O uso de drogas e suas implicações com as políticas públicas de saúde foram o ponto central da mesa-redonda ‘Drogas e a Sociedade Contemporânea Brasileira’, realizada na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) no dia 17 de maio. “Acreditamos que o problema das drogas é uma questão de saúde pública e o Sistema Único de Saúde (SUS) é capaz de atender a população atingida pelo uso de álcool e drogas. Mas o tratamento contra as drogas não é só uma questão médica. A solução será sempre intersetorial. A relação entre as políticas públicas diferentes ainda é muito frágil. A saúde pública sozinha não vai longe, a articulação com a assistência social tem que ser cada vez mais efetiva”, disse o coordenador de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado.
O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Sérgio de Souza Verani, concorda. “O consumo de drogas é uma questão de saúde pública. Não tem que ser crime. Na Holanda, por exemplo, o uso é liberado e a criminalidade não aumentou. No Brasil, é crime a venda de algumas drogas, mas de outras não, como o álcool, que é um dos grandes problemas de saúde pública do Brasil e é uma droga legal. Mas também não tem que proibir o álcool”.
Pedro Gabriel destacou que o avanço do crack, principalmente nos últimos cinco anos, é uma situação preocupante para a saúde pública. “A disseminação do crack se dá principalmente entre a população jovem e vulnerável socialmente. A idade média dos usuários é de 12 a 28 anos, sendo que a maioria dos consumidores está na faixa dos 10 a 17 anos. Isso dá uma sensação de impotência da política pública e também de urgência para encontrar uma solução”, disse Pedro. “Na semana passada, diversas emissoras de TV exibiram programas sobre o consumo de crack. Todos eles mostravam cenários aterradores, como se não tivesse mais saída para essa situação. E isso é uma marca do debate sobre álcool e drogas”, completou.
Para exemplificar como o assunto é tratado, Pedro Gabriel citou o exemplo de um caso acontecido na cidade de São Paulo há cerca de um mês. Um delegado fez uma operação policial em uma das ‘cracolândias’ da cidade. Prendeu cerca de 30 usuários e levou outros 50 para um centro de saúde público, sem avisar previamente. No local, os funcionários foram pegos de surpresa e não tiveram como atender a todos. As pessoas acabaram saindo do centro de saúde e voltaram para as ruas. “E o delegado usou esse fato para dizer que se o consumo de crack era uma questão de saúde pública, o centro de saúde deveria saber o que fazer com essas pessoas. O secretário de saúde rebateu dizendo que aquela operação não foi uma ação de política pública, mas uma pirotecnia para demonstrar a tese da polícia de que não é possível resolver o problema das drogas com ações de saúde pública”, contou.
Para Pedro Gabriel, esse fato demonstra que deve haver um diálogo entre a saúde pública e a segurança pública e que as formas de enfrentamento do problema precisam ser discutidas e articuladas intersetorialmente. No Brasil, o atendimento de álcool e drogas é um dos componentes da Saúde Mental, como orienta a Organização Mundial de Saúde (OMS). “Os países que juntam essas políticas públicas têm ações mais integradas. O nosso desafio é que a rede de saúde esteja capacitada para atender essas pessoas”, disse.
Para Verani, o fato acontecido em São Paulo é significativo da atuação da Justiça. “A intervenção do Judiciário é sempre desastrosa, porque se dá sempre pela truculência. É uma prática do sistema judiciário. A história da Justiça brasileira é de sempre legitimar as diferenças sociais”.
Rede de Saúde
Para enfrentar o desafio do atendimento aos usuários de drogas, Pedro Gabriel ressalta que é importante que os três níveis da rede de saúde trabalhem integrados. O primeiro nível é a Atenção Básica ou Primária, que é a porta de entrada do sistema de saúde e que se expandiu a partir dos anos 90. “Ela é articulada através das equipes de Estratégia Saúde da Família e Unidades Básicas de Saúde. Nos municípios em que não há uma boa cobertura do ESF, não há boas respostas para a Saúde Mental. Então, o primeiro desafio é aumentar essas equipes”.
De acordo com Pedro Gabriel, indicadores mostram que vem aumentando o número de pessoas dependentes de álcool (aquelas que têm abstinência, bebem mais de 20 dias por mês, consomem mais de cinco doses por vez e se envolvem em situações de risco quando bebem). Esse número já chega a 12% da população, segundo inquérito feito pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (Cebrid/Unifesp). “Esses 12% vão aparecer na Atenção Primária ou como alcoolismo ou com outras consequências, como hipertensão, problemas hepáticos, entre outros. Então, quem trabalha com Atenção Básica também trabalha com álcool e drogas”.
A Atenção Secundária concentra os serviços mais especializados, como os ambulatórios e os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Os Caps estruturam e organizam as possibilidades da Saúde Mental e têm forte articulação com a Atenção Básica. Atualmente, existem 1.513 Caps no Brasil. Há ainda os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf)), que hoje são 900 no país, sendo que 300 fazem atendimento de Saúde Mental.
O último nível é o Terciário, composto pelos hospitais ou locais onde se fazem as internações. “É preciso ter um lugar para a internação dessas pessoas, mas não se pode achar que isso resolve o problema. Essa intervenção tem que ser feita quando for necessária, mas é fundamental que haja continuidade no tratamento, com o acompanhamento do paciente e de sua família. As vagas são necessárias, mas o atendimento não pode se restringir ao nível terciário. O desafio é fazer os três níveis conversarem entre si e funcionarem de forma eficiente dentro do território”, observou Pedro Gabriel.
