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Aprendizagem profissional: que formação para que trabalhador?

Política que remonta ao governo Getúlio Vargas busca articular formação profissional e emprego para jovens. Considerada eficaz no combate ao trabalho infanto-juvenil e aumento da escolarização, ela levanta críticas quanto à formação ofertada
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 13/12/2021 14h39 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Jabuti legislativo’ é uma expressão que você já deve ter ouvido em algum momento. O termo já faz parte do léxico político brasileiro, e se refere a uma prática comum, porém pouco transparente do nosso sistema político: ele acontece quando um tema sem relação com o texto original de um determinado projeto de lei é inserido no texto pelos parlamentares durante sua tramitação no Congresso Nacional – o ‘habitat’ por excelência dos ‘jabutis legislativos’ brasileiros são as Medidas Provisórias. A origem do termo remonta a uma frase atribuída ao ex-presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães,que dizia que “jabuti não sobe em árvore. Se está lá, ou foi enchente ou foi mão de gente”. 

Um dos casos mais recentes envolveu mudanças consideráveis na política de formação profissional no país, acendendo um debate sobre a chamada aprendizagem profissional, que associa formação técnico-profissional e contratos de trabalho especiais na área de formação para jovens brasileiros que procuram se inserir no mercado de trabalho. 

Um jabuti chamado Requip

No dia 10 de agosto, uma comissão mista – ou seja, formada por deputados e senadores – na Câmara aprovou o relatório do deputado Christino Áureo (PP-RJ) à MP 1.045/2021, que havia sido apresentada em abril pelo governo federal. Originalmente, o texto tinha como objetivo prorrogar, por 120 dias, o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, o Pemer, iniciativa para redução e suspensão de salários e jornadas de trabalho instituída em abril de 2020 como reação aos efeitos negativos na economia da pandemia de Covid-19.

Na comissão mista da Câmara, contudo, a MP ganhou alguns jabutis que fizeram com que o texto passasse a ser chamado de ‘minirreforma trabalhista’ pelos seus opositores. Entre eles estava o Requip, ou Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva, que possibilitava a contratação de jovens entre 18 e 29 anos matriculados em cursos de formação profissional com salários reduzidos e menos direitos trabalhistas. O texto, aprovado plenário da Câmara como o Projeto de Lei de Conversão 17/2021, acabou rejeitado no Senado no dia 1º de setembro.

A rejeição se deu muito por conta da mobilização contrária ao texto organizada por entidades como o Conselho Nacional de Procuradores Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG), que destacou, em nota, que o Requip traria “repercussões drásticas no instituto da aprendizagem profissional”, fazendo referência a uma política do Estado brasileiro que remonta à década de 1940, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas. Naquela época, foi aprovado o decreto-lei 5.091/42, cujo primeiro artigo define, “para efeito da legislação do ensino”, o aprendiz como o “trabalhador menor de 18 e maior de 14 anos, sujeito à formação profissional metódica do ofício em que se exerça o seu trabalho”. Um ano depois, foi apresentado o decreto-lei 5.452, que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ela instituiu os chamados contratos de aprendizagem, que articulam formação profissional e formas especiais de contratação dos aprendizes. Várias décadas depois, em 2000, seria aprovada a Lei Nacional de Aprendizagem, que obriga as empresas a contratarem um percentual mínimo e máximo de aprendizes, entre outras mudanças.

Entre descontinuidades e contradições, a aprendizagem profissional é, segundo Douglas Heliodoro, que em 2019 defendeu uma dissertação sobre essa legislação na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) uma política pública que precisa ser disputada, principalmente tendo em vista o cenário de aumento do desemprego juvenil e da necessidade de os jovens venderem sua força de trabalho. “Há um discurso de que essa lei serve para garantir mão de obra barata para as empresas, e com isso as empresas públicas, as de economia mista, os sindicatos, as universidades públicas e os institutos federais acabaram deixando-a de lado”, lamenta o pesquisador, que afirma acreditar que a política de aprendizagem pode ser um vetor para a garantia do direito à educação e ao trabalho aos jovens. “As empresas e as ONGs [organizações não-governamentais] estão pegando essa lei, essa política pública, e usando-a para conformar a juventude ao trabalho e a educação segundo as suas concepções, enquanto as instituições públicas estão de certa maneira abrindo mão de disputar essa política”, conclui.

