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Falta de integração e distribuição das bases de dados fragiliza sistemas de informação em saúde no país

Gerenciar o preenchimento de inúmeros sistemas com a necessidade de verificação dos dados coletados ainda é um desafio para equipes de saúde
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 12/04/2022 14h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

A importância dos dados em saúde para compreensão da realidade e planejamento de ações ficou evidente durante  a pandemia, tanto pela contribuição nas estratégias de vigilância quanto, em muitos casos, por conta das suas ausências ou .falhas tecnológicas. Mas não é de hoje que o Brasil discute a estrutura dos Sistemas de Informação em Saúde (SIS), que sofreram muitas transformações ao longo das últimas décadas e que, apesar das necessidades de melhorias, respondem a uma compreensão de que a informação é um direito e precisa ser a base para a proposição de políticas públicas. Entre os problemas que persistem, estão equipes enxutas para lidar com um variado número de sistemas não integrados e informações que precisam ser confirmadas e investigadas. Do lado de quem analisa os dados, os formulários muitas vezes são preenchidos de maneira incompleta, o que dificulta um olhar mais abrangente para o entendimento das causas e condições de adoecimento. Mais recentemente, em nome de uma integração de dados, o Ministério da Saúde centralizou as informações de saúde na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), que deixa de envolver os estados – uma medida que divide opiniões entre os entrevistados desta reportagem.

Falta de integração

A primeira dificuldade é enumerar todos os sistemas existentes. Em artigo publicado em julho de 2021, Arthur Chioro e Giliate Coelho Neto identificaram 54 sistemas de informação de base nacional, ou seja, que são alimentados por todos os municípios do país. Muitos deles são atualizados diariamente, mas a obrigação dos municípios é enviar mensalmente seus relatórios, sob pena de perderem recursos financeiros federais e estaduais. O estudo é parte da dissertação de Coelho sobre a integração do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (Sisab), criado em 2013, que tem como sistema operacional o e-SUS AB. De acordo com cálculos do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), um terço dos municípios utiliza o prontuário eletrônico do e-SUS, outro utiliza sistemas próprios e um último terço, fichas em papel que posteriormente serão digitalizadas pelas secretarias de saúde. “Em vez de preencher os dados em uma só interface, é preciso abrir o prontuário, depois abrir um variado número de sistemas. As fichas para preenchimento são enormes. Imagina isso com 30 pessoas para você atender”, diz Giliate Coelho, que agora atua como médico da família em Recife (PE) e diz que, em média, trabalha com o preenchimento de 15 sistemas diariamente. Ele completa: “Quanto mais fragmentado para o profissional da ponta, maior vai ser o problema da incompletude dos dados”.

“Quanto mais fragmentado para o profissional da ponta, maior vai ser o problema da incompletude dos dados”. Giliate Coelho, médico da família e ex-diretor do Datasus

Entre os sistemas de base nacional, o médico identificou 31 associados ao Sisab, que ele dividiu em três grandes blocos. O primeiro conjunto é formado por SIS de cadastro e engloba o Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES) e o Cartão Nacional de Saúde (CadSus). O segundo grupo inclui aqueles que são responsáveis por monitorar eventos de relevância da saúde pública. Entre eles está o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), que se desdobra nas várias doenças e agravos de notificação compulsória existentes, como dengue, HIV, gripe, malária e agressões; o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). Ele inclui nesse conjunto também o Sistema Gerenciador de Ambiente Laboratorial (GAL), por oferecer suporte à confirmação do diagnóstico das doenças de notificação. Em um terceiro grupo o autor reúne os SIS que monitoram os programas de saúde do Ministério da Saúde (MS), como o Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI) e o SIS Pré-Natal. E há ainda os que ele classifica como nova geração de sistemas para a gestão, como o Sistema de Regulação (SisReg), para marcação de procedimentos de média e alta complexidade, e o Hórus - Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica.

