O Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial da União no dia 15 de outubro as resoluções que criam a estrutura para o funcionamento da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária (Adaps). A agência, prevista na medida provisória que criou o programa Médicos pelo Brasil, aprovada no final de 2019 para substituir o Mais Médicos, e posteriormente instituída pelo decreto 10.283, de março de 2020, deve ficar responsável pela operacionalização do Médicos pelo Brasil, além de atuar em outras frentes, como a organização da prestação de serviços da Atenção Primária no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a incorporação de tecnologias assistenciais e de gestão e também promover a programas de qualificação profissional na Atenção Primária.
Ao todo foram publicadas cinco resoluções, que dispõem sobre o estatuto, o regimento interno, estrutura de cargos, regulamento para licitações e contrato de gestão com o Ministério da Saúde. A Adaps vai contar com um orçamento de R$ 1,2 bilhão para 2021 e 2022, e o Ministério estima que sejam contratados até 5 mil médicos para o provimento de vagas no programa Médicos pelo Brasil.
É uma privatização de duas formas efetivamente: a gestão da APS em nível federal vai se fazer por essa entidade, essa pessoa jurídica de direito privado, e a prestação de serviços na APS também, o cuidado individual e os cuidados coletivos também podendo ser terceirizados por esta entidade por meio da compra e venda de serviços de saúde. É algo gravíssimo - Bernadete Perez
Indução à privatização da atenção primária?
Desde seu anúncio, ainda na gestão de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, a Adaps vem sendo foco de críticas por parte de representantes do movimento sanitário. A Agência deve se estruturar como um Serviço Social Autônomo (SSA), de natureza jurídica privada. A modalidade é geralmente associada ao chamado ‘Sistema S’, conjunto de entidades privadas paraestatais vinculadas a confederações patronais que recebem recursos públicos para prestação de serviços sociais e de formação profissional. Caso, por exemplo, do Senai, ou Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, e do Sesc, o Serviço Social do Comércio. No caso da saúde, essa modalidade é mais rara, mas existe, por exemplo, no caso da Rede Hospitalar Sarah Kubitschek.
Além disso, a agência tem entre suas competências a possibilidade de firmar contratos e convênios com entidades privadas, inclusive instituições de ensino, para o cumprimento de seus objetivos. O artigo 4º da resolução que estabelece o estatuto da Adaps diz inclusive que a agência pode promover a venda de produtos e serviços, “desde que intrinsecamente ligados às suas competências institucionais, sendo os resultados econômicos dessas operações revertidos em ações que atendam à sua finalidade estatutária”.
“É uma entidade jurídica de direito privado com a finalidade de promover a execução da política de Atenção Primária à Saúde. Quer dizer, extrapola e muito o que eles diziam que era o objetivo inicialmente, que era a distribuição de médicos”, alerta Bernadete Perez, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). ”, completa.
Ela chama atenção ainda para a composição do Conselho Deliberativo da entidade, que embora conte com um representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS), é formado principalmente pelo governo e por entidades médicas que, segundo ela, tem atuado politicamente na defesa de “interesses privatistas e mercadológicos”, como a Associação Médica Brasileira (AMB), a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) e o Conselho Federal de Medicina (CFM). Além de um representante de cada uma delas, o Conselho Deliberativo da Adaps é formado por seis representantes do Ministério da Saúde, um do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), um do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e um do CNS.
Coordenadora do Programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ana Carolina Navarrete, afirma que a publicação das resoluções vêm em um momento de avanço da agenda do setor privado da saúde no segundo semestre de 2021, como por exemplo com o reinício dos trabalhos da comissão especial da Câmara dos Deputados que discute alterações na lei 9.656/98, o Marco Legal dos Planos de Saúde. Está tudo vindo com muita força nesse segundo semestre de 2021. E a minha leitura é de que essas coisas estão interligadas, no sentido dos interesses que elas representam, interesses de estreitamento das relações público-privado na saúde”, pondera Ana Carolina.
O Ministério da Saúde não respondeu à solicitação de entrevista encaminhada pela reportagem do Portal EPSJV/Fiocruz.