80 anos de história

Como resgata a professora da Faculdade de Educação da UFF Jaqueline Ventura, a instituição da figura do aprendiz e dos contratos de aprendizagem na legislação brasileira se deu em meio às transformações trazidas pelo processo de industrialização do país a partir do período conhecido como Estado Novo, entre 1937 e 1945. Em 1941, buscando adequar o sistema de educação às necessidades econômicas e sociais do país, o governo da época instituiu, no bojo do que ficaria conhecida como a Reforma Capanema, uma série de decretos-lei – chamados de leis orgânicas do ensino – atrelando a educação profissional aos ramos da economia: indústria, comércio e agricultura.

Foram esses decretos-lei que marcaram o início do Sistema S, com a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e de Aprendizagem Comercial (Senac), configurando um sistema paralelo de educação profissional descolado do sistema regular de educação. Inicialmente os serviços nacionais de aprendizagem, ligados ao setor produtivo, eram os únicos autorizados a formar aprendizes. “A partir desta década, acentua-se a dualidade educacional com a criação das leis orgânicas direcionadas ao setor produtivo: de um lado o ensino secundário e formação propedêutica para a universidade e de outro, a formação profissional destinada exclusivamente para a produção capitalista”, destaca Ventura.

Segundo ela, foi com o fortalecimento do neoliberalismo no país, a partir da década de 1990, que as políticas de aprendizagem profissional foram alçadas a um novo patamar. A Constituição proibiu o trabalho aos menores de 16 anos, mas deixou aberta a possibilidade de inserção a partir dos 14 anos na condição de aprendiz. Em 1990, foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que prevê alguns direitos trabalhista e previdenciários aos adolescentes contratados sob regime da aprendizagem, além de estipular que a formação técnico-profissional dos aprendizes não poderá se dar às custas do seu acesso e frequência ao ensino regular. O ECA ainda veda aos aprendizes o trabalho noturno, insalubre e realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola.

A Lei Nacional de Aprendizagem

Em 2000, a prática ganhou seu principal incentivo do ponto de vista legislativo. Naquele ano foi aprovada a Lei Nacional da Aprendizagem (nº 10.097). Segundo Douglas Heliodoro, sua minuta foi elaborada por uma comissão formada pelos ministérios do Trabalho e Emprego, Previdência Social, Educação e Ministério Público do Trabalho, resultado da fiscalização contra o trabalho infanto-juvenil que vinha sendo conduzida ao longo da década de 1990, após a aprovação do ECA. “Eles encontram milhares de adolescentes que eram chamados de estagiários, trabalhando em troca de uma bolsa, só que não estavam fazendo um curso técnico ou nenhum outro curso”, explica Heliodoro.

Pela lei, que ficaria conhecida dali em diante como Programa Jovem Aprendiz, as médias e grandes empresas de qualquer ramo econômico – inclusive as públicas e de economia mista – passaram a ser obrigadas a empregar e matricular em cursos do Sistema S no mínimo 5% e no máximo 15% de sua força de trabalho como aprendizes, inicialmente jovens entre 14 e 18 anos, limite que seria ampliado pela lei 11.180/2005 para 24 anos. Também em 2005, foi editado o decreto 5.598/05, que regulamentou a Lei Nacional de Aprendizagem, incluindo entre as instituições qualificadas a oferecer formação técnico-profissional as escolas técnicas de educação e entidades sem fins lucrativos “que tenham por objetivos a assistência ao adolescente e a educação profissional”. A partir de 2016, com a edição da portaria 401, emitida pelo MEC, as instituições privadas de ensino superior foram autorizadas a oferecer cursos técnicos de nível médio, ficando habilitadas a atuar como formadoras de aprendizes.

