No dia 26 de fevereiro de 2025, completam-se cinco anos do primeiro caso de covid-19 confirmado no Brasil. Chegava oficialmente ao país, naquele momento, a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) que, quase um mês antes, havia sido decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O que veio depois todo mundo ainda lembra: o esforço de se desvendar um vírus altamente transmissível, uma corrida contra o tempo para descobrir, produzir e distribuir vacinas que evitassem mortes, uma reengenharia do Sistema Único de Saúde (SUS) para responder ao maior desafio da sua história, a necessidade (e a dificuldade) de isolamento social, crise econômica, negacionismo científico, desinformação e mortes, muitas mortes.
Para além do cenário que se repetia em boa parte do mundo, a experiência brasileira na pandemia teve suas peculiaridades. Destacável como ponto positivo foi a existência de um sistema público e universal de saúde, que, apesar das dificuldades e do subfinanciamento, foi fundamental para o enfrentamento da pandemia (ver edição 70 da Poli). Não é de se ignorar também que a história de mobilização social que está na origem da criação do SUS tenha se feito de alguma forma presente no contexto da pandemia com o surgimento de associações que, em alguns casos inspiradas nos movimentos de pacientes de HIV/Aids e hanseníase da década de 1980, passaram a lutar pelos direitos das vítimas da covid-19. Mas a conjuntura que o país vivia cinco anos atrás também deixou marcas: divergências de conduta da gestão federal em relação às esferas estaduais, posturas negacionistas que contradiziam as orientações científicas por parte do poder Executivo e uma instabilidade política que levou quatro nomes diferentes ao comando do Ministério da Saúde no intervalo de um ano são apenas alguns dos ‘contratempos’ extras que o Brasil teve que enfrentar junto com o novo coronavírus – e que resultaram, inclusive, numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apontou crimes de responsabilidade do então presidente da República, Jair Bolsonaro, na condução da pandemia. Ao longo desses cinco anos, o país teve 39 milhões de casos de covid-19 confirmados e mais de 714 mil óbitos decorrentes da covid-19, de acordo com o painel do Ministério da Saúde que reúne dados das secretarias estaduais.
Esses e outros temas estão reunidos nas perguntas e respostas abaixo, que a Poli preparou para reavivar a memória desses cinco anos da maior crise sanitária que a humanidade – e a sociedade brasileira – viveu em muito tempo.
UMA NOVA DOENÇA: DE ONDE VEIO?
Passados cinco anos, o que se sabe sobre a origem do novo coronavírus?
“Infelizmente, o cenário que se tem hoje, em termos do que é mais aceitável [sobre a origem do SARS-Cov2], não mudou muito daquilo que a gente teve no começo”. A resposta é do pesquisador Fernando Motta, chefe substituto do Laboratório de Vírus Respiratório, Exantemáticos, Enterovírus e Emergências Virais do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), da Fiocruz, que completa: “A gente não tem uma hipótese melhor ou pior sobre o que aconteceu, hoje o que a gente tem são mais hipóteses”. E mesmo as teorias que surgiram logo após a explosão da covid-19 têm várias camadas – praticamente todas ainda indefinidas. Primeiro é preciso saber de onde veio o vírus, e a hipótese de que a origem seria o morcego permanece como a mais forte ao longo desses cinco anos. Isso porque, como explica Motta, os morcegos são “reservatórios” comuns de vários outros coronavírus que surgiram antes do SARS-Cov2. O problema é que nenhuma pesquisa conseguiu identificar em morcegos – e nem em outros animais estudados – um coronavírus com as mesmas características daquele que provocou a covid-19. E é aí que mora o maior mistério sobre a origem da recente pandemia – e que, segundo o pesquisador do IOC/Fiocruz, provavelmente nunca vai ser desvendado: quem ou o que serviu de reservatório intermediário de um vírus que se modificou durante o ‘salto’ entre o animal que o carregava e os humanos. “Alguma coisa no meio do caminho precisaria fazer a ponte entre esses dois vírus diferenciados”, explica Motta. A teoria de que a contaminação teria se dado por meio da carne de animais vendidos no mercado de Wuhan, na China, também não dá conta de apontar o reservatório intermediário e não teve qualquer comprovação ao longo desses cinco anos mas, diante do mar de indefinição sobre o tema, de acordo com o pesquisador, também não pode ser descartada.