Em entrevista por e-mail, via assessoria de imprensa, o Conselho Nacional de Secretarias Estaduais de Saúde (Conass) atribui essa fragmentação ao fato de os sistemas estarem estruturados a partir das diferentes formas de ressarcimento estipuladas pelo Ministério da Saúde e estruturas de gestão.  Os repasses aos estados e municípios são feitos fundo-a-fundo, em contas específicas para cada um dos blocos: Atenção Básica; Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar; Vigilância em Saúde; Assistência Farmacêutica; Gestão do SUS; e Investimentos na Rede de Serviços de Saúde. “As áreas historicamente não dialogam entre si com uma base de dados comum”, resume o Conass.

Ao contrário do que se possa imaginar, para os estados, as bases de melhor integração estão entre os sistemas antigos, criados ainda na década de 1970, como o SIM, e os da década de 1990, Sinasc, Sinan e os hospitalares. “As plataformas mais antigas, apesar de inúmeros problemas causados pela defasagem tecnológica, ainda atendem de forma mais adequada às necessidades de estados e municípios, como o SIM e o Sinasc ou a versão mais antiga do Sistema de Informações de Agravos de Notificação - Sinan (esta porém com muitos problemas), bem como aquelas, como o Sistema de Informações Ambulatoriais - SIA e Sistema de Informações Hospitalares - SIH, que contam com a consolidação de dados tabulados enviados pelas Secretarias Municipais de Saúde às respectivas Secretarias Estaduais de Saúde, as quais transmitem, usualmente de forma mensal, para o Departamento de Informática do SUS - Datasus do Ministério da Saúde realizar a consolidação nacional e disseminação”, explica o Conass.

Já os dados da Atenção Primária da Saúde (APS) estão sendo coletados a partir do e-SUS AB, que os envia diretamente para o Ministério da Saúde, sem o fluxo de dados passar pelos estados, desde 2013. “Os estados só têm acesso aos dados repassados pelo e-SUS AB à União se implementarem os chamados ‘centralizadores estaduais’, porém esta integração não se dá de forma automática. Portanto, a maioria dos gestores estaduais acaba contando apenas com indicadores disponibilizados pelo Ministério da Saúde, impedindo o adequado monitoramento das ações realizadas pela Atenção Primária em Saúde em seu território”, critica o Conselho. Para ser ‘centralizador’, o estado precisaria adotar um sistema próprio que funcione como repositório, um local para cópia dos dados referentes à sua região e ter acesso completo às informações centralizadas pelo MS. Com os sistemas antigos ocorre o contrário: as bases estão nos estados e o Ministério da Saúde consolida as informações.

Por outro lado, a integração dos dados da Atenção Básica com os sistemas mais antigos é uma dor de cabeça para os operadores da ponta, como mostrou a dissertação de Coelho, já que em sua maioria são os sistemas com os quais o Sisab não se integra nem de forma parcial. “O Sinan net é o principal sistema de notificação compulsória dos 48 agravos e doenças previstas no Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica. A urgência e periodicidade das notificações dependem de cada agravo ou doença”, escreve Coelho em seu trabalho. Os casos de hospitalização por Covid-19, por exemplo, são notificados por um subsistema do Sinan, o Sivep-Gripe.

E a falta de integração dos sistemas não gera apenas duplicidade de dados ou dificuldade de acesso aos entes federativos que utilizam sistemas distintos, mas afeta também o cotidiano dos usuários. Um exemplo comum está na dificuldade de acesso aos sistemas de regulação para marcação de procedimentos de média e alta complexidade, diz o assessor técnico do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, Diogo Demarchi. Ele conta que é comum as filas de espera não serem unificadas. “A depender da organização local, eu tenho fragmentação, e posso ter, por exemplo, casos de pacientes estarem aguardando o mesmo procedimento em filas de espera diferentes no estado e no município porque um não enxerga o outro”, conta.