No caso dos adolescentes usuários de drogas, que são encaminhados para instituições socioeducativas, o desafio é ainda maior. “O caso dos adolescentes é mais complicado porque eles precisam de um acompanhamento. O ideal é que não fossem para o sistema socioeducativo, que houvesse uma intervenção de política pública antes, mas o que acontece, na realidade, é que a internação é a primeira forma de tratamento que esses adolescentes recebem”. Para Verani, “o que se chama de sistema socioeducativo, na verdade, é uma prisão — não tem diferença. No Rio de Janeiro, atualmente, existem mil adolescentes cumprindo pena por tráfico, são as chamadas socioeducativas, que de educativas nada têm”.
Legislação
Outra questão apontada pelos debatedores como fundamental para o enfrentamento das drogas é a legislação. “O fato de a droga ser ilegal não diminui o consumo, mas traz outras consequências, como o mercado ilegal. Também tem que haver mudança no referencial da Justiça”, disse Pedro Gabriel, acrescentando ainda que é importante trabalhar com o conceito de redução de danos, ou seja, oferecer tratamento mesmo àquelas pessoas que não querem deixar as drogas imediatamente. “A essas pessoas também tem que ser oferecida a proteção contra a situação de vulnerabilidade causada pela droga”, disse.
O desembargador Sérgio Verani fez um breve histórico sobre a criminalização do tráfico e do uso de drogas no Brasil. De acordo com o Código Penal de 1890, era crime a venda de substância venenosa. Em 1921, um decreto alterou o código acrescentando que a pena por essa venda seria agravada se a substância fosse entorpecente. A partir de 1940, o tráfico de drogas passou a ser classificado como crime, de acordo com o artigo 281 do novo Código Penal, mas ter a droga para uso próprio ainda não era criminalizado. “Em 1968, após a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que dava poderes absolutos ao presidente da República, foi publicado o Decreto 385 (26/12/1968), que alterou o artigo 281, e criminalizou o uso das drogas, estabelecendo a mesma pena para o tráfico e o uso de drogas. Essa é uma lei violadora do ponto de vista do direito penal porque a lei não pode intervir nas opções pessoais de cada um”, explicou Verani.
Em 1971, a Lei 5.726 criou a internação com tratamento psiquiátrico para os infratores viciados. Cinco anos depois, entrou em vigor a Lei 6.368, que estabeleceu diferenças entre a punição do usuário e do traficante.
A legislação atual (Lei 11.343) foi promulgada em 2006. Essa lei aumentou a pena por tráfico e manteve como crime o uso de drogas, mas sem a pena de prisão. Foram estabelecidas punições como prestação de serviços, medidas educativas e advertência. “Não tem mais a prisão, mas permanece o estigma, o preconceito, o usuário continua respondendo a processo. A criminalização traz resultados danosos à pessoa dependente, as consequências são absurdas. Há presos condenados por tráfico com 1g de cocaína. Com isso, são condenados a ficar no sistema penitenciário. A população carcerária brasileira hoje é formada em grande parte por pessoas presas por tráfico e não são grandes traficantes não, são ‘vaporezinhos’, usados como mão de obra barata e descartável”, destacou Verani. “No Brasil, e principalmente no Rio de Janeiro, há uma política de extermínio, que é realizada há anos. E os mortos não são bandidos, mas são considerados criminosos. Temos que enfrentar essa questão com compreensão, com escuta. Nenhum país pode conviver com o extermínio, principalmente contra os jovens, que, quando não são mortos, são presos”.
Curso
A mesa-redonda ‘Drogas e a Sociedade Contemporânea Brasileira’ fez parte da abertura do Curso de Atualização Profissional em Atenção ao uso de prejudicial de álcool e outras drogas. Participam do curso 45 trabalhadores dos serviços de saúde de diversos municípios dos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo.
O curso tem 120 horas-aula e será encerrado no dia 28 de maio. Seu objetivo é proporcionar aos alunos as informações necessárias para uma compreensão ampla do fenômeno do uso prejudicial de álcool e outras drogas, instrumentalizando-os para atuar criticamente no âmbito da Saúde Mental. O curso, que aborda temas como Políticas Públicas, Reforma Sanitária e Psiquiátrica e a legislação nacional sobre drogas, é destinado a profissionais de nível médio da rede SUS que atuem preferencialmente na área de álcool e outras drogas.
O curso é realizado em parceria com a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde, mediante convênio para fortalecimento das ações do Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (Pead 2009-2010), instituído pelo Ministério da Saúde. A prioridade do Pead está direcionada para os 100 maiores municípios brasileiros, com população superior a 250 mil habitantes (incluídas todas as capitais brasileiras), além de sete municípios de fronteira. Juntos, esses municípios concentram 41% da população do país e neles estão os maiores problemas na área de consumo nocivo de álcool e drogas.
Leia matéria de capa da Revista Poli sobre Drogas
Uso de drogas é tema de debate na Escola Politécnica
Mesa-redonda realizada na Escola reuniu representantes do Ministério da Saúde e da Justiça.
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz |
20/05/2010 08h00
- Atualizado em
01/07/2022 09h47