Levantamento inédito sobre o perfil de mortalidade dos Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) do município do Rio de Janeiro, entre 2010 e 2024, revelou que 60% das 216 mortes registradas no período poderiam ter sido evitadas. Esta é a principal conclusão do boletim epidemiológico Perfil de mortalidade de Agentes Comunitárias e Comunitários de Saúde do município do Rio de Janeiro. O dado foi apresentado durante o seminário “Um olhar sobre o acesso à atenção à saúde e as condições de trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) na Atenção Primária em Saúde (APS) Carioca”, promovido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em 1º de agosto, e que reuniu centenas de ACSs.
O seminário integrou as atividades da pesquisa Agentes Comunitárias(os) de Saúde no município do Rio de Janeiro: um olhar sobre o acesso à atenção à saúde e as condições de trabalho, realizada com o apoio do 1º Programa de Fomento ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Educação Profissional em Saúde (EPS) da EPSJV e conduzida por professores-pesquisadores da Escola em parceria com o Sindicato dos Agentes Comunitário de Saúde do Município do Rio de Janeiro (Sindacs-RJ), cuja primeira entrega foi o boletim epidemiológico.
Ao longo do dia, os Agentes Comunitários de Saúde se dividiram em grupos, nos quais ocorreram rodas de diálogo para escuta e compartilhamento das diferentes experiências, realidades e desafios das 10 regiões administrativas de saúde do município do Rio de Janeiro. Essas conversas permitiram aprofundar a interpretação dos dados coletados nos 2.147 questionários autopreenchidos por ACSs que atuavam na cidade em dezembro de 2024, que representam 28,4% dos 7.555 agentes que trabalham na capital fluminense, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ).
Homenagens aos ACS
A abertura do seminário foi permeada de emoção, com homenagens aos Agentes Comunitários de Saúde que perderam suas vidas precocemente e foram lembrados por seus colegas presentes e pela equipe de pesquisadores. Na ocasião, foi apresentado um vídeo produzido em homenagem a esses trabalhadores e lida uma poesia da professora-pesquisadora da EPSJV, Anna Violeta Ribeiro Durão, publicada no boletim.
Em seguida, a vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Escola, Angélica Fonseca, comentou o misto de emoções e comemorou o trabalho em conjunto com o Sindacs-RJ. “Relembrar esses trabalhadores que se foram nos emociona. Ao mesmo tempo em que estou feliz por compartilhar este dia com vocês. A Fundação Oswaldo Cruz é uma instituição de saúde pública e pesquisas como essa dão significado ao nosso trabalho, que só faz sentido se estivermos em diálogo com a sociedade”, disse.
Marcia Valéria Morosini, vice-diretora de Ensino e Informação da EPSJV e coordenadora da pesquisa juntamente com a professora-pesquisadora Isabella Koster, afirmou que a EPSJV é uma escola de todas as trabalhadoras e trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) e reafirmou o compromisso da instituição com os direitos dos Agentes Comunitários de Saúde. “Em 2024 fomos procurados por representantes do Sindacs-RJ que relatavam a impressão de aumento de mortalidade dos ACSs no município do Rio de Janeiro e buscavam a confirmação ou não desse fenômeno, bem como seus motivos. De prontidão nos colocamos à disposição para colaborar, resultando nessa pesquisa realizada em parceria entre as duas instituições”, ressaltou.
Presidente do Sindacs-RJ, Ronaldo Moreira agradeceu à EPSJV por “sempre estar com as portas abertas aos agentes comunitários” e disse acreditar que o boletim epidemiológico lançado na ocasião pode colaborar para que os ACSs reforcem sua luta por condições dignas de trabalho e acesso ao atendimento de saúde. “Esse trabalho mostra a realidade do ACS, seja em relação ao sofrimento da caminhada profissional, seja no resultado desse sofrimento, que pode chegar inclusive ao óbito. É um trabalho a ser apresentado para as pessoas que estão mais acima da gente [ACSs], para que entendam que não somos máquinas. Somos seres humanos que precisamos de um cuidado melhor, somos a categoria que é o coração do SUS”, defendeu.