Foram essas dificuldades de completar a explicação de origem animal que, segundo Motta, fortaleceram uma outra hipótese, que também surgiu no começo da pandemia, alimentou uma série de teorias da conspiração e, vez ou outra, ressurge com a promessa de novas evidências: a de que o novo coronavírus teria escapado de um laboratório. Mais precisamente, de um laboratório chinês. “No momento a gente não tem evidência suficiente para seguir esse caminho, então, normalmente não se cogita muito [essa hipótese]”, diz.
Passados cinco anos, a resposta objetiva sobre a origem do SARS-Cov2 é que não há resposta. E a quantidade de mutações que o novo coronavírus sofreu ao longo desse tempo torna impossível a identificação do patógeno original que causou os primeiros casos de covid-19. “O que a gente tem de concreto é o vírus evoluindo e a sua história contada a partir do momento que se detecta que ele está circulando entre nós”, resume Motta. A julgar pela avaliação do pesquisador, no entanto, a boa notícia é que isso não tem tanta importância assim. “A gente dificilmente vai conseguir fechar essa questão. E, na verdade, a gente pode usar todo esse conhecimento que foi alcançado para pensar daqui para a frente, para pensar o que é necessário fazer para que situações como essa não se repitam”, diz.
VACINAS QUE SALVARAM VIDAS
Como anda a vacinação contra a covid-19 no Brasil?
Em toda a parte do globo que teve acesso aos imunizantes, o fator determinante para a queda no número de mortes por covid-19 foi a vacinação. No Brasil, a primeira dose de vacina foi aplicada em janeiro de 2021, quase um ano depois da chegada do novo coronavírus, inaugurando um processo que, no começo, andou a passos lentos. Cinco anos depois, a covid-19 não é mais considerada uma emergência sanitária mundial, e o número de internações e óbitos caiu significativamente em todo o mundo, mas a importância da imunização permanece. De acordo com dados do Ministério da Saúde, ao longo desses cinco anos, mais de 201 milhões de brasileiros tomaram alguma dose da vacina contra a covid-19. A maior cobertura vacinal se deu durante o segundo semestre de 2021, quando ainda se vivia o auge da pandemia. Mais de 86% da população tomou duas doses do imunizante aplicado naquela época – que era monovalente, ou seja, protegia apenas de uma variante do Sars-Cov2. Segundo Ethel Maciel, secretária de vigilância em saúde e ambiente do Ministério da Saúde, os números mostram que, no geral, a população está protegida. “Em 2020, tivemos 194 mil mortes. Dois mil e vinte e um foi o ano em que mais pessoas morreram: foram mais de 424 mil. Aí começa a vacinação, ainda um pouco devagar, pois as vacinas estavam chegando. No ano seguinte, já reduzimos para 74 mil. No outro ano, mais de 14,7 mil mortes. E em 2024, temos um pouco mais de 5 mil”, resume. Destacando o combate à desinformação como um desafio ainda não superado, ela, no entanto, faz questão de alertar que, apesar da clara redução na comparação com o auge da pandemia, muita gente ainda morre por Covid.
A diretora do Instituto de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), Valdiléa dos Santos, reforça ainda a importância da vacinação para evitar o desenvolvimento da condição pós-covid-19 (ler abaixo). “As pessoas perderam o interesse por se vacinar, mesmo aquelas que na pandemia foram muito zelosas. Tem sido mais difícil convencer essas pessoas a procurarem a vacinação, mas esse é um dos benefícios: existe uma associação da vacina com uma proteção em relação às manifestações de Covid longa”, afirma.
A pandemia acabou. Ainda é preciso se vacinar contra a covid-19?
Maciel afirma que quem não faz parte de nenhum grupo prioritário está protegido de manifestações graves da doença com duas doses de vacina. Ela ressalta, no entanto, que principalmente para os idosos e imunossuprimidos, a recomendação atual é de reforçar a vacina a cada seis meses. Outros grupos que são considerados prioritários, mas não têm comorbidades, como os profissionais de saúde, devem se vacinar uma vez por ano. No mais, o imunizante agora faz parte do calendário regular de vacinação das crianças, que devem tomar duas ou três doses, dependendo da marca aplicada.
