pode continuar fazendo caixa 2. Mas aí isso tem que virar crime e você tem que alertar a população para os gastos de campanha, aparelhar o TSE para condenar, prender e, mais do que isso, impedir que o sujeito siga a carreira política se cometer crime de caixa 2. O que esses defensores do financiamento privado não querem é que essa bandalheira que financia candidatos, políticos e partidos os obrigue a ganhar voto olho no olho do eleitor, sem ter que contratar marqueteiros, milhares de cabos eleitorais e comprar voto.

Outro exemplo de medida contrária ao SUS é a PEC 451/14, de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que pretende incorporar no rol de direitos constitucionais do trabalhador urbano e rural o direito a plano de saúde para assistência médica pago pelo empregador. O mandato tem posição a esse respeito?

Eu não cheguei a estudar ainda esta PEC, mas assim como está formulada, e vindo do deputado Eduardo Cunha, não tenho dúvidas de que serve para dizer que todo trabalhador tem direito ao atendimento privado porque o público não cumpre seu dever. E, então, o governo tem que transferir recurso público para o setor privado. É a mesma coisa com a educação: você cria o Prouni, o Fies – que está agora nessa crise toda —, ao invés de investir na educação pública, gratuita e de qualidade. Em vez de fortalecer o sistema público de saúde, você diz que o sujeito tem direito à saúde e dá dinheiro para o plano de saúde. Só posso imaginar isso.

É possível identificar uma bancada privatista da saúde hoje no Congresso, como temos, por exemplo, a bancada ruralista?

Ela está na própria Frente Parlamentar da Saúde. Eles sempre foram hegemônicos lá.  Quando não são ligados diretamente ao setor empresarial, são ligados aos setores corporativos da área médica, que também são bastante complicados. Eu diria que não é uma frente só privatista. Privatizam geral. Tem a bancada da bala, da bola, ruralista – que é a mais poderosa de todas e suprapartidária. São financiados por setores agrícolas e agropecuários, outro pelas escolas particulares. Tem um lobbie poderosíssimo dos grandes grupos privados de educação do país, que são cada vez mais monopólios, na Comissão de Educação. É a mesma coisa que aconteceu na saúde: o estudo da Ligia Bahia e do Mario Scheffer localiza que 94% do financiamento de campanha foi feito por quatro empresas, que são as maiores. Na educação, tem a Kroton, a Estácio, quatro ou cinco tubarões que foram adquirindo os outros. É um cartel com poder de fogo muito forte, que financia e depois cobra.

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