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Sankofa discute descolonização do currículo

Primeiro dia do evento debateu a implantação das leis que determinam a inclusão da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino.
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 23/10/2017 14h58 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Foto: Maycon Gomes

Para potencializar os estudos, pesquisas e atividades escolares e extraescolares sobre relações étnico-raciais, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promoveu nos dias 17 e 19 de outubro o projeto Sankofa. Como passo inicial para a construção de um Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) na Fundação Oswaldo Cruz, o evento buscou, através do debate coletivo, reivindicar a efetiva implantação das leis 10.639/03 e 11.645/08 – que determinam a inclusão da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino. O intuito dessas legislações é valorizar a cultura das classes sociais afro-brasileiras e indígenas no Projeto Político Pedagógico (PPP) e na estrutura curricular das escolas, além de contribuir com a formação continuada dos professores e estudantes.

“O projeto se insere nas lutas quilombolas e indígenas contra a opressão, a exploração e a violência de todos os tipos e dimensões. Soma-se às diversas ações, mobilizações e lutas históricas desenvolvidas no mundo por coletivos de educadores, estudantes e militantes dos movimentos negro e indígena, que têm como objetivo avançar no processo da reeducação das relações étnico-raciais, visando a ruptura com a estrutura racista que constitui a sociedade brasileira”, destacou uma das organizadoras do evento, a professora-pesquisadora da EPSJV, Valéria Carvalho.

Segundo ela, a colonização do conhecimento é fundamental para a sustentação do projeto de dominação que predomina atualmente. Diante disso, é importante entender a dinâmica das relações étnico-raciais no Brasil e descolonizar o conhecimento e o currículo. “A implantação das leis 10.639 e 11.645 e a descolonização epistemológica são algumas das condições fundamentais para contribuirmos e avançarmos com a superação desse processo de dominação”, ressaltou.

A palavra ‘sankofa’ remete a um provérbio tradicional dos povos da África Ocidental. Pode ser traduzido pela ideia de que “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Graficamente, é representado como um pássaro que voa para frente, com a cabeça voltada para trás, carregando no seu bico um ovo, que representa o futuro. O desenho também é similar ao traço de um coração. “Esse evento nos faz retornar ao passado e lembrar o quanto o negro foi martirizado e sofre até hoje com diversas violências”, afirmou Andrea Oliveira, arquivista da EPSJV.

Descolonização do currículo

No dia 17, aconteceu o debate sobre ‘A descolonização do currículo’. O historiador Michael Junior Queiroz, primeiro aluno indígena da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), defendeu o direito de todos os povos manterem culturas e tradições diferentes e enumerou equívocos, que segundo ele,  os brasileiros em geral cometem em relação aos povos indígenas. “O primeiro é que o índio é genérico, mas a palavra índio não representa todos os 305 povos que existem com suas diferentes culturas, religiões, filosofias e pensamentos”, disse 'Baré', como é conhecido.

Outro equívoco, segundo ele, é que as culturas indígenas são atrasadas e congeladas. “Como isso é verdade se a ciência lança mão de nossos saberes medicinais, alimentares, técnicos? Para ser índio de verdade, o povo acredita que tem que estar dentro de quadros idealizados. Não é porque uso relógio que deixo de ser índio”, acrescentou Baré. E concluiu: “Nossa luta é para resgatar os valores culturais, morais, políticos e econômicos dos povos indígenas perdidos para reumanizarmos a nossa civilização. A educação é a única arma que fomenta a emancipação de povos indígenas e afrodescendentes”.

“Sem uma formação pluricultural e étnico-racial, nunca teremos igualdade. Não existe uma corrida com igualdade se eu não tiver acesso e oportunidade e se a escola não for até a aldeia”, reafirmou Mara Kambeba, assistente social do Amazonas.

Rosiane Cardoso, professora de artes visuais da secretaria de educação de Guapimirim (RJ),  falou sobre como a arte contribui para a descolonização do currículo. “Descolonizar o currículo nas artes significa não somente repensar o currículo conteudista hegemônico, mas também a corporeidade e espiritualidade humanas, pensar a ideia de cultura como estratégia central para a definição de identidades no mundo contemporâneo. Em suma, significa tornar-se negro, negra, índio, gente, humano e visível”.

Professor de História da Uerj, José Roberto Rodrigues relembrou diversos marcos da luta por justiça racial. “Desde a luta dentro do navio negreiro, a luta dos quilombismos espalhados pelo país, passando pelo abolicionismo, pela frente negra, pelo socorro da população negra no início do século 20 e, depois, pelo próprio movimento negro reorganizado nos anos 1970 com a pressão e a esperança por um governo mais efetivamente à esquerda, reparador nas questões de raça e desigualdades sociais”, enumerou.

De acordo com ele, o reconhecimento de que a questão racial foi resolvida no país é um dos desafios na implementação de leis e práticas que sejam capazes de retomar a ancestralidade: “Currículo escolar não cai do céu, é uma escolha política e ideológica. Educar é um ato de exposição da diferença em primeiro lugar. Não tem como educar e se constituir identitariamente se não for pela diferença. Que nos reconheçamos coloridos”.

Alunos usam arte para debater tema

Na tarde do dia 17, os alunos do ensino médio da EPSJV fizeram apresentações culturais sobre questões étnico-raciais. Um grupo de alunos do 4º ano da habilitação de Análises Clínicas apresentou uma peça teatral sobre estereótipos e preconceitos que negros e negras enfrentam diariamente.“O negro não tem voz e não tem vez, mas quando a gente dá voz a ele percebemos que o racismo está em toda parte. Como se o simples fato de ser negro já fosse uma ameaça. Precisamos denunciar o preconceito para que esses estereótipos não se reproduzam”, denunciou a estudante Julia Barcelos, durante a encenação.

Entre várias apresentações, outro grupo do 4º ano da habilitação de Análises Clínicas expôs um trabalho sobre a luta pela representatividade da mulher negra no rap. Já alunos do 2º ano das habilitações de Análises Clínicas e Gerência em Saúde declamaram poesias em inglês e em espanhol.