As vacinas têm conseguido acompanhar as mutações genéticas do novo coronavírus?
Por enquanto, sim. Primeiro, vale lembrar que essa capacidade de adaptação dos imunizantes para proteção contra um vírus que se transforma tanto e tão rapidamente depende de um grande investimento em pesquisa. Como explica Fernando Motta, são principalmente os estudos de vigilância genômica do Sars-Cov2 que permitem mapear as mutações e identificar aquelas que devem implicar alterações nos protocolos de saúde pública ou nas vacinas disponíveis. “Nunca se fez tanta vigilância genômica como se faz agora no caso do coronavírus. Só no Brasil, a gente tem um quarto de milhão de genomas completos de coronavírus depositados, disponíveis ao público”, ilustra o pesquisador.
Mas esse cenário provocou mudanças também na gestão. Para se ter uma ideia, toda essa experiência e conhecimento acumulados da pandemia levou a mudanças até no formato de compra das vacinas. Segundo Ethel Maciel, o pregão feito pelo Ministério da Saúde em 2024 para os imunizantes contra a covid-19 estabelece que, em vez de receber todas as doses de uma só vez, o governo solicita aos poucos, de acordo com a necessidade, sempre garantindo que seja entregue a versão “com a cepa mais atualizada”. “Nós estamos aprendendo com a velocidade com que o vírus está se modificando e que também as vacinas estão sendo remodeladas”, explica, ressaltando que isso é “uma coisa muito nova” para o Programa Nacional de Imunização (PNI).
A DOENÇA QUE A COVID-19 GEROU
O que é a Covid longa?
Além das mortes e da crise econômica e social que causou, a experiência da mais recente pandemia deixou também um rastro de sintomas e sequelas incapacitantes numa parte da população atingida pelo novo coronavírus. De acordo com a OMS, a condição pós-covid-19 (nome oficial da Covid longa) é “a continuação ou desenvolvimento de novos sintomas três meses após a infecção inicial por SARS-CoV-2, com esses sintomas durando pelo menos dois meses sem outra explicação”. Esse esforço de definição tem funcionado como um guia, mas as pesquisas que vêm tentando compreender essa nova doença se deparam com uma variedade de situações que nem sempre se encaixam nessa delimitação formal. “Ainda tem muitas questões em relação a como caracterizar e definir a Covid longa. Justamente porque tem uma série muito grande de sintomas, de manifestações que a pessoa pode apresentar e que podem estar relacionadas a outras doenças. Você tem que fazer o diagnóstico diferencial, porque quase todas as manifestações podem existir em decorrência de doenças associadas e não necessariamente de Covid longa”, explica Valdiléa dos Santos, diretora do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI), da Fiocruz, onde funciona um centro de Covid longa. Ela relata que os resultados dos estudos têm apontado uma falta de padronização, tanto em relação ao tipo de sintomas quanto em relação à sua duração. Até o momento, segundo a pesquisadora, os estudos permitem sugerir que a Covid longa esteja mais associada a pacientes que tiveram infecções mais graves pelo novo coronavírus, embora existam também pessoas que tiveram manifestações leves da doença e relatem sintomas prolongados.
Quais os sintomas mais frequentes?
Entre esses sintomas prolongados mais comuns, estão a fadiga, falta de ar e comprometimento da memória e da capacidade de atenção. Com menor prevalência, os diferentes estudos identificaram uma grande variedade de outros sintomas, inclusive a perda – por algum tempo ou permanente – do paladar e do olfato. Entre os mais graves – ou mais incapacitantes no longo prazo –, está a fibrose pulmonar, além de outras formas de alteração da capacidade dos pulmões.
Que parcela da população desenvolveu Covid longa?
