Com o objetivo de desconstruir práticas racistas e promover diversidade e equidade, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) lançou, no dia 4 de novembro, a segunda oferta do curso autoinstrucional e o livro “Letramento racial para trabalhadores do SUS”. O evento online reuniu pesquisadores e docentes de diversas instituições e contou com uma aula inaugural sobre “Racismo e Antirracismo no SUS”, destacando a importância da formação crítica para garantir equidade no sistema público de saúde.
Ao abrir o evento, a professora-pesquisadora da Escola Politécnica, Regimarina Reis, que está na organização da publicação e coordena o curso juntamente com a professora-pesquisadora Letícia Batista, celebrou a relevância e centralidade do projeto no âmbito da Fiocruz e também das parcerias para além da instituição. Em sua fala, Regimarina ressaltou ainda que a atividade ocorre em marcos históricos importantes, como, por exemplo, o ano de centenário de Clóvis Moura e de Frantz Fanon; e no mês de Zumbi dos Palmares, novembro negro. “São elementos e referenciais teórico-práticos para que possamos fazer frente às contradições coloniais escravocratas que formam o estado capitalista brasileiro e a nossa modernidade. Nos convocam à ação, nos chamam a repensar e incidir sobre essa estrutura societária que permite que o racismo exista e seja usado como tecnologia de aniquilação da vida das pessoas negras, sistematicamente”, apontou.
Regimarina explicou ainda que o curso e o livro são desdobramentos do projeto “Racismo e Saúde no Brasil”, coordenado por ela e por Letícia Batista e financiado pelo Programa Inova Fiocruz. “É um projeto feito por muitas mãos. O projeto de letramento racial surge do acúmulo de práticas e pesquisas desse grupo, relacionadas ao campo do trabalho em saúde, formação na saúde, saúde da população negra, racismo estrutural e antirracismo. E mais precisamente no bojo da pesquisa “Formação, Trabalho em Saúde e Racismo Estrutural: experiências de trabalhadoras e trabalhadores negros atuando nas capitais Rio de Janeiro e Salvador”, financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj)”, situou a professora-pesquisadora.
Na abertura do evento, Marly Cruz, vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, enfatizou a relevância da segunda oferta do curso e do lançamento do livro. “Essa formação é fundamental diante dos esforços para implementar estratégias antirracistas no SUS, sobretudo porque ainda enfrentamos uma baixa implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e muitos trabalhadores não se consideram devidamente letrados”, afirmou. Ela também destacou a importância da publicação: “O livro amplia o acesso a materiais de qualidade para a formação profissional e nos convoca a transformar essas reflexões em ações concretas no cotidiano do SUS”.
Em sua fala, Márcia Valéria Morosini, vice-diretora de Ensino e Informação da EPSJV/Fiocruz, falou sobre o quanto é importante realizar o letramento racial para que, de fato, se possa promover uma saúde pública igualitária. “Que todas as pessoas tenham acesso e que atenda dignamente as necessidades e particularidades de cada um de nós”, acrescentou. Márcia Valéria destacou ainda a atuação da Escola Politécnica, uma unidade técnico-científica da Fiocruz voltada para formação de técnicos em saúde, na construção do curso e do livro. “São a grande maioria da força de trabalho em saúde pública ou privada, e, no SUS, esses trabalhadores são majoritariamente mulheres negras”, definiu.
Douglas Lucas, professor da rede municipal de Ensino em Volta Redonda (RJ) e integrante da equipe do Clube Palmares, realçou a pertinência do envolvimento dos movimentos sociais na construção do projeto. “É muito bom quando a academia nos olha e nos ouve em pé de igualdade, reconhecendo o nosso trabalho. Quando as instituições reconhecem os movimentos não só como objetos de estudo, mas como indivíduos capazes de produzirem saberes e subjetividades, isso demonstra um compromisso com a transformação social”, disse.