De acordo com a Lei, os jovens contratados sob o regime do contrato de aprendizagem, com duração máxima de dois anos, devem ter a carteira de trabalho assinada e não podem ter jornadas que excedam seis horas diárias nem fazer hora-extra. Aos aprendizes também se estendem os direitos garantidos aos trabalhadores com carteira assinada, como férias, 13º salário e contribuição ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que, no entanto, corresponde a uma alíquota de 2% sobre o salário bruto, e não 8%, como no caso de um trabalhador comum. Os aprendizes devem receber salário proporcional ao piso da categoria em que se deu a contratação. Inicialmente a lei exigia matrícula e frequência à escola dos jovens aprendizes até a conclusão do ensino fundamental, mas em 2008 a lei 11.178 passou a exigir dos aprendizes, no mínimo, o ensino médio.

Um dos estudos mais recentes sobre os impactos da aprendizagem enquanto política após a aprovação da Lei 10.097 é de 2016, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): ‘A aprendizagem e a inserção de jovens no mercado de trabalho: uma análise com base na RAIS’, ou Relação Anual de Informações Sociais, organizada pelo então Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que foi extinto em 2019. O estudo indica um aumento substantivo do número de aprendizes contratados entre 2000 e 2013: de 7.411 em 2000, subiu para 326.294 em 2013, sendo quase 157 mil entre 16 e 17 anos. Além disso, o levantamento aponta que o número de contratos de trabalho regularizados como aprendizes após fiscalizações do então Ministério do Trabalho passou de 0,2% do total em 2000 para 42,7% em 2013.

No site do Ministério da Economia, não há informações sobre o número de aprendizes em 2014 e 2015. O boletim da aprendizagem divulgado pela Secretaria de Políticas Públicas de Emprego do Ministério aponta que houve crescimento no número total de aprendizes contratados no país entre 2016 e 2019, passando de 368.818 para 481.284 no período. Em 2020 há uma queda, e o número passa a ser de 393.920. Em 2021, as contratações voltam a crescer: até julho, segundo dados mais recentes divulgados pelo Ministério, havia 461.548 aprendizes no país. De acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, números que ficam aquém do potencial de contratação de aprendizes, que em 2018 foi de 954.823.

Ainda assim, a nota do CNPG – divulgada em meio à possibilidade de aprovação do Requip – faz uma defesa categórica da legislação vigente sobre esse tipo de contratação. Afirma que, “além de proporcionar o conhecimento de uma técnica ou ferramental básico para o exercício de uma função ou ofício, serve também como forte incentivo à escolarização, uma vez que a matrícula e frequência à escola são requisitos” para essa relação contratual. A nota caracteriza a aprendizagem profissional como “política pública de Estado essencial e estratégica para a prevenção e o enfrentamento ao trabalho infantil e à evasão escolar, bem como para a prevenção do ingresso de adolescentes e jovens na trajetória infracional, especialmente no tráfico de drogas”.

Contradições

Ainda que não discordem totalmente desses argumentos favoráveis, pesquisadores da área da educação profissional argumentam que as políticas de aprendizagem exemplificam a chamada dualidade estrutural que marca a história da educação brasileira, determinando uma clivagem entre as políticas de formação voltadas aos jovens mais pobres – submetidos a uma maior pressão pelo ingresso precoce no mercado de trabalho, com uma formação mais instrumental voltada para o exercício do trabalho simples – e as políticas voltadas aos jovens de famílias mais ricas, que têm direito, na prática, a uma formação mais ampla.
Segundo Douglas Heliodoro, que atuou como aprendiz no setor administrativo de uma empresa de construção civil e depois coordenou um programa de aprendizagem na mesma ONG na qual estudou, um efeito positivo da lei foi incentivar jovens que haviam abandonado os estudos a retornarem à escola.