Também não há informações mais precisas sobre o contingente populacional acometido pela Covid longa. Em 2022, a OMS estimava que entre 10% e 20% das pessoas infectadas poderiam desenvolver a doença, mas a ampliação das pesquisas com recortes locais tem mostrado uma variação nesse número. Um estudo desenvolvido por várias instituições brasileiras reunidas na Rede de Pesquisa Solidária entre março e abril de 2022, por exemplo, identificou que 58,5% dos entrevistados que contraíram a doença “mantiveram sintomas por mais de três meses a partir do início do quadro agudo inicial da covid-19”. À frente de um grande estudo que acompanha cerca de 800 pacientes e envolve várias instituições de pesquisa, Valdiléa dos Santos acredita que daqui a mais ou menos um ano já será possível reunir informações que ajudem a entender melhor esse cenário, e que, ao longo do tempo, o cruzamento de dados de várias pesquisas permitirá um avanço ainda maior.
Por que é importante acompanhar os casos de Covid longa?
Valdiléa dos Santos destaca o reconhecimento dessa condição como fundamental para que se compreenda a necessidade de se investir nas estratégias de reabilitação – motora e cardiorrespiratória – dessas pessoas no cenário pós-pandemia. O centro de Covid longa do INI/Fiocruz tem oferecido esses serviços e identificado uma melhora substantiva na qualidade de vida dos usuários.
O SUS PÓS-PANDEMIA
Fundamental para o enfrentamento da pandemia de covid-19, o SUS foi fortalecido ao longo desses cinco anos?
A resposta objetiva é: muito menos do que se esperava. O orçamento destinado à Saúde ao longo dos últimos anos variou pouco após a pandemia. Entre 2017 e 2019, o orçamento federal da saúde ficou em cerca de R$ 170 bilhões anuais. Nos anos seguintes, esse montante variou pouco, mas houve um orçamento extra destinado para o controle da covid-19 que elevou as verbas para a saúde a R$ 240 bilhões em 2020 e cerca de R$ 211 bilhões em 2021. Em 2022, o montante retomou os valores médios dos últimos anos e, em 2023, por conta da elevação do orçamento proposta na Emenda Constitucional de transição elaborada pelo novo governo eleito, alcançou R$ 182 bilhões. Os dados são de uma nota técnica do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). “Houve esse incremento na pandemia, depois tivemos a PEC da Transição, mas depois voltamos para isso que chamamos de subfinanciamento”, lamenta o presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Hisham Hamida. Em 2024, o montante previsto foi de R$ 224 bilhões, no entanto, o Portal da Transparência informa que o valor executado até novembro foi de apenas R$ 168 bilhões. Para 2025, a previsão orçamentária para o Ministério da Saúde alcança R$ 241 bilhões.
Passados cinco anos, quais foram os legados da pandemia de covid-19 para o SUS?
A secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, Ethel Maciel, destaca o fortalecimento da vigilância epidemiológica para o Sistema como um legado que já teria, inclusive, gerado resultados práticos diante de um desafio sanitário mais recente: a identificação mais rápida da disseminação do vírus da febre Oropouche em regiões onde antes ele não circulava. E a principal estratégia que a secretária destaca, como aprendizado da pandemia de covid-19, é a descentralização dos centros de diagnóstico. “O que aconteceu com o Oropouche demonstrou que passamos pelo primeiro teste do fortalecimento dos laboratórios com investimento em equipamentos e insumos para identificar isso rapidamente”, completa.
Outro fato importante, que muitas vezes passa despercebido, é o quanto a pandemia colocou à prova o modelo de organização tripartite do SUS, em que municípios, estados e União operam de forma descentralizada e articulada. E há quem defenda que foi esse modelo previsto constitucionalmente que permitiu o enfrentamento da pandemia, contando, inclusive, com momentos de coordenação direta de estados e municípios. “O Conasems e o Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] assumiram a contabilização de infectados, mortalidade e da lotação das unidades de terapia intensiva a partir de sistemas oficiais”, exemplifica o presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, Hisham Hamida, que completa: “Fica clara a relevância de transformar dados em informação para a tomada de decisão de qualquer esfera de gestão”. Para a pesquisadora Sônia Fleury, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, essa necessidade de coordenação por parte de estados e municípios é um grande legado para o Sistema. “[Passada a pandemia], voltamos a um federalismo que tende à cooperação novamente, mas com um grau de autonomia maior dos entes subnacionais. O governo central vai ter que ouvir mais os governos subnacionais, porque eles se tornaram mais autonomizados”, avalia.