Esse problema foi enfrentado pelo coordenador do ambulatório de fisioterapia do Centro Multidisciplinar Pós-Covid do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Hupe/Uerj), Renato Cunha. Ele diz que de junho de 2021, quando o ambulatório foi inaugurado, a janeiro de 2022, foram atendidos cerca de 500 pacientes que necessitavam de fisioterapia por um tempo médio de oito semanas. No entanto, foi necessário um trabalho formiguinha para avisar às clínicas de família quanto à disponibilidade do atendimento, uma vez que o município do Rio de Janeiro utiliza o Sisreg e o governo estadual adota o Sistema Estadual de Regulação (SER). “Tivemos esse problema no início e corremos bastante atrás para informar às clínicas quanto à disponibilidade das vagas no SER. Inclusive mandamos informes de como [as clínicas] deveriam inserir os pacientes no Sistema”, recorda.

Padronização dos dados

Uma forma de fazer os sistemas ‘conversarem’ é a padronização de dados, um ponto que Demarchi considera fundamental para que não haja total dependência do sistema do Ministério da Saúde e seja possível intercambiar os dados entre estados e municípios. E aqui ele não fala apenas de integração tecnológica, mas de construir questionários com uma base comum. Como exemplo, ele cita que o estado de São Paulo adotou um sistema próprio para contabilizar a vacinação, diferente do Conecte SUS. “Se o Ministério da Saúde não pactua com a gente esse padrão de maneira adequada, como São Paulo vai integrar com a base nacional se ele não sabe o padrão? E isso acontece a todo momento”, diz. Para o assessor técnico do Conasems, esse é o motivo dos atrasos das informações sobre vacinação e outros temas, como a assistência farmacêutica, e do acesso a outros sistemas. Ele não nega a necessidade de adotar, nos questionários, campos de informação que atendam às particularidades locais, mas entende que é preciso ter um padrão inicial. No caso de São Paulo, a identificação do paciente não era obrigatória e houve conflito, porque não é possível agrupar os dados dentro de uma mesma classificação. Demarchi acrescenta: “Há a oferta do sistema do Ministério, mas o gestor local faz a aquisição no mercado de sistemas e plataformas. Justamente por isso, é importante existir um modelo de dados no qual, independentemente da plataforma que se utiliza, se consiga enxergar as informações”, argumenta. A adoção de sistemas específicos, criados pelas próprias equipes ou adquiridos de terceiros, é uma prática recorrente dos municípios para fazerem adaptações ao seu cotidiano, confirma o trabalho de Giliate Coelho, que foi diretor do Datasus.

A necessidade de padronização e revisão dos indicadores adotados, no entanto, não é tarefa simples e é um trabalho sobre o qual pesquisadores e gestores da saúde têm se debruçado. Um dos esforços nesse sentido foi a criação, em 1996, da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa). Como forma de garantir imparcialidade das formulações acordadas, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) foi chamada para firmar um convênio com o governo brasileiro e os encontros reuniam representantes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), entre outras instituições. Esvaziada desde 2015, o contrato com a Opas deixou de ser renovado em 2018. “O Ministério da Saúde mudou diversas vezes o método de coleta de dados [sobre Covid-19], algo que poderia ser feito pela Ripsa. Foi feito muito com a tecnologia disponível na época e eu acho que se tivéssemos a Rede disponível, ela poderia facilmente coordenar um processo de diálogo para construir os indicadores de Covid-19”, diz o coordenador do Grupo de Trabalho de Informações em Saúde e População da Abrasco, Marcelo Fornazin, ao comentar as diferenças de padronização de dados entre os entes federativos.

