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Entrevista: 
Katerina Volcov

‘O trabalho infantil ainda é muito naturalizado e subnotificado’

No dia 12 de junho é comemorado o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, efeméride instituída pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para chamar atenção para a permanência, até hoje, dessa chaga do mundo do trabalho em nível global. No Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos em situação de trabalho infantil em 2023. Em 2015, o país se comprometeu junto à ONU erradicar o trabalho infantil em 10 anos, prazo que termina no final de 2025. Secretaria executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Katerina Volcov fala nesta entrevista sobre os desafios para a erradicação do trabalho infantil no país.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 12/06/2025 10h57 - Atualizado em 13/06/2025 12h05

Segundo os dados mais recentes da PNAD Contínua do IBGE, em 2023 havia 1,6 milhão de crianças em situação de trabalho infantil no Brasil. Os números voltaram a cair após uma elevação em meio à pandemia de covid-19. Que análise faz dos dados? 

Ainda há muita subnotificação. A gente tem alguns tipos de trabalho infantil que ainda são muito naturalizados. Vamos pensar o trabalho infantil doméstico. Ele não aparece nas estatísticas. Outro que também não é visto como trabalho infantil, mas como crime, é o desenvolvido por crianças e adolescentes na produção e comércio de substâncias ilícitas. Essas crianças e adolescentes também não aparecem nos dados da PNAD Contínua. É visto apenas como uma prática criminosa, um ato infracional praticado por uma criança e adolescente. Mas se a gente vai observar, ouvir essa criança, esse adolescente, ele tem regras, tem horário, tem atividades para cumprir, responsabilidades. É um trabalho. E a própria convenção 182 da OIT [sobre as piores formas de trabalho infantil] menciona claramente que atividades relacionadas a tráfico de drogas são uma das piores formas de trabalho infantil.

Eu, pessoalmente, não acho que os adolescentes são traficantes. Eles trabalham no comércio. Não são o Pablo Escobar nem o Fernandinho Beira-Mar, são adolescentes que estão ali ‘no corre’ para poder sobreviver. Muitas vezes eles moram numa zona de milícia e são obrigados a participarem dessa situação sem nem querer. Tem muito adolescente que não quer, mas se vê obrigado porque sofre ameaça ou porque foi ajudado por uma facção. E isso não é algo circunscrito nem ao Rio de Janeiro nem a São Paulo.

A gente tem isso no Norte, a gente tem isso no Nordeste, a gente tem isso em todos os lugares. O que tem me chamado a atenção é que em alguns lugares da região Norte, por exemplo, por ser uma região de muitos rios, de muitos igarapés, imensa, não tem uma fiscalização suficiente que consiga coibir, por exemplo, a exploração de garimpo ilegal, de madeira ilegal. E aí nessa hora, a pouca força policial que existe ali muitas vezes é cooptada pelas facções para desenvolver serviços ilícitos ali, que por sua vez vão cooptar adolescentes para mexerem com mercadorias ilegais, seja madeira, seja drogas. Porque muitas vezes esses adolescentes são cooptados em localidades muito distantes do centro nervoso da cidade. Tem municípios que são muito grandes em extensão, mas que tem uma população muito pequena.

Na região Norte a gente tem municípios assim. Melgaço no Pará [município com o pior IDH, ou Índice de Desenvolvimento Humano, do país] é um deles. Ele tem um território bem grande e cerca de 28 mil habitantes. E tem localidades dentro desse município que a gente leva 12 horas para chegar de rabeta ou de lancha. Nesses lugares a gente já tem ouvido que a milícia lá chegou e que tem cooptado adolescentes para trabalhar em atividades ilegais. E é trabalho infantil.

Depois a gente tem um outro grande grupo de crianças e adolescentes que estão envolvidas na exploração sexual, que é outra pior forma de trabalho infantil e que a gente também não tem os números. Esses números não aparecem na PNAD Contínua. E a gente tem ainda novas modalidades dessa exploração sexual acontecendo. Para além daquelas costumeiras. É muito comum a gente ver criança e adolescente em beira de estrada, nos igarapés de regiões com muitos rios. Mas a gente tem também a modalidade virtual que a gente precisa observar. O trabalho infantil é realizado em plataformas digitais com perspectiva de exploração sexual. Então essa é uma outra modalidade que não aparece nos dados.

