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Ministério da Saúde publica resoluções que estruturam Adaps

Criação da agência de natureza privada para gerir programa Médicos pelo Brasil, que tem como uma de suas atribuições firmar contratos com entidades privadas para prestação de serviços de saúde na Atenção Primária, abre caminho para a ampliação da privatização no SUS, alertam críticos
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 22/10/2021 12h49 - Atualizado em 01/07/2022 09h41

O Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial da União no dia 15 de outubro as resoluções que criam a estrutura para o funcionamento da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária (Adaps). A agência, prevista na medida provisória que criou o programa Médicos pelo Brasil, aprovada no final de 2019 para substituir o Mais Médicos, e posteriormente instituída pelo decreto 10.283, de março de 2020, deve ficar responsável pela operacionalização do Médicos pelo Brasil, além de atuar em outras frentes, como a organização da prestação de serviços da Atenção Primária no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a incorporação de tecnologias assistenciais e de gestão e também promover a programas de qualificação profissional na Atenção Primária.

Ao todo foram publicadas cinco resoluções, que dispõem sobre o estatuto, o regimento interno, estrutura de cargos, regulamento para licitações e contrato de gestão com o Ministério da Saúde. A Adaps vai contar com um orçamento de R$ 1,2 bilhão para 2021 e 2022, e o Ministério estima que sejam contratados até 5 mil médicos para o provimento de vagas no programa Médicos pelo Brasil.

É uma privatização de duas formas efetivamente: a gestão da APS em nível federal vai se fazer por essa entidade, essa pessoa jurídica de direito privado, e a prestação de serviços na APS também, o cuidado individual e os cuidados coletivos também podendo ser terceirizados por esta entidade por meio da compra e venda de serviços de saúde. É algo gravíssimo - Bernadete Perez


Indução à privatização da atenção primária?

Desde seu anúncio, ainda na gestão de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, a Adaps vem sendo foco de críticas por parte de representantes do movimento sanitário. A Agência deve se estruturar como um Serviço Social Autônomo (SSA), de natureza jurídica privada. A modalidade é geralmente associada ao chamado ‘Sistema S’, conjunto de entidades privadas paraestatais vinculadas a confederações patronais que recebem recursos públicos para prestação de serviços sociais e de formação profissional. Caso, por exemplo, do Senai, ou Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, e do Sesc, o Serviço Social do Comércio. No caso da saúde, essa modalidade é mais rara, mas existe, por exemplo, no caso da Rede Hospitalar Sarah Kubitschek.

Além disso, a agência tem entre suas competências a possibilidade de firmar contratos e convênios com entidades privadas, inclusive instituições de ensino, para o cumprimento de seus objetivos. O artigo 4º da resolução que estabelece o estatuto da Adaps diz inclusive que a agência pode promover a venda de produtos e serviços, “desde que intrinsecamente ligados às suas competências institucionais, sendo os resultados econômicos dessas operações revertidos em ações que atendam à sua finalidade estatutária”.

“É uma entidade jurídica de direito privado com a finalidade de promover a execução da política de Atenção Primária à Saúde. Quer dizer, extrapola e muito o que eles diziam que era o objetivo inicialmente, que era a distribuição de médicos”, alerta Bernadete Perez, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). ”, completa.

Ela chama atenção ainda para a composição do Conselho Deliberativo da entidade, que embora conte com um representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS), é formado principalmente pelo governo e por entidades médicas que, segundo ela, tem atuado politicamente na defesa de “interesses privatistas e mercadológicos”, como a Associação Médica Brasileira (AMB), a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) e o Conselho Federal de Medicina (CFM). Além de um representante de cada uma delas, o Conselho Deliberativo da Adaps é formado por seis representantes do Ministério da Saúde, um do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), um do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e um do CNS.

Coordenadora do Programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ana Carolina Navarrete, afirma que a publicação das resoluções vêm em um momento de avanço da agenda do setor privado da saúde no segundo semestre de 2021, como por exemplo com o reinício dos trabalhos da comissão especial da Câmara dos Deputados que discute alterações na lei 9.656/98, o Marco Legal dos Planos de Saúde. Está tudo vindo com muita força nesse segundo semestre de 2021. E a minha leitura é de que essas coisas estão interligadas, no sentido dos interesses que elas representam, interesses de estreitamento das relações público-privado na saúde”, pondera Ana Carolina.

O Ministério da Saúde não respondeu à solicitação de entrevista encaminhada pela reportagem do Portal EPSJV/Fiocruz.

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O ano de 2019 foi movimentado em muitas frentes, e com o SUS não foi diferente. Ao longo dos meses, vimos o desenrolar da crise de provimento provocada pelo fim da parceria entre Brasil e Cuba no Mais Médicos, o surgimento da resposta do governo federal – o programa Médicos pelo Brasil – que, apresentado via medida provisória, foi aprovado no último momento pelo Congresso Nacional criando a controversa Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps) nos moldes de um serviço social autônomo. Assistimos também à aprovação de um novo modelo de financiamento federal para a atenção básica, que está sendo contestado pelo Conselho Nacional de Saúde e substitui o repasse por habitante por uma fórmula que leva em conta apenas o usuário cadastrado na equipe de saúde. E, ainda, à demonstração de força dos parlamentares ao estabelecerem que as emendas apresentadas por bancadas também terão execução obrigatória por parte do governo federal. Tudo isso, num cenário em que os recursos da União destinados ao SUS mínguam, ano a ano. Em 2020, todas essas novidades entram em cena. E há mais mudanças aguardando na ‘coxia’, como a proposta da equipe econômica de unificar os gastos com saúde e educação nos três níveis de governo apresentada na PEC do Pacto Federativo. No pano de fundo, persistem problemas antigos, como o baque provocado na arrecadação pelos subsídios fiscais destinados ao setor saúde. Quem analisa tudo isso para a Poli é o pesquisador Carlos Ocké, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que estuda há anos a saúde suplementar e o financiamento e acompanhou de perto muitos desses debates. Ele alerta: “A tendência é de arrocho.”