“Eu vi muitos jovens que passaram em processos seletivos para aprendizes e voltaram à escola, por conta da exigência da lei”, revela o pesquisador. E completa: “Outro ponto é que o jovem passa a contribuir [para a Previdência Social] desde muito cedo. Se a gente pensa no que é mercado de trabalho informal hoje, nesse processo de precarização das relações trabalhistas, o jovem aprendiz bem ou mal tem uma seguridade nesse sentido porque já contribui com o INSS, tem o FGTS, tem carteira assinada”, aponta.

Mas ele pondera que, do ponto de vista da formação, a lei, bem com as normas que seriam editadas subsequentemente pelo então Ministério do Trabalho e Emprego em relação à aprendizagem, deixam a desejar. Segundo a portaria 615/2007 do MTE, as instituições formadoras interessadas em oferecer cursos de aprendizagem devem apresentar um programa de aprendizagem ao MTE, que fica responsável pela análise e fiscalização dos conteúdos obrigatórios dos cursos, que por sua vez seguem as diretrizes estabelecidas no Catálogo Nacional de Programas de Aprendizagem Profissional, instituído pela portaria 723, de 2012. Segundo Heliodoro, o catálogo tem diretrizes pedagógicas e concepções de educação alinhadas com as do Sistema S, que representam entidades patronais como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional do Comércio (CNC).  Ele exemplifica com o fato de que, entre as diretrizes comuns a todos os cursos de aprendizagem, estão temas como “empreendedorismo”, “educação para o consumo”, “protagonismo juvenil” e “empregabilidade”, sem que sejam especificados carga horária mínima, conteúdo objetivo a ser abordado ou a formação mínima dos professores que abordarão cada tema, o que para o pesquisador garante às instituições muita autonomia. “A forma que cada instituição formadora vai abordar esses temas vai depender do seu viés ideológico, mas de um modo geral são instituições que estão ligadas a essa lógica neoliberal, voltadas a um processo de conformação desses trabalhadores à ideia de que os jovens se pensem nesse novo contexto do mundo do trabalho em relações mais flexíveis, em que cada um é responsável pelo seu desemprego, pela sua qualificação”, afirma Heliodoro, que em sua dissertação de mestrado argumenta que esse é um discurso “falacioso”, que “omite o processo de precarização do trabalho, de desemprego estrutural, bem como a dualidade estrutural da educação”. Nesse sentido, argumenta ele em sua pesquisa, a aprendizagem profissional tem se configurado como instrumento de disseminação de uma lógica de “formação para o mercado” voltada aos jovens da classe trabalhadora.

Em sua dissertação, Heliodoro analisa o percurso da política de aprendizagem no país da “formação para o mercado” para o que chama de “mercado da formação”, a partir da possibilidade de financiamento público de programas de aprendizagem no Sistema S. Ele destaca o papel do Pronatec Aprendiz, modalidade do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) voltada à formação de aprendizes, a partir de 2011. O financiamento se deu por meio da Bolsa-Formação, que custeou principalmente cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) – de até 160 horas – nas instituições participantes. O objetivo dessa ‘perna’ do Pronatec era ampliar a inserção de aprendizes nas micro e pequenas empresas, excluídas das obrigações estabelecidas pela Lei Nacional de Aprendizagem. Ele explica que essa foi uma forma de o Estado financiar a formação profissional de trabalhadores de empresas que tinham mais dificuldade de arcar com esses custos. “E aí o governo passou a financiar injetando mais dinheiro no Sistema S”, diz, lembrando que, a partir de 2016, as instituições privadas de ensino superior também passaram a ter a prerrogativa de oferecer cursos de aprendizagem profissional.

Em 2019, o MEC lançou o programa Novos Caminhos, voltado à ampliação em 80% do número de matrículas em cursos técnicos e de qualificação profissional até 2023. O programa, que em um dos eixos afirma ter como objetivo reforçar a “obrigatoriedade da oferta de cursos alinhados às demandas do setor produtivo”, não apresenta uma modalidade específica voltada para cursos de aprendizagem profissional.

Procurados pela reportagem, nem o Ministério da Educação nem o Ministério da Economia atenderam às solicitações de entrevista.