Inconsistências no preenchimento

Outro problema identificado é que, no dia a dia dos serviços de saúde, muitos campos dos formulários que vão alimentar os diversos sistemas de informação deixam de ser preenchidos. Ao defender a importância do preenchimento de dados socioeconômicos, Ilara Hämmerli, pesquisadora na Escola Nacional Saúde Público Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), argumenta que os dados clínicos não são suficientes para explicar as causas de determinados acontecimentos na vida das pessoas e que, ao mesmo tempo, o preenchimento de variáveis como ‘ocupação’ e ‘escolaridade’ permite que as análises dos dados se relacionem com outros estudos que demonstram a prevalência de determinadas doenças a depender do trabalho que a pessoa desenvolva. “O próprio Sistema de Informação Hospitalar [SIH] deveria ter um cuidado no preenchimento do diagnóstico principal da causa daquela internação, porque você tem as causas associadas àquele diagnóstico. Quando esses sistemas de informação não levam em conta as condições de vida da pessoa, já que é tudo em cima da informação do indivíduo, a sociedade brasileira, os gestores e as políticas públicas estão ignorando o que está de fato ocorrendo com essas pessoas”, avalia. Ela detalha: “A discussão da saúde coletiva não é apenas o somatório do que acontece com os indivíduos, porque as relações se restabelecem. É o que acontece com fulano e fulano e mais as relações e as interações que ocorrem naquele ambiente, naquele território”.

Ana Reis, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), reconhece que administrar o preenchimento de tantos sistemas e fichas não é algo simples de se fazer na rotina dos profissionais de saúde. “Os municípios, muitas vezes, não têm o suporte necessário. Falta estrutura de conexão à internet, os computadores são antigos, ou só existe um com maior capacidade, e as equipes são pequenas para dar conta de vários sistemas”, enumera Reis, que também trabalhou por 12 anos na Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro. A professora-pesquisadora diz que esse é o contexto que ajuda a explicar por que as informações muitas vezes não vão além daquilo que é obrigatório de ser preenchido. “Principalmente os dados de escolaridade e raça/cor são informações que não são valorizadas. É isso que a gente chama de ‘cultura do não preenchimento’, são essas informações que são relevantes para a gente conhecer esse perfil, as condições de vida dessa população”, detalha e explica que a solução não passa apenas por tornar determinado item obrigatório, mas também por se fazer entender a importância daquele dado.

“Os municípios, muitas vezes, não têm o suporte necessário. Falta estrutura de conexão à internet, os computadores são antigos, ou só existe um com maior capacidade, e as equipes são pequenas para dar conta de vários sistemas”. Ana Reis, professora-pesquisadora da EPJSV/Fiocruz.

Um exemplo dessa dificuldade de preenchimento está no acompanhamento feito por Bianca Leandro, também professora-pesquisadora na EPSJV/Fiocruz, na utilização do e-SUS AB  na cidade de Piraí (RJ). Em Seminário realizado em dezembro de 2021 para apresentação de resultados da pesquisa com ênfase na discussão sobre a gestão do processo de trabalho, ela relatou que os profissionais de saúde entrevistados consideraram positiva a maior integração com outros sistemas de informação, mas comentavam que algumas integrações importantes ficaram de fora ou ficaram fragilizadas, como com o sistema de informações do Bolsa Família. A pesquisadora notou que há um baixo preenchimento ou não há uma padronização de preenchimento dos prontuários eletrônicos. Entre os motivos dessa ‘falha’, ela identificou o pouco tempo para a discussão conjunta entre a equipe a respeito das dificuldades de preenchimento, o que resulta na pouca confiabilidade ou na ausência de dados estruturantes que irão gerar os relatórios do sistema. Entre as sugestões de mudanças, os profissionais de saúde consideram necessária uma maior interlocução com o Ministério da Saúde para adequações do sistema.

