Cerca de 735 milhões de pessoas no mundo .passaram fome em 2022, segundo relatório .‘O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2023’, produzido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU). Ao mesmo tempo, em 2020, dois bilhