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Regulamentação da lei do SUS

Decreto publicado em junho propõe novo instrumento de pactuação entre os gestores para reforçar regiões de saúde e iniciativas de mapeamento da capacidade do SUS
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 22/09/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Maria está grávida, fazendo o pré-natal onde mora, em uma cidade de apenas 5 mil habitantes. O bebê dela corre o risco de nascer prematuro, e se isso acontecer, ele pode precisar de uma UTI neonatal para receber cuidados intensivos, recurso que não existe em sua cidade, mas existe no município vizinho. João, morador da mesma localidade, tem hipertensão. Ele acompanha cotidianamente a sua pressão no posto de saúde perto de sua casa, mas de vez em quando necessita fazer uma visita ao cardiologista e, caso tenha alguma complicação, pode precisar ser internado, como já aconteceu algumas vezes, no município vizinho. Maria e João são personagens inventados para esta reportagem, mas as histórias são parecidas a de milhares de brasileiros. É mais ou menos assim que a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Adelyne Pereira explica para seus alunos a importância de que os municípios trabalhem conjuntamente, para garantir o direito à saúde. No ultimo dia 28 de junho, o governo federal lançou o decreto 7.508, que regulamenta a lei 8080/90. De acordo com o documento, um dos objetivos do decreto é justamente regular a estrutura organizativa do SUS, o planejamento de saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa - entre os municípios, estados e União. A regionalização, um dos princípios do SUS, passa a ter, assim, alguns novos parâmetros com o decreto.

"Para conseguirmos ser integral para o ‘Seu' João, para Dona Maria poder ter acesso desde a atenção primária até a alta complexidade, é necessário constituir uma região que agrupe um conjunto de municípios e possa garantir todos os serviços que João e Maria precisam em vários momentos da vida, de acordo com as necessidades deles e não com a estrutura de serviços do município onde vivem. Não é porque eles são de um município de 5 mil habitantes, que eles só terão atenção primária. Eles têm direito a saúde integral assim como todos os cidadãos brasileiros. Não podemos ter um direito à saúde para um cidadão de um município de 5 mil habitantes, e outro para um cidadão de um município de 5 milhões de habitantes", explica Adelyne, sobre a necessidade da regionalização. Para ela, o decreto consolida um processo de articulação entre os gestores que já está em desenvolvimento no SUS há alguns anos. Ela ressalta que, entretanto, apenas o decreto não basta para que a regionalização de fato aconteça. "Este processo já em curso precisa ser fortalecido para que o SUS se efetive como política de saúde. A regionalização vem acontecendo, mesmo com todas as dificuldades, porque na verdade só a vontade política do Ministério da Saúde de fazer o SUS acontecer não é suficiente. Quando fazemos uma análise da implementação do SUS em períodos mais longos, percebemos o quanto o contexto econômico e político o influenciou. Então, temos outros fatores e variáveis que fazem com que as coisas caminhem ou não", pondera.

Entre as novidades trazidas pelo decreto está a proposta do Contrato Organizativo da Ação Pública, que deve ser assinado pelos municípios, estado e pela União e no qual deve constar como será organizado o atendimento nas chamadas regiões de saúde. O documento deve definir as responsabilidades, indicadores e metas de saúde, critérios de avaliação de desempenho, recursos financeiros que serão disponibilizados, forma de controle e fiscalização da execução, além de outros elementos que os gestores considerarem necessários para efetivação do direito à saúde. Para Adelyne, apesar de já ter havido outras iniciativas de tentar comprometer os gestores regionalmente, como o Termo de Compromisso de Gestão, no âmbito do Pacto pela Saúde, o Contrato é inovador por incorporar a União nesse processo. "O Contrato propõe não só que os municípios e estados assinem, mas também que a União assine. Realmente, é a primeira vez que aparece na história de implementação do SUS.  E é a primeira vez também que de fato os contratos devem ser assinados regionalmente, porque muitos municípios acabaram assinando o Termo de Compromisso de Gestão individualmente, cada município assinava o seu e dizia o que era e o que não era capaz de oferecer para sua população, em quanto tempo seria capaz e apenas isso. Não havia um processo de planejamento para ver de fato o que a região conjuntamente seria capaz de fazer, com qual dinheiro se resolveriam os problemas. Agora, todos os contratos devem ser assinados pelo ministro da saúde, pelo secretário estadual e por todos os secretários municipais daquela região de saúde", explica.

Para Mauro Gomes, que também é professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, o decreto "assina em baixo" de práticas já recorrentes dentro do SUS.  Ele relata que já existiam consórcios municipais que em muitas localidades conseguiam reunir os gestores para discutir a assistência em saúde de uma forma integrada. "Isso foi um grande avanço no SUS. Porque antes era assim: quem tinha uma proximidade maior com o secretário de estado obtia uma determinada benesse. Essa proposta de sentarmos todos juntos e discutirmos as prioridades da região e o que os municípios podem oferecer num aspecto solidário foi algo muito oportuno, eficaz e que racionalizou muito o atendimento", descreve Mauro, que já foi secretário de saúde do município de Valença, no estado do Rio, onde, segundo ele, vivenciou essa experiência.

O professor acredita que o decreto poderia ter incluído também a regulamentação de outra lei, a 8.142/1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS. "Como a discussão da gestão da saúde tem interface com os conselhos de saúde, a atuação dos conselhos e das conferências ficaria potencializada se esse decreto também incluísse e reconhecesse o controle social, que, historicamente, desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde, vem sendo realizado no SUS", sugere.

Regiões de Saúde

O decreto define regiões de saúde como um "espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde".  Adelyne alerta sobre as grandes diferenças existentes entre as várias partes do país e a necessidade de se levar isso em conta na definição das regiões de saúde. Para a pesquisadora, limitar, por exemplo, que as regiões sejam formadas por municípios limítrofes não dá conta de toda a realidade encontrada nacionalmente. Adelyne foi uma das pesquisadoras responsáveis por um estudo nacional realizado no ano passado sobre os aspectos da regionalização da saúde no país, cujos resultados foram apresentados no livro Regionalização e Relações Federativas na Política de Saúde do Brasil, organizado pelas professoras Ana Luiza D'Avila Viana e Luciana Dias de Lima. "Na pesquisa que nós fizemos foi possível perceber que existem hoje regiões no Brasil que não são contíguas. Por exemplo, há um município que não tem uma contiguidade com outro determinado município, mas existe uma ponte que leva mais fácil as pessoas para lá. Ou então tem uma estrada melhor para um município não limítrofe do que para outro município que seja limítrofe. É só pensarmos no Amazonas, onde os municípios são separados às vezes por quilômetros de rios. Então, acredito que este aspecto deve ser flexibilizado", observa.

Mauro reforça a necessidade de apostar na regionalização para evitar, por exemplo, que os municípios tenham que enviar pacientes para as grandes metrópoles para terem acesso a determinados serviços. Ele destaca também a importância de que as regiões não sejam delimitadas artificialmente e que os limites não sigam necessariamente os territórios estaduais. "Se a região permitir esse consorciamento entre os municípios, atravessando barreiras de estado, será um grande avanço. Porque assim as ações que eram apenas solidárias entre municípios de estados diferentes passarão a ter uma forma de ressarcimento financeiro. Porque até então os gestores veem a aflição do outro gestor que não pode garantir determinado serviço a sua população e o oferece por solidariedade", comenta. O professor lembra que as Normas Operacionais Básicas (Nobs) editadas anteriormente pelo Ministério da Saúde, e que também normatizavam a regionalização, não limitavam a atuação das regiões às barreiras estaduais.

Para Mauro, outro avanço trazido pelo decreto é a definição do que é considerado como porta de entrada do SUS, ou seja, os serviços pelos quais os usuários podem dar entrada para atendimentos dentro do Sistema de Saúde. Pelo documento, não apenas a atenção primária é considerada como porta de entrada, mas também a atenção em urgência e emergência, a atenção psicossocial e os serviços sociais de acesso aberto. "Vincular a porta de entrada apenas pela atenção primária, isto é, aos postos de saúde e os ambulatórios de especialidade, que devem referenciar para os hospitais e urgências e emergências, seria uma medida racional caso a atenção básica estivesse totalmente difundida e organizada e com capacidade para fazer esse atendimento em larga escala e estabelecer mecanismos de referência e contra-referência. Mas não é isso que acontece. E as pessoas, como não encontravam esse atendimento constante, iam direto para a emergência. Se isso fosse barrado, estaríamos criando barreiras ao acesso universal que é preconizado pelo SUS. Então, essas portas de entrada referendando níveis de assistência diversos é muito mais condizente com a nossa realidade, embora isso não possa significar que não devemos investir na atenção básica", opina.

Mapa da Saúde

O decreto define ainda que as regiões de saúde devem elaborar um ‘mapa da saúde' para identificar as necessidades da região e orientar o planejamento integrado dos entes federativos em relação aos serviços de saúde. Além disso, cria a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases), uma espécie de lista de todas as ações e serviços que o SUS oferece aos usuários, e a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), na qual devem estar os medicamentos indicados para atendimentos de doenças e agravos no âmbito do SUS. O documento diz ainda que a Rename será acompanhada de um Formulário Terapêutico Nacional (FTN), que deve subsidiar as prescrições, dispensações e usos dos medicamentos. "A Renases será divulgada na internet e isso é muito bom. A partir do momento em que se coloca uma lista na internet, que a população pode consultar os serviços, como já é feito em alguns países fora daqui, isso desperta e chama os usuários a se mobilizarem", observa Adelyne. Entretanto, a professora pondera que apenas divulgar a lista não é o bastante. "Sabemos que temos uma diferença muito grande na capacidade de prestação de serviços nesse país, entre os estados e entre os municípios existem muitas desigualdades. A região só poderá se consolidar se ela oferecer toda a lista de serviços de saúde, toda a relação nacional?  E aquilo que ela não oferece, quem irá oferecer? Isso é uma questão que me preocupa, começarmos a construir padrões de equidade diferentes de acordo com a diferença histórica que existe da oferta de serviços no país. Por isso que se os instrumentos propostos pelo decreto não forem acompanhados de um processo de investimento, não conseguiremos alterar muito a organização do SUS hoje", alerta.