Especialista no Sistema de Informação em Mortalidade (SIM), Reis detalha o motivo de esse ser considerado o de melhor funcionamento. Criado em 1975, o SIM é o sistema de informação mais antigo do país e já está consolidado entre os municípios, também porque se trata de um evento único (o óbito), com mais tempo para checagem e investigação da informação, que é revisada anualmente. Mas essa melhoria foi feita ao longo do tempo, principalmente com a correção de registros mal preenchidos. A criação da Rede Nacional de Serviços de Verificação de Óbito, em 2006, é um exemplo do esforço para qualificar a informação da causa da morte, muitas vezes reduzida a “parada cardiorrespiratória” – o que é comum a todos os óbitos e não ajuda a identificar o problema de saúde que o causou. “Então criaram estratégias que incluí-am a visita de um profissional do município ao hospital para conversar com o médico, consultar o prontuário, realizar investigação domiciliar e mesmo em cemitérios. Foram várias ações, não só reação de investigação, como também ida aos hospitais para fazer palestras e falar da importância da declaração correta”, relembra. Ainda assim, o preenchimento dos dados sociais continua sendo um gargalo.

Outro sistema antigo, mas com uma complexidade mais elevada que o SIM, é o Sinan, que reúne cerca de 50 sistemas para comunicação compulsória de doenças e agravos. O seu desmembramento entre vários sistemas específicos para cada doença ou agravo foi pensado já na sua criação e desde então, várias outras doenças ganharam seus subsistemas específicos. Se por um lado a divisão facilita o atendimento de demandas regionais, em que algumas doenças são prevalentes, Ana Reis não deixa de mencionar o excesso de duplicidade nesses dados e a existência de subnotificações. “O Sinan agrega várias doenças e algumas delas são subnotificadas, como a hepatite e sífilis. E a mesma pessoa pode apresentar a doença mais de uma vez, começar o tratamento e desistir e quando for ao posto novamente vai gerar uma duplicidade na informação. Então, o Sinan geralmente gera deficiências na sua qualidade em termos de cobertura, das notificações, das subnotificações, mas ainda é o principal sistema da vigilância no Brasil”, garante.

RNDS e a proteção de dados

Foto: Marcelo Camargo/Agência BrasilA fragmentação dos sistemas é um problema de longa data e sem soluções fáceis, mas para surpresa da área acadêmica e organizações da sociedade civil, uma proposta que estava sendo discutida no longo prazo surgiu a toque de caixa, dois meses após o início da pandemia. Sob a portaria GM/MS nº 1.434/2020, o governo federal criou a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), com a proposta de integrar informações da Atenção Primária até 2028. Por conta da pandemia, os primeiros dados a serem incluídos foram os referentes à Covid-19.

Para o Conass e o assessor técnico do Conasems, a criação da Rede Nacional de Dados em Saúde, em maio de 2020, foi um marco no caminho da padronização das informações, mas a distribuição das bases de dados preocupa o conselho dos gestores estaduais. “Tivemos uma inversão na prioridade por conta da pandemia, então a Rede está sendo alimentada hoje com os dados de notificação de casos, os dados de vacina, mas ela vai caminhar para consolidar nessa grande rede os dados da atenção básica, da ficha farmacêutica... Todas vão para esse repositório, que se pretende que forneça essas informações qualificadas no âmbito do SUS”, empolga-se Diogo Demarchi. Já para o Conass, a integração “só será viabilizada com a adoção de padrões de interoperabilidade e modelos informacionais nacionalmente acordados, conforme vem sendo preconizado com a implementação da Estratégia de Saúde Digital e da RNDS”.

No entanto, assim como existem dificuldades em acessar os dados do Sisab, que são enviados diretamente para o Ministério da Saúde, o Conass tem a preocupação de como se dará a construção dos repositórios nos estados. O medo é que, por exemplo, ocorra o mesmo apagão de dados (de Covid-19) que aconteceu no final de 2021 e, sem uma cópia dos dados enviados diretamente ao MS, essa base se perca. “A RNDS foi prevista para ser construída em rede federada, com um nó da cadeia em cada unidade da federação. Esta é uma característica fundamental que, em nosso entendimento, precisará ser priorizada a partir de agora, pois uma vez federalizada, a possibilidade de sequestro de dados, ou mesmo a perda de acesso pelo estado é reduzida, uma vez que, para haver invasão da rede, deve-se tomar todos os pontos da cadeia. Considerando, ainda, a necessidade de formação de cópias idênticas das bases (espelhos sincronizados) de dados que, atualmente, existem apenas no Ministério da Saúde em sua completude”, defende o Conass.

