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Em defesa da agroecologia, da agricultura familiar camponesa e da soberania alimentar

Debate sobre contradições entre cadeia industrial e camponesa abriu oseminário internacional na Cúpula dos Povos.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 20/06/2012 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A crise alimentar mundial e os desafios que ela acarreta à soberania alimentar foram debatidos na primeira mesa do seminário Internacional 'Tempo de agir por mudanças radicais - Agricultura familiar camponesa e agroecologia como alternativa à crise do sistema agroalimentar industrial'. Participaram da discussão Aksel Naerstad, da Coalizão More and Better, Pat Mooney, do ETC Group, e Maria Emília Pacheco, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que também é integrante da FASE. Realizado nos dias 15 e 16, o evento é parte da agenda da Cúpula dos Povos e terá como resultado uma carta sobre agricultura familiar, agroecologia e soberania alimentar.

O norueguês Aksel Naerstad abriu sua fala com uma provocação: "Que crise é essa? Há muita comida no mundo. A quantidade daria para alimentar o dobro da população mundial. Juntos, temos 4,6 mil quilogramas de calorias por pessoa ao dia. A comida produzida só nos Estados Unidos daria para alimentar um bilhão  e pessoas. E, no entanto, 130 seres humanos morrem todos os dias de desnutrição".

Naerstad observou que a impressão geral, formada por veículos de imprensa como a revista norte-americana The Economist, é que a agricultura industrial é a grande responsável por alimentar a população mundial. Segundo ele, não é no modelo de agronegócio em curso no Brasil - que está sendo exportado para países da África - que reside o futuro da produção de alimentos no mundo. Ele exemplificou, dizendo que graças à sinergia entre governos e empresários do agronegócio, para um camponês da Noruega hoje é mais vantajoso importar soja produzida no Brasil do que cultivar capim para alimentar seus animais de graça. "Essa é a verdadeira crise: a concentração do poder na mão de poucas empresas transnacionais. A agricultura industrial contribui para a erradicação de espécies, reduz a fertilidade do solo, prejudica a qualidade da água e contribui para a mudança climática, pois o uso de fertilizantes químicos no manejo do solo é responsável por 50% das emissões de gases que provocam o aquecimento global".

No sentido de reunir informações que desconstruam o mito do agronegócio, Naerstad apresentou o livro "Transição agrícola - por uma outra lógica", publicado pela Coalizão More and Better. "Tentamos examinar alguns enganos, o mais comum é que os camponeses estão sumindo. Isso não é verdade, o número de produtores de pequena escala está aumentando dramaticamente. Hoje, 90% dos agricultores são os de pequena escala. Além disso, a indústria da alimentação, da produção ao processamento, causa nos consumidores doenças cardíacas, obesidade, câncer", lembrou. 

Comparação objetiva

Pat Mooney trouxe dados concretos para comparar a agricultura industrial e a agroecologia. Para ele, objetividade é instrumento de luta: "O ponto é que a agroecologia é a única solução para que sobrevivamos à mudança no clima. Essa não é uma defesa emocional ou romântica e, sim, baseada em fatos. O primeiro: enquanto a indústria trabalha com, no máximo, 1,1 mil espécies de plantas, os camponeses, por meio da agricultura familiar, trabalham com 17 mil espécies". O canadense continuou: "Dessas espécies da indústria, 59% são de flores ornamentais, que obviamente não estão alimentando ninguém. Não sou contra a beleza, mas ela não alimenta o mundo", ironizou.

Em relação à criação de animais para consumo humano, a equação não se modifica. Segundo o canadense, enquanto a indústria cria cinco espécies, centrando sua produção em gado bovino, frangos, porcos, a agricultura familiar trabalha com 40 diferentes espécies. No que se refere aos sistemas aquáticos, 1.5 bilhão de pessoas no mundo têm nos peixes sua principal fonte de proteínas. "A pesca industrial causa uma perda de 99% de espécies de tubarão. Os camponeses pescam aproximadamente 23 mil espécies de peixes e sabem preservá-las". 

Mooney informou que na cadeia industrial, são necessárias quatro calorias para a produção de uma caloria de alimento. Isso porque a indústria funciona com base nos combustíveis fósseis. "Na cadeia campesina, a conta é equilibrada: para cada caloria que entra, uma caloria de alimento sai". 

Captura privada 

"A crise alimentar é o elo mais dramático das crises geradas pelo sistema capitalista hoje, de tal ordem que o próprio valor da vida está em crise. É uma crise que sinaliza o impacto do modelo agrícola dominante com os agroquímicos, com a concentração das empresas", sinalizou Maria Emília Pacheco na abertura de sua exposição. Segundo ela, ao mesmo tempo que aumenta a especulação financeira com as commodities agrícolas, "ao ponto de, em Wall Street, o ganho maior ser com a indústria alimentar, que passa a ser caracterizada como a 'mãe dos mercados'", uma a cada sete pessoas no mundo passa fome.

Outro aspecto que chama atenção da presidente do Consea é o avanço do controle de um número reduzido de grandes corporações transnacionais em todo o segmento do processo alimentar. "Nós sabemos que é cada vez mais frágil o sentido do bem público. Várias organizações têm alertado para isso e sugerido ao Conselho de Segurança Alimentar das Nações Unidas que assuma politicamente o debate do público e do privado. Também a FAO tem sido privatizada. A prevalência dos interesses das empresas sobre os rumos da política de Segurança Alimentar são nítidos.

Maria Emília explicou que a biofortificação (incorporação de micronutrientes em alimentos que, no Brasil, está sendo aplicada em produtos tradicionais, como o arroz, feijão e mandioca) tem sido defendida como resposta  à chamada fome oculta, situação de falta de alguns nutrientes no corpo humano. "Em nome dessa  necessidade de suprir os nutrientes que faltam, crescem propostas que mesmo que não incluam diretamente a manipulação genética entre diferentes espécies, subordinam o direito à alimentação aos interesses do mercado. O projeto é apoiado por grandes empresas, como a Pepsi, as mesmas empresas que vão inovando nas formas de obter mais lucros e submeter o alimento a um sentido medicalizado".

Para ela, o conceito de soberania alimentar, resultado de lutas e resistência, é a alternativa às falsas soluções que governos e empresas apresentam. No entanto, no Brasil, Maria Emília acha que é preciso avançar na incorporação desse conceito. "Embora tenhamos uma definição ampla de segurança alimentar e nutricional, estamos longe de ter a soberania alimentar porque as determinações são no sentido de reforçar o modelo atual de agricultura que é excludente, baseado em um crescente cercamento dos bens comuns".

Organização

O evento foi organizado pela FASE, Via Campesina, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Confederação Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (Contag), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas  Conaq),
Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas, Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf), Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), Rede Cerrado, AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia  e pela ONG Terra de Direitos.