Se houver uma nova emergência sanitária da proporção da covid-19, o Brasil está preparado?
De acordo com Ethel Maciel, essa pergunta poderá ser melhor respondida a partir dos dados do relatório de um comitê de especialistas da OMS que durante o ano de 2024 avaliou a situação do Brasil. No momento em que esta edição da Poli foi finalizada, o relatório ainda estava sendo analisado pela equipe do Ministério da Saúde mas a responsável pela SVS/MS já apontava a necessidade de fortalecer a vigilância e a assistência na região amazônica como uma das prioridades identificáveis no documento. “Muitas vezes, uma pessoa nas comunidades mais difíceis de acessar pode levar 15 dias para chegar a um serviço para ter um diagnóstico”, explica, ressaltando que é em reposta a esse gargalo que o governo está investindo em laboratórios móveis”.
O fato é que, apesar dos avanços e do aprendizado que a pandemia de covid-19 gerou, parece unânime a percepção de que ainda há muito o que fazer. Ethel Maciel ressalta a necessidade de se fortalecer a estrutura de vigilância e diagnóstico. Por isso, segundo ela o Ministério da Saúde tem disponibilizado orçamento para a compra de equipamentos para os laboratórios públicos – está prevista, inclusive, a construção do primeiro laboratório com nível 4, o índice mais elevado de biossegurança, como parte das ações de saúde do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC). A importância de estruturas como essas está na possibilidade de manipular vírus e bactérias altamente transmissíveis sem contaminar o ambiente externo. “Nós não temos no Brasil nenhum laboratório desse tipo e podemos ter epidemias e pandemias que exijam esse nível de contenção”, diz Maciel.
Remetendo-se a dificuldades que ficaram muito evidentes durante a pandemia de covid-19, o presidente do Conasems aponta como principais desafios ainda a se enfrentar a produção de insumos (como medicamentos e equipamentos de proteção individual) e a formação de profissionais de saúde para o SUS, aspectos que ele ainda entende como gargalos do sistema.
A GESTÃO DA PANDEMIA SOB SUSPEITA: CPI DA COVID
O que foi a CPI da covid e o que ela investigou?
Iniciada em 27 de abril, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada no Senado por requerimento do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) foi responsável por investigar as ações e omissões do governo federal para o controle da pandemia de covid-19 e o repasse indevido de recursos a estados e municípios. Após quase seis meses de trabalho, os senadores apresentaram o relatório final em 21 de outubro de 2021, indiciando 66 pessoas e responsabilizando o então presidente Jair Bolsonaro por nove crimes. Entre eles, o emprego irregular de verba pública ao destinar recursos para a compra de remédios ineficazes, incitação ao crime – por incentivar as pessoas a não cumprirem medidas de distanciamento social e a invasão de hospitais de campanha –, além de falsificação do cartão de vacinação. “A CPI descortina todo o horror que nós estávamos vivendo. Não podemos medir causa e efeito, mas certamente tem um impacto em frear aqueles abusos”, afirma a pesquisadora Sônia Fleury, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
Quais os desdobramentos da CPI?
Apesar dos indiciamentos, as investigações feitas à época não avançaram. Logo após a conclusão do relatório, o documento foi apresentado pelos senadores à Procuradoria Geral da República (PGR), que é a representação do Ministério Público em âmbito federal e o órgão responsável por investigar o presidente e ministros em caso de irregularidades que causem danos à União e à sociedade. Ainda em 2022, o então Procurador Geral da República, Augusto Aras, arquivou o pedido de investigação por entender que não havia indícios suficientes sobre as responsabilidades do governo federal no período. Mais recentemente, em outubro de 2024, os Conselhos Nacionais da Saúde e Direitos Humanos entraram com uma nova ação judicial pedindo que a PGR dê continuidade aos trabalhos realizados pelos senadores e investigue se houve negligência e responsabilidade por parte do governo por milhares de mortes evitáveis.
A irregularidade apurada pela CPI da Covid que teve prosseguimento foi a falsificação do cartão de vacinação do então presidente Jair Bolsonaro. Até o momento em que esta matéria foi finalizada, a PGR estudava a possibilidade de realizar uma denúncia única contra o ex-presidente por falsificação do cartão de vacinação, recebimento de joias do governo da Arábia Saudita sem declaração de entrada no Brasil e tentativa de golpe de Estado.