Esses são alertas sobre o que precisaria ser feito para melhorar a RNDS, mas há quem faça uma crítica ainda mais profunda à iniciativa. “Ao meu juízo e ao de outros colegas que estão estudando isso, [a RNDS] fere princípios constitucionais e princípios do SUS, quando centraliza toda a informação. Ou seja: é totalmente avessa a uma discussão de democracia efetiva, de democracia direta, que era o direcionamento que vinha sendo dado na área de informações no Brasil. Ela rompe com isso porque os estados não têm acesso direto aos próprios dados, a não ser que contratem estruturas paralelas, e precisam de autorização do Ministério da Saúde para ver os dados”, analisa Marcelo Fornazin, que também é pesquisador na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), lembrando que muitos municípios não tinham em suas bases uma cópia local dos dados enviados ao Ministério da Saúde. “Como o SUS é federativo, podíamos ter mais bases distribuídas ao invés de concentrar tudo na União. A questão é que fica uma concentração. Se tiver uma falha, um vazamento, há um conjunto maior de dados acessível, diferente de quando você tem dados distribuídos que são blocos na rede”, acrescenta.

Ele argumenta que a criação da RNDS foi pouco discutida e que, em parte em função disso, no ano seguinte, como forma de legitimar as mudanças que estavam sendo operadas, o governo fez alterações na Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS). Embora tenha sido aberta uma consulta pública, o prazo para contribuições foi de 15 dias, o que ele considera insuficiente. Entre as críticas que foram feitas à Política, estão o pouco detalhamento sobre a proteção aos dados pessoais e pouca preocupação em utilizar tecnologias abertas, algo sempre defendido no SUS.

Outra crítica é sobre a pouca clareza quanto à forma de proteção dos dados do SUS em relação ao setor privado pela RNDS, tema sobre o qual a PNIIS é pouco explícita. Na página destinada à Rede, o governo informa que a RNDS “tem o objetivo de promover a troca de informações entre os pontos da Rede de Atenção à Saúde, permitindo a transição e continuidade do cuidado nos setores públicos e privados” e que “está se constituindo como uma plataforma informacional de alta disponibilidade, segura e flexível, de forma a favorecer o uso ético dos dados de saúde”. A preocupação não é sem motivo. “Já vimos, por exemplo, a monetização de vale transporte e bilhete único, que são os dados de deslocamento que prefeituras e estados entendem como uma oportunidade de receita extra. Na Coreia do Sul, o governo tem liberado dados pessoais para empresas de base tecnológica desenvolverem negócios”, exemplifica Fornazin. Ele ressalta que não se trata de impedir a geração de informações, mas a produção de bancos de dados centralizados com detalhamento da vida pessoal preocupa, especialmente diante das poucas explicações. “Para você gerir esses dados é preciso definir quem vai acessar, como vai acessar. Alguns tipos de dados que não podem ser distribuídos livremente não podem ser abertos. Outros dados mais agregados podem ser [abertos], como já fazem desde os anos 1990, e as informações de saúde nacionais já são publicadas, distribuídas regularmente. Pensamos muito na gestão desse bem público, protegendo a privacidade e assegurando a transparência das informações”, diz. O professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz José Mauro Pinto reforça a diferença entre a necessidade de coleta das informações e a regulação de seu uso e acesso.  “A legislação já prevê o sigilo das informações de saúde, mas o cidadão pode ter acesso, assim como o governo e os profissionais de saúde. Agora, outra coisa é abrir para o setor privado e empresas que não prestam serviço a você e eles terem acesso ao detalhamento de exames, operações, laudos médicos, diagnóstico de doenças”, finaliza.