Paola Trindade, professora do departamento de Saúde Pública da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), chamou atenção para o cuidado na tradução do conhecimento e transposição didática para o desenho do curso. “Sem dúvida, o material educativo é parte importante do processo formativo de uma iniciativa educacional na modalidade online”, afirmou, complementando: “Ainda que tenhamos políticas, outras iniciativas devem se reunir dentro desse conjunto de ações, para que a gente desenvolva, dentro do processo de trabalho com profissionais do SUS, um olhar e uma prática efetivamente antirracista e o curso vem somar a isso. O letramento está na capacidade de ler, interpretar e agir criticamente nas manifestações do racismo”.
Racismo e Antirracismo no SUS
Dando continuidade à aula de lançamento, a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Sandra Vaz, destacou a relevância do momento e do material desenvolvido com tanto cuidado: um material didático elaborado com rigor, que trouxe contribuições significativas e fomentou debates essenciais. "O livro nos mostra a importância de refletir sobre o racismo não apenas na área da saúde, mas também sobre como ele atravessa o cotidiano e as relações sociais. Nos ajuda a compreender questões institucionais de acesso ou negação de atendimento, bem como o genocídio da juventude negra, a política de morte em curso no país e as disputas societárias”, apontou.
Em seguida, Sandra chamou Regimarina, além do professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Marcos Araújo, e do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Daniel Campos, para um debate sobre Racismo e Antirracismo no SUS. A elaboração do livro também contou com outros autores como Letícia Batista; e Emiliano David (Uerj) e Ingrid D'avilla (EPSJV/Fiocruz), que produziram o prefácio.
Daniel apresentou um dos elementos que o curso e o livro abordam – a branquitude. “O que tentamos fazer não é só trazer uma costura teórica, mas como podemos olhar para o passado para reconhecer o racismo estrutural no cotidiano das relações sociais hoje, trazendo a discussão da branquitude”, destacou.
Segundo ele, o que se buscou refletir é qual são os efeitos da figura do escravizador e do processo escravocrata para a identidade racial da pessoa branca e para a estruturação de poder na sociedade contemporânea. “E que vai se manifestar na Atenção à Saúde, na promoção, no planejamento, na avaliação e na produção de indicadores. Tudo isso é fundamental para conseguirmos entender que as apropriações realizadas pela branquitude, ao longo da história, garantiram isso que os autores têm chamado de supremacia branca nas esferas políticas, econômicas e sociais brasileiras e que fortalece a autoestima e autoconhecimento desse grupo localizado nesse lugar de privilégio”, completou, citando a psicóloga social, escritora e ativista Cida Bento.
Cida Bento também foi lembrada na fala de Marcos. “Antes da morte do fuzil, tem a morte do esvaziamento assistencial nesses territórios que foram historicamente violentados, o que é menos sentido nos territórios brancos. Como Cida nos faz pensar, o racismo é um sistema de vantagens. Precisamos também pensar no racismo do ponto de vista das elites brasileiras que se pensam brancas, que traduzem ideologias e tentam ganhar uma parte das classes trabalhadora e média parta operar suas vidas a partir de uma lógica de opressão de raça, de gênero e de classe”, explicou.
Marcos destacou ainda que o antirracismo não pode ser reduzido a atitudes individuais, mas precisa ser compreendido como um princípio estruturante das políticas públicas e da produção de conhecimento. “O antirracismo pressupõe o reconhecimento do racismo. Sobre que racismo estamos falando? Sobre um racismo que traz essa linha histórica de produção de morte do estado ou um racismo restrito e encapsulado em relações individuais?”, questionou. Para ele, reconhecer o racismo em sua dimensão histórica e institucional é essencial para enfrentar seus efeitos mais graves, que vão muito além da discriminação cotidiana e se traduzem em processos sistemáticos de desumanização e morte. “O peso das ações de discriminação tem como efeito a médio e a longo prazo esses assassinatos, porque pressupõe uma desumanização para que não nos importemos ou apoiemos essas ações de morte", comentou. É a partir dessa perspectiva que Marcos propõe ampliar o debate para o campo do direito à saúde, tornando-o uma responsabilidade coletiva. “Ele passa a ser um debate assumido por todas as pessoas, como princípio de produção de conhecimento na saúde”, concluiu.
