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Crise mundial é tema de seminário na EPSJV

Para a economista Leda Paulani, crise é conseqüência do capital fictício
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 06/03/2009 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Leda PaulaniO conceito de capital fictício, de Karl Marx, e como sua aplicação no atual sistema financeiro contribui para a atual crise mundial foi o fio condutor do seminário ’A crise mundial e suas repercussões no Brasil’, proferido por Leda Paulani na aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). O evento aconteceu no dia 5 de março, no Auditório Joaquim Alberto Cardoso de Melo, e teve, na mesa de abertura, o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, o diretor da EPSJV, André Malhão e a coordenadora da pós-graduação, Marise Ramos.



Leda Paulani é doutora em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas (USP), professora titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), pesquisadora sênior da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) e ex- presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP).



Ela explicou que o capital fictício, segundo Marx, se origina quando as riquezas imaginárias (como ações e títulos) não têm lastro nas riquezas reais. Neste caso, a valorização do capital não é medida pela produção de bens e serviços, mas sim, pela especulação no mercado financeiro. “As ações de uma empresa, por exemplo, deveriam ser duplicata de uma riqueza real. Mas o que acontece é que depois de criadas, as ações passam a ter vida própria e seu preço se torna um produto de um processo arbitrário que se descola da riqueza real e se torna um capital fictício. A ação sobe sem fundamento, simplesmente porque subiu antes, e fica sem lastro na produção de serviços”, explicou. Já o capital não fictício é aquele investido em meios de produção e força de trabalho que serão aplicadas no processo de produção. Após esse processo, o capital aplicado é recuperado com um valor maior do que o investido, além das mercadorias produzidas. “É o valor que se valoriza pela produção de bens e serviços e não só pela especulação ou atuação no mercado financeiro. As conseqüências do capital fictício no mundo real podem ser desastrosas porque se todos quiserem materializar a riqueza ao mesmo tempo não há lastro para todos”, destacou.



Para Leda, a atual crise não surpreende, já que era previsível que o crescimento do capital fictício nos últimos anos acabasse provocando um desequilíbrio nos sistemas financeiros dos países. “O capitalismo está se financeirizando a largos passos desde os anos 80. Quem acompanha a lógica do sistema financeiro a partir dos anos 80 sabia que uma hora essa crise iria acontecer”, lembrou.





Conceitos





Para que todos pudessem entender melhor a crise, Leda Paulani exemplificou os conceitos de capital fictício e de financeirização da economia. Um dos exemplos de capital fictício é o sistema de crédito, que aumenta o metabolismo das economias. Com ele, o consumidor adquire um poder de compra que lhe permite comprar um bem antes do que poderia. “O poder de compra é acelerado, mas não é real. O crédito aposta na acumulação futura de um valor maior (com juros), mas que pode não ocorrer por causa da inadimplência”, explicou.



Leda lembrou que o consumo americano, por exemplo, cresceu muito nos últimos anos baseado no sistema de crédito. Como os salários reais não cresceram, isso quer dizer que eles foram substituídos pela dívida privada.



Outro exemplo de capital fictício são os títulos da dívida pública que são vendidos pelo governo para cobrir seus desequilíbrios financeiros.





Capitalismo financeiro





Outro tema abordado por Leda foi a financeirização do capitalismo que também é uma das causas da atual crise. Nos últimos 30 anos, o crescimento da riqueza financeira foi muito maior que o da economia real. Enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) mundial cresceu 400%, tendo por trás uma riqueza real, baseada nos bens e serviços, a riqueza financeira (ações, debêntures, títulos de dívidas privadas e públicas e depósitos bancários) cresceu mais de 1.200%. “Isso aponta para o descolamento da riqueza financeira do seu lastro que é a economia real e que deveria ser o princípio de tudo. Esse crescimento produziu ganhos monetários e muito luxo, além do aumento das dívidas públicas, que também cresceram muito nos últimos anos. Isso também é fruto da vitória do ideário neoliberal”, disse.



Para Leda, o crescimento da riqueza financeira produziu o processo de abertura total das economias dos países, com algumas exceções. “Essa é a verdadeira globalização, na qual o capital financeiro entra e sai com facilidade de qualquer lugar. Também é um dos motivos que fez com que a crise tenha se espalhado tão rapidamente pelo mundo depois de ter se originado no mercado imobiliário americano”, disse, lembrando, no entanto, que essa origem precisa ser relativizada. “Na verdade, essa é uma crise do atual processo produtivo, baseado no capital fictício”, destacou.



A economista apontou duas situações que exemplificam a financeirização do capitalismo. Uma delas é a mudança do papel das holdings que deveriam ter a função de organizar a gestão centralizada dos ativos e dos recursos da empresa, mas hoje são um centro de lucro. “Essa diferença de atuação indica bem o comando da lógica financeira. As decisões não são guiadas pela produção, mas pela lógica financeira”, observou. Outro exemplo é a intervenção das empresas brasileiras no mercado de câmbio. “As empresas mobilizam valores de cinco a dez vezes maior do que realmente precisam para dar conta de suas atividades produtivas porque isso dá lucro, aumenta seus resultados e dá mais crédito. Grandes empresas brasileiras saíram perdendo com a crise porque estavam apostando no mercado futuro de câmbio, na baixa do dólar”, disse.





Neoliberalimo





Os princípios do neoliberalismo e seu possível enfraquecimento também foram assunto do seminário apresentado por Leda Paulani, que acredita que o discurso neoliberal irá se fortalecer com a crise, mas que também há uma brecha para mudanças. “Em tempos de crise, o discurso neoliberal de que é preciso encolher os gastos, flexibilizar as leis trabalhistas e reduzir a participação do Estado é totalmente adequado ao capital financeiro. Mas há uma brecha para o recuo do neoliberalismo e talvez até um espaço para a reestatização. Hoje, os governos são muito mais limitados do que há 20 anos e esse momento aumenta a consciência da inviabilidade deste sistema que pode não estar dando certo”, ressaltou.





Conseqüências no Brasil





No Brasil, a crise não deve provocar um colapso no sistema financeiro, segundo a economista, já que é um sistema mais regulado pelo Estado, ao contrário do que acontece em outros países, como os Estados Unidos. “Desde os anos 90, o Estado brasileiro tem sido muito benevolente com o sistema financeiro, que cobra tarifas elevadas e juros muito altos”, disse.



No mercado externo, as exportações devem continuar a cair, assim como os preços dos produtos vendidos para outros países, devido à queda no crescimento das economias dos países. No mercado interno, a desvalorização da moeda brasileira desinflou a ‘bolha’ da valorização irreal e dinamizou a economia. “Já em relação aos investimentos, ainda é difícil ter uma perspectiva. Os riscos ainda são altos e é difícil definir onde investir”, ressaltou.



A crise também provocou uma situação adversa para a classe trabalhadora, umas das mais vulneráveis nestes momentos. Aumento de desemprego, perda de direitos com a flexibilização das leis trabalhistas e redução de salários são algumas das conseqüências enfrentadas pelos trabalhadores. Leda lembrou que isso também se reflete na queda do consumo.



Com a crise, os especialistas estão refazendo as previsões para a economia brasileira em 2009, assim como acontece em outros países. “E a tendência é que as previsões sejam repensadas para baixo. Para prever os desdobramentos no Brasil, há que se analisar o papel da economia brasileira no capitalismo mundial que hoje é de uma plataforma de valorização financeira. Os reflexos da crise no Brasil têm relação com este papel. As empresas jogam o dinheiro aqui para obter ganhos em moeda forte, que são proporcionados pela nossa elevada taxa de juros e a supervalorização da moeda”, observou.