E a gente tem o trabalho infantil no campo, na agricultura familiar, que é algo que envolve os saberes locais. Existe uma grande discussão, por exemplo, sobre o trabalho infantil no campo, na agricultura familiar, em comunidades ribeirinhas, em comunidades indígenas, quilombolas, comunidades ciganas, caiçaras. Até onde é parte da socialização, da educação que é dada, passada de geração para geração, e onde começa o trabalho infantil? Qual é o limite? É algo que a gente tem se preocupado e tem apontado e pontuado isso nos espaços que participamos. E isso também depende de uma escuta desses atores, dessas comunidades, para entender quais são esses limites.

Quais seriam esses limites na sua visão?

Esses limites vão depender de cada contexto. Acho que seria muito perigoso dar uma regra geral, sendo que eu tenho especificidades na região Norte, no litoral Sul na região sudeste do Brasil, especificidades nos agrestes, especificidades no campo. O fato é que eu acho que a problematização é válida para a gente pensar.
A comunidade trabalha para a subsistência, e aí as crianças estão lá, trabalhando, para aprender o ofício, com o devido cuidado e tudo mais. A partir do momento em que aquela comunidade trabalha, já não mais para a subsistência, mas tem excedente para virar lucro, aquelas crianças estão trabalhando para aprender ou para aumentar a produtividade? É algo para se pensar. Eu não tenho resposta, até porque o fórum vai ouvir todos os atores para pensar em uma fórmula comum, que consiga atender um consenso mínimo.

Segundo a PNAD, 97,5% da população total de 5 a 17 anos eram estudantes, mas entre os trabalhadores infantis essa taxa era de 88,4%. Qual é o papel da escola nesse debate?

O que hoje a gente percebe é que existem novas modalidades, existem as questões culturais envolvidas. E tem uma relação muito direta com a situação de vulnerabilidade das famílias que têm crianças e adolescentes em trabalho infantil. Tem uma relação com a pobreza. Agora, as crianças vão para a escola? Vão para a escola. Inclusive, os dados da PNAD mostram que quase 90% das crianças que estão em trabalho infantil estão na escola. São 12% de crianças que não estão frequentando a escola. Agora, que escola é essa que a gente está falando? Eu vou lá para o Marajó: metade do mês não tem aula. Por quê? Porque não tem merenda, não tem gasolina na lancha, não tem como a criança sair lá da sua comunidade, que fica duas horas de barco, para chegar na escola. Então as aulas não acontecem. Então se eu tenho 15 dias de aula, 15 dias eu vou para a escola. Os outros 15 dias, o que aquela criança, aquele adolescente faz lá naquela comunidade?  Além do que, a gente tem um outro problema de trabalho infantil, que agora são as crianças e adolescentes sendo cooptadas pelas narcomilícias. E isso não é só no Rio de Janeiro, isso não é só em grandes centros urbanos. Está em todas as regiões do Brasil. E isso é uma pior forma de trabalho infantil.

Pode falar um pouco mais sobre o fluxo de atendimento a essas crianças e adolescentes a partir do momento e que são identificadas pelo poder público como estando em situação de trabalho infantil?

Cada caso é um caso. Uma criança que foi encontrada em um trabalho infantil que estava vendendo pano de prato no semáforo, por exemplo. Ela tem um fluxo de atendimento X. Ela vai ser encaminhada para o conselho tutelar, para o CRAS [Centro de Referência da Assistência Social], para o CREAS [Centro de Referência Especializado da Assistência Social], vai ter um trabalho de acolhimento e atendimento a essa família via esses aparelhos, para saber como é que está essa família.

Digamos que eu encontrei um adolescente trabalhando numa oficina mecânica, de motos, algo muito comum pelos interiores do país: o menino tem 12 anos, está lá engraxando os pneus, está passando óleo em máquinas. Aí a gente faz uma denúncia e isso chega aonde? Na fiscalização do trabalho, na inspeção do trabalho. Então vai um auditor fiscal do trabalho, verifica essa denúncia, encontra e multa o estabelecimento e o proprietário da oficina tem que pagar todos os direitos daquele adolescente que foi encontrado naquela situação.

Ao mesmo tempo, a fiscalização vai encaminhar esse adolescente para a assistência social, para que ele tenha o devido encaminhamento, para saber o que acontece com aquela família, com aquele menino, se ele está na escola. Se a família tem problemas sérios de subsistência vai colocar a família no CadÚnico.
Se eu tenho uma questão de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, eu vou encaminhar para assistência social, mas também para o Ministério Público, porque aí é crime.

