Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

A ditadura entre fatos e fakes

Atividade promovida pela EPSJV/Fiocruz como parte do Circuito pela Democracia buscou problematizar crescimento do discurso a favor da ditadura empresarial-militar
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 29/04/2019 11h02 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promoveu na última quinta-feira (25/04) uma atividade para marcar os 55 anos do golpe de 1964, completados no dia 1º de abril deste ano. Com o tema “Golpe de 1964 e ditadura: os fatos, as fontes e os fakes”, a atividade, promovida pelo historiador e professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz André Dantas, buscou apresentar e problematizar posicionamentos que nos últimos anos têm ganhado espaço no debate público acerca do período da ditadura empresarial-militar, entre 1964 e 1985.

“Temos presenciado falas, discursos, posicionamentos que há cinco, dez anos não se tinha coragem de falar, inclusive com uma mudança nas lideranças que conseguiram atingir postos de poder importantes, como a Presidência da República. E essa mudança não é só eleitoral, é também na base da sociedade”, introduziu André Dantas. Essa mudança na situação política, segundo ele, tem contribuído para disseminar o que chamou de “império da opinião”. “Cada um se sente à vontade para opinar sobre o que quiser. O que não é ruim em si. Na rede social, se pode fazer tudo ou quase tudo. O problema é quando se está lidando com acontecimentos históricos, que tem pesquisas, fontes, testemunhas, e se dissemina um tipo de discurso que é apenas a negação deste acúmulo. Se houvesse fontes para negar tudo bem, é parte do debate, mas fica apenas no plano da opinião”, critica André.

O historiador lembrou, por meio de notícias de jornais, vídeos e documentários, vários exemplos do discurso que procura desqualificar a produção historiográfica sobre o golpe de 1964 e as consequências sociais, políticas e econômicas da ditadura empresarial-militar, que perseguiu, censurou, torturou e matou milhares de adversários políticos do regime.

Exemplo recente foi a polêmica envolvendo o presidente Jair Bolsonaro, que no dia 25 de março solicitou aos quartéis que realizassem uma comemoração para marcar a tomada do poder pelos militares em 1964, no dia 31 de março. Somado a isso, um vídeo divulgado na internet por um celular institucional da Secretaria de Comunicação da Presidência da República causou controvérsia por trazer uma mensagem em favor do golpe. Mais tarde se descobriu que o vídeo foi pago por um empresário paulista. “Mas ao ser divulgado por um celular institucional, isso ganhou legitimidade de discurso de governo”, pontuou André, que ressaltou, porém, a falta de fontes para as informações citadas como argumentos justificando a necessidade do golpe.

Ele sintetizou os principais argumentos do discurso que busca negar o golpe de 1964: a ideia de que a compreensão dominante sobre a ditadura é fruto da vitória da esquerda no campo cultural, e não da pesquisa científica baseada em fontes; a afirmação de que o que ocorreu em 1964, e muito menos militar, já que foi o Congresso quem destituiu João Goulart, com o apoio da população; a noção de que o golpe foi um “movimento preventivo” para evitar uma revolução comunista no Brasil; a ideia de que muitos dos que se dizem vítimas de tortura durante a ditadura o fazem para se promover politicamente, entre outros . “Se a história é permanentemente conflito, é esperado que a historiografia apresente um movimento de revisão de compreensões consolidadas da história. Não é um problema. Mas a revisão de conhecimentos consolidados precisa utilizar novas fontes ou reinterpretar as mesmas fontes, consistentemente”, ressaltou. E completou: “O problema é o negacionismo, que é a negação pura e simples de um episódio histórico e que não apresenta fontes, não tem base de comprovação”.

André apresentou em seguida aos estudantes várias publicações acerca do período da ditadura que ajudam a desconstruir os argumentos pró-golpe. “Temos uma literatura consistente da qual podemos discordar ou concordar, mas elas foram às fontes disponíveis, viram inconsistências, entrevistaram fontes e produziram trabalhos”, reitera, destacando trabalhos como ‘1964: a conquista do Estado’, de René Dreifuss. “Esse livro mostra com solidez que havia entidades civis da burguesia que pensaram, produziram e patrocinaram esse golpe, inclusive com a participação de países como os Estados Unidos”, resumiu.

Amparado pela produção historiográfica sobre o período, o professor da EPSJV/Fiocruz resumiu o contexto que levou os militares, em conjunto com entidades da chamada sociedade civil ligadas ao empresariado nacional, a deflagrarem o movimento golpista em 1964. “O Brasil vivia desde 1950 uma crise no seu modelo de desenvolvimento, de substituição de importações. Essa forma de acumulação de riqueza pela burguesia se esgotou, e ela viu que precisava dar um ‘salto’, o que significava colocar a classe trabalhadora que se organizava ‘no seu devido lugar’”, afirmou André, lembrando a ebulição social que agitava o país na época, com greves e manifestações por reformas de base no campo e na cidade. “Os trabalhadores queriam emancipações que os trabalhadores de países do capitalismo central já tinham conseguido. A França fez reforma agrária no final do século 18. Mas em países periféricos como o Brasil, isso assusta a burguesia. As tentativas golpistas se repetem nesses cenários de crise econômica e organização da classe trabalhadora”, pontuou. Ele lembrou de como, desde meados da década de 1950, a burguesia e os militares ensaiavam um golpe. “O golpe de 1964 estava sendo cozinhado há tempos. Se tentou em 1954, que foi o motivo do suicídio de Getúlio Vargas. Depois em 1961, quando se tentou retirar poderes de João Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros, com o Congresso instaurando o parlamentarismo no país, rejeitado depois em um plebiscito, que restituiu o presidencialismo. O que mostra que havia amplo apoio popular à João Goulart”, resgatou André, complementando: “Mas a terceira tentativa de golpe em 1964 deu certo. Isso desmonta os argumentos dos negacionistas quando apontam a tensão do momento de 1964 como justificativa para o golpe”.

Como conclusão, o historiador trouxe dados para mostrar que não há nada a ser comemorado do período da ditadura empresarial-militar. “Temos milhares de depoimentos de pessoas que foram torturadas, no pau de arara, sofriam choques, afogamentos. Há fotos, descrições e vítimas. Sabemos de cemitérios clandestinos com corpos de pessoas torturadas. Sabe-se hoje que os militares recebiam cursos de tortura e depois iam para outros países dar aulas. São inúmeros os registros de casos de censura a músicas, jornais. A ditadura exercia um controle rígido sobre a vida dos brasileiros”, resgata. Ele também destacou como a ditadura produziu a concentração de renda no 1% mais rico da população, além de uma queda vertiginosa do salário mínimo e de inúmeros outros indicadores sociais, como o número de matrículas no ensino médio e em cursos de graduação presenciais. “A ditadura precisa ser ‘descomemorada”, concluiu.


Circuito pela Democracia

A atividade promovida pela EPSJV/Fiocruz integrou o Circuito pela Democracia, conjunto de eventos realizados ao longo de abril em várias instituições fluminenses para lembrar os 55 anos do golpe empresarial-militar e a ditadura que se instaurou no país pelas duas décadas seguintes, e que produziu perseguições políticas, tortura, mortes e desaparecimentos de milhares de pessoas. Além da EPSJV/Fiocruz, outras instituições que realizaram atividades pelo Circuito da Democracia em abril foram a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), a seccional Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).