Diretor do sindicato e integrante da equipe de pesquisa, Wagner Souza lembrou de quando buscou a EPSJV para entender o que estava ocorrendo com a categoria. “A gente percebeu, a partir de 2020, consolidando em 2021, 2022 e nos anos seguintes, um aumento significativo de óbitos de colegas, o que despertou nossa preocupação. De início, tentamos fazer um formulário via Google Forms, mas vimos que seria necessário um apoio, para haver validação científica e epidemiológica do que buscávamos. Foi quando eu conversei com meus companheiros e disse que se há uma instituição que sempre nos ajuda, é a EPSJV. Emtão, decidimos procurar a Márcia [Morosini] para conversar”, relatou. De acordo com Souza, os resultados já obtidos até esta etapa da pesquisa “comprovam que o Agente Comunitário de Saúde não recebe os cuidados devidos, é muito assediado e não tem um atendimento digno”.
Boletim epidemiológico
Após a abertura do evento, a professora-pesquisadora da EPSJV, Bianca Borges da Silva Leandro, apresentou os principais dados do boletim epidemiológico produzido pela pesquisa. “60% dos óbitos ocorreram por causas consideradas evitáveis, fatores que poderiam ser prevenidos com ações adequadas na própria Atenção Primária à Saúde (APS), na qual os agentes trabalham”, relatou.
A categoria de ACSs no município do Rio de Janeiro é, majoritariamente, feminina (6.501 trabalhadoras, que representam 85,8% da categoria), bem como de pardos e pretos (que somam 75,17% de negros, conforme a classificação do IBGE). “As mulheres negras sempre foram as responsáveis pelo cuidado no Brasil e, ainda hoje, elas são 69,9% no trabalho doméstico e/ou de cuidados remunerados no Brasil”, comentou Bianca. Mais de 58% da força de trabalho (4.443 ACSs) possui entre 35 e 54 anos e a média de tempo de atuação nessa atividade é de 8,9 anos.
Mais da metade dos ACSs (54,4%) relatou ter ao menos uma doença diagnosticada, com destaque para hipertensão arterial sistêmica (34,7%) e questões de saúde mental (22%). Dos respondentes, cerca de 52% referem ter desenvolvido doenças em decorrência do trabalho e 62,7% afirmam que tiveram afastamentos ou licenças médicas por três dias ou mais nos últimos dois anos (2023-2024). “São condições que, sem dúvida, exigem o acompanhamento regular com a equipe de saúde. Grande parte dos ACS depende exclusivamente do SUS, pois 83,7% declararam que não possuem plano de saúde”, observou Bianca, acrescentando que apenas 41,08% dos ACS relatam não ter dificuldade em serem atendidos nas unidades de saúde em que trabalham. Já as respostas “sim, sempre”, “sim, às vezes”, “sim, raramente” e “quase nunca” somam 58,92%.
O município do Rio de Janeiro registrou 216 mortes de ACSs entre 2010 e 2024 (até o mês de outubro), representando 42% dos óbitos de ACS no estado do Rio de Janeiro nesse período. O risco de morrer para ACSs apresentou queda entre 2010 e 2016, seguido de aumento permanente a partir de 2017 e que se tornaram mais expressivos a partir de 2020. Em 2023, o município contabilizou aumento de 54% da taxa de mortalidade, quando comparada com o valor de 2017 (176,5 óbitos por 100 mil em 2017 e 271,0 óbitos por 100 mil em 2023).
A taxa de mortalidade do município superou as do estado e da região metropolitana fluminense em grande parte da série histórica analisada. Entre 2010 e 2019, houve predominância da mortalidade entre homens negros (média de 36% dos óbitos) e, de 2020 a 2024, houve maior concentração de óbitos entre mulheres, principalmente as negras (39,8% dos óbitos).
Em relação ao recorte etário, de 2010 até 2019, se destacou a maior quantidade de óbitos entre homens negros ACSs dos 45 aos 59 anos (14% dos óbitos) e, de 2020 a 2024, de mulheres negras ACSs também na faixa entre 45 e 59 anos (17,2% dos óbitos). “Os números revelam esta alta mortalidade precoce [óbitos até 59 anos] para os ACSs no município”, ressaltou Bianca.
O boletim sugere que o adoecimento e a mortalidade precoce entre ACSs estão diretamente ligados às condições de trabalho da categoria. “Fatores como estresse, racismo institucional, sobrecarga, falta de apoio psicológico e técnico e a exposição à violência nos territórios em que atuam são apontados como determinantes do sofrimento físico e mental desses profissionais”, afirma o documento.