Para Sônia Fleury, embora o avanço das investigações seja limitado, há resultados políticos relevantes. Ela entende que a grande audiência dada às dezenas de sessões da CPI, que chegaram a alcançar picos de quase um milhão de espectadores por dia, jogou luz no debate sobre políticas públicas na área de saúde. “A CPI fortaleceu enormemente a perspectiva das políticas públicas, políticas de vacinação, políticas do complexo econômico industrial e trouxe à tona nossa enorme dependência por não termos equipamentos de proteção contra o vírus e medicamentos. Sofremos com a falta de máscaras, respiradores e isso tudo ficou muito explícito com a CPI”, avalia. Outro ganho que a pesquisadora aponta foi a interrupção do contrato de compra da vacina Covaxin, alvo das investigações.
DIREITOS DAS VÍTIMAS
Como andam os movimentos e associações de proteção às vítimas da covid-19?
A pandemia de covid-19 levou à criação de duas grandes associações de vítimas, em abril de 2021: Vida e Justiça - Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da covid-19 e a Associação de Vítimas da Covid (Avico). A Vida e Justiça possui um vínculo maior com parlamentares e entidades acadêmicas ligadas à saúde, como a Frente pela Vida, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Em relação ao número de associados, a Vida e Justiça manteve o número de 900 integrantes desde sua fundação. Já a Avico, criada pela assistente social Paola Falceta após a morte de sua mãe por covid-19, alcançou um pico de dois mil inscritos logo após a sua criação. No entanto, não houve capacidade de associação de todos e atualmente os participantes com contribuições mensais somam 100 pessoas. Ambas as entidades promoveram denúncias contra as ações e omissões do governo federal durante a pandemia e buscam, ainda hoje, indenização e políticas públicas para as vítimas da covid-19. No centro da atenção está a responsabilização dos gestores públicos na condução do enfrentamento à pandemia, o tratamento para a covid longa e o apoio aos órfãos.
Passados cinco anos de pandemia, quais foram as conquistas dessas associações?
As duas associações informaram que as conquistas foram poucas, embora as atividades continuem sendo realizadas. “Ainda estamos lutando na justiça por um mínimo de reparação por conta das mortes pela covid-19 que poderiam ser evitadas caso o governo tivesse agido em favor da aquisição das vacinas e pelo tratamento de covid longa. Já sabíamos que esse processo poderia levar de cinco a dez anos, o que a gente não imaginava era que nesse tempo não haveria nenhuma responsabilização direta de ninguém”, diz Paola Falceta, fundadora da Avico, que, no entanto, se mantém otimista, inspirada nas conquistas de outros movimentos, como o de pacientes de hanseníase.
Rosangela Dornelles, coordenadora geral da Vida e Justiça, concorda que há pouco o que comemorar. Ainda no primeiro ano de atividades, a associação foi responsável por propor projetos de lei relacionados à proteção de órfãos da pandemia. “As pautas pela responsabilização de gestores públicos e privados e por reparação às vítimas diretas e indiretas seguem sendo as mais importantes, pois praticamente nada avançou. Os vários projetos de lei para proteção de órfãos tramitam com lentidão inexplicável tanto na Câmara quanto no Senado”, lamenta. Tanto a associação coordenada por ela quanto a Avico têm atuação conjunta com outras entidades na Coalizão Orfandade e Direitos.
Entre as conquistas, estão os ganhos de legitimidade perante a sociedade. A Avico participou da elaboração de um livro de memórias das vítimas da covid-19 em parceria com a Rede Covid Humanidades – Histórias em Movimento e a proposta é lançar também uma peça de teatro em 2025. “Entendemos que para alcançar a responsabilização, a reparação e a justiça há um conceito anterior, que é o registro da memória. E a gente ainda está nesse momento por registrar essa memória, ainda que estejamos completando cinco anos de pandemia de covid-19”, diz. Já a Vida e Justiça, por integrar a Frente pela Vida, conseguiu assento no Conselho Nacional de Saúde no segmento de Comissões Especiais.