Por fim, Letícia apresentou um pouco a perspectiva teórico-prática do curso: "É uma formação no âmbito da saúde coletiva, então discutimos Epidemiologia, Planejamento, Gestão e Política da Saúde, mas também queremos trazer as Ciências Sociais e Humanas para essa compreensão, entendendo que precisamos retomar elementos constitutivos, como a Determinação Social do processo saúde-doença e fazê-lo a luz da particularidade brasileira. E não dá para discutir isso sem entender a questão racial”, apontou.
Partindo de alguns pressupostos, Letícia afirmou que a população brasileira é composta, em sua maioria, por pessoas negras e os usuários do SUS também são, majoritariamente, pessoas negras. “Mesmo assim, a população negra representa os piores indicadores sociais e de saúde. Embora exista um conjunto de legislações que reconhece o racismo e as desigualdades étnico-raciais, há ainda a necessidade de ação frente à particularidade da saúde da população negra”, destacou. E completou: “Pensando o curso, entendemos que a questão da omissão é um ponto central. Estamos falando da indisponibilidade ou de um acesso reduzido ao cuidado em saúde; de relações de poder, porque essa população tem menor acesso à informação, menor participação no controle social e, então, terão menos recursos para essas particularidades, ainda que sejam maioria no SUS”.
Da pesquisa à publicação: reflexões e práticas antirracistas na saúde pública
A publicação “Letramento racial para trabalhadores do SUS: elementos introdutórios” busca enfrentar um dos desafios mais persistentes na sociedade brasileira: o racismo estrutural e suas repercussões na saúde. O livro apresenta conceitos fundamentais sobre letramento racial, oferecendo subsídios teóricos e práticos para trabalhadores do SUS.
A proposta é promover uma compreensão crítica das relações entre racismo e saúde, reconhecendo como práticas discriminatórias impactam o acesso, a qualidade do atendimento e os indicadores de saúde da população negra. Segundo os organizadores, o objetivo é fortalecer práticas antirracistas na assistência e na gestão do SUS, contribuindo para a efetivação da saúde como direito universal. A obra aborda temas como: Estrutura e funcionamento do racismo no Brasil; Impactos do racismo institucional nos serviços de saúde; e Estratégias para desconstruir preconceitos e promover a equidade.
Além de ser um recurso formativo, o livro reafirma a importância da questão racial na formação dos trabalhadores da saúde. A publicação está disponível gratuitamente no Portal EPSJV em https://www.epsjv.fiocruz.br/publicacao/livro/letramento-racial-para-tra...
Curso autoinstrucional
Disponível de forma online e gratuita no Campus Virtual da Fiocruz, a segunda oferta do curso de Letramento racial para Trabalhadores do SUS está com inscrições abertas até setembro de 2026, podendo ser cursado até novembro de 2026. A formação é destinada a trabalhadores do SUS atuantes em funções assistenciais e/ou funções gestoras, mas também pode ser realizada por qualquer pessoa interessada na temática. A primeira oferta do curso aconteceu de novembro de 2024 a julho de 2025, com mais de 22 mil participantes em todas as regiões e estados do Brasil.
Com abordagem crítica e prática, o curso explora a estrutura e as expressões do racismo na sociedade brasileira, além de apresentar estratégias para implementar práticas antirracistas no cotidiano dos serviços de saúde. A proposta é contribuir para que trabalhadores do SUS incorporem princípios de equidade racial na assistência e na gestão, fortalecendo o compromisso com um sistema público mais justo e inclusivo. Inscreva-se em: https://cursosqualificacao.campusvirtual.fiocruz.br/hotsite/letramentora...