Mas a gente tem um outro problema de trabalho infantil, que agora são as crianças e adolescentes sendo cooptadas pelas narcomilícias. E isso não é só no Rio de Janeiro, isso não é só em grandes centros urbanos. Está em todas as regiões do Brasil. E isso é uma pior forma de trabalho infantil.

Você disse que isso é tratado apenas como ato infracional e acabam não entrando nas estatísticas sobre trabalho infantil. Isso gera um vácuo assistencial na sua visão?

Com certeza. O trabalho infantil é considerado uma violência e uma violação de direito. São duas coisas ao mesmo tempo. Mas ele não é considerado crime para a nossa legislação. Diferente, por exemplo, da exploração sexual de criança e adolescente, que é um crime. O trabalho infantil não é considerado crime. O adolescente, por sua vez, que está numa atividade como essa que eu falei anteriormente [no comércio ilegal de drogas], vai ser visto como? Como um adolescente autor de ato infracional. E ele vai ser julgado e vai receber uma medida socioeducativa, não como adolescente trabalhador. Ele vai receber como adolescente que cometeu um ato infracional. Isso é uma contradição do nosso sistema.

Porque muitas vezes esse adolescente começou trabalhando em outras coisas. A gente tem uma pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba, a professora Fátima Pereira Alberto, que é uma sumidade em trabalho infantil, e que tem visto que esses adolescentes que estão nessa carreira de ilícitos, vamos dizer assim, eles não começaram vendendo maconha, sendo ‘olheiros’, ‘aviãozinhos’. Eles começaram catando lixo, em reciclagem, acompanhando a mãe na mendicância, vendendo produto na rua, vendendo bala, catando latinha. Eles fizeram isso antes de serem cooptados pelo crime organizado. Não é o primeiro trabalho que eles desenvolvem. A maioria deles já trabalhou em outras das piores formas de trabalho infantil, nas ruas, embaixo do sol.

Eu estive no Rio durante o G20 [em novembro de 2024] na Praça Mauá [centro do Rio], e você vê crianças ali trabalhando, catando latinha. Tirei foto. Ninguém me falou, eu estava lá. E aí quando você vai lá falar para o fiscal, vi dois policiais ali parados, olhando aquilo com naturalidade. Perguntei: vocês estão vendo que tem crianças trabalhando? Podem chamar o conselho tutelar? Eles responderam que eram responsáveis por realizar a fiscalização do camelô. Entende? O problema é mais sério. Cada um quer ver só o seu próprio umbigo. Não tem intersetorialidade. As instituições não conversam para resolver o problema. É lógico que ali faltou um monte de coisa. Faltou esse carro da fiscalização de camelô saber que aquilo era uma violação de direito, que ele tinha que ligar para o conselheiro tutelar. O conselheiro tutelar tinha que estar ali para ver se não tinha trabalho infantil, ou se não estava acontecendo nenhuma violação de direitos. Aí vão falar ‘ah, não, mas no Rio de Janeiro tem muita desgraça, e o conselheiro foi chamado para outro lugar’. Cadê a guarda municipal? Cadê os auditores fiscais do trabalho? Cadê o espaço seguro para as crianças e adolescentes? Tem um monte de coisa que está faltando.

É possível falar em erradicação do trabalho infantil no Brasil no curto prazo?

A gente conseguiu reduzir os números? Reduziu, mas para acabar ainda falta muito. Porque a gente tem a naturalização daquelas piores formas que eu falei. A gente tem um déficit muito grande de auditores fiscais do trabalho. O Concurso Nacional Unificado ainda não deu posse para os novos auditores chegarem. Mesmo quando eles chegarem, eles vão precisar passar por um treinamento até eles estarem ali. O Pará é uma questão muito séria e a gente precisaria ali de uma força tarefa imensa para fazer a erradicação do trabalho infantil, porque ali a gente tem subnotificação geral. Posso dar o exemplo de Melgaço e de Uruara, que são dois municípios que eu conheço. Eu fui lá, tem trabalho infantil, as pessoas relataram, mas não existe nenhum dado mostrando isso e não aparece em nenhum lugar. Aí a gente entra num primeiro problema, a subnotificação. Então esse número oficial já é subnotificado, seja porque o município não faz a sua tarefa de incluir o dado, seja porque os profissionais ali não sabem o que é trabalho infantil e negligenciam essa informação, seja também porque não sabem o que vão poder oferecer em troca, porque não tem política pública, não tem nada para colocar em troca no lugar desse trabalho infantil que o menino desenvolve.

Então a gente tem um problema de fiscalização, um problema de subnotificação, e a gente tem um problema de falta de investimento em escolas em tempo integral e escolas no campo. E aí quando eu digo no campo, eu vou colocar nas águas, nas florestas, nas comunidades, é preciso de escola em tempo integral nos interiores.
A gente que mora no eixo Brasília, Rio, São Paulo, acha que o Brasil é só isso, mas não é. O Brasil tem muito de Norte, tem muito de Nordeste, tem muito de interior. Muitas dessas mulheres que hoje estão sendo resgatadas por trabalho análogo à escravidão foram trabalhadoras infantis domésticas que saíram do Norte e Nordeste para trabalhar no Sudeste e Sul. Eu acho que diante do quadro de redução de investimentos nas áreas sociais que está sendo previsto pelo governo federal desde a Emenda Constitucional 95 me parece que a gente não tem como contar muito com a Assistência Social. Na área de educação, não estou vendo construção de escolas em tempo integral nas localidades que mais têm trabalho infantil, por exemplo. Não estou vendo investimentos na ampliação de escolas rurais.

Vou dar um exemplo pontual. O programa Bolsa Família despende R$150 para famílias com crianças até 7 anos incompletos. Para cada filho daquela família, se recebe um valor adicional de R$150. A criança acima de 7 anos só recebe R$50. Ora, no trabalho infantil, o maior número de crianças e adolescentes estão na faixa acima de 7 anos, de 7 até 17 anos incompletos. Cem reais vão fazer uma enorme diferença naquela família que recebe o benefício. Então a primeira coisa deveria ser pagar R$150 para todas as crianças que estão recebendo o Bolsa Família. E fazer um investimento em especial para aqueles adolescentes acima de 14 anos para que eles entrem num programa de jovem aprendiz. Isso poderia ser fácil com alguma facilidade. Mas não foi.

A pergunta é: ‘você acha que até o final de 2025 é possível erradicar o trabalho infantil?’ Eu, enquanto secretaria executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, penso que seja muito pouco provável, diante dos desafios colocados em termos de fiscalização e de investimentos nas políticas básicas de educação, de saúde, de assistência social e de geração de renda para as famílias mais pobres.

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil completou 30 anos no final de 2024. Qual é a importância do Fórum e suas conquistas ao longo dessas três décadas?

O Fórum foi criado em novembro de 1994. Naquele momento a gente tinha um cenário muito difícil. Quase 9 milhões de crianças e adolescentes estavam em trabalho infantil. Tinha casos das crianças trabalhando em minas, em carvoarias, na produção de sisal, no abacaxi, na produção de castanha. Então a gente tinha uma série de denúncias acontecendo inclusive fora do Brasil, e o governo se viu na obrigação de resolver a questão.

Na época o órgão correspondente ao atual Ministério do Trabalho e Emprego e suas superintendências começaram a desenvolver fiscalização, e o fórum é criado por uma série de instituições de justiça, pela Unicef, pela Organização Internacional do Trabalho, pelo Ministério Público, e pelo Ministério do Trabalho e Emprego, e todas essas instituições começam a investigar como acessar, por exemplo, as carvoarias, os garimpos ilegais. E aí se tem a primeira experiência de articulação interinstitucional para o enfrentamento ao trabalho infantil. Vai se chamar Programa de Ações Intersetoriais Articuladas, ou PAI, que o fórum desenvolveu e que vai dar origem ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, que é o chamado PETI, em 1996. De lá para cá uma série de conquistas aconteceram. Por exemplo, o FNPETI foi um ator muito importante na questão de fazer com que o governo brasileiro assinasse as convenções 182 e 138 da OIT, que tratam sobre as piores formas de trabalho infantil e a idade mínima para o trabalho.

As atividades do fórum são baseadas num tripé: o primeiro é a sensibilização da população por meio das campanhas que são realizadas anualmente no dia 12 de junho, que é o Dia Nacional - e mundial - Contra o Trabalho Infantil, mas a gente participa de campanhas no 18 de maio, Dia das Crianças, entre outras campanhas em várias efemérides e ao longo do ano. A outra parte do trabalho do fórum é a produção de conhecimento, que são as pesquisas, as investigações que já existem no site e que estão disponíveis para download.

O terceiro pé desse tripé é a incidência política, nos espaços de decisão política, seja no Congresso Nacional, seja no Executivo. Por exemplo, a gente faz parte da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e da Comissão Nacional dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e busca, nesses espaços, lembrar sempre da necessidade de a gente fazer a intersetorialidade acontecer. Porque, infelizmente, isso não é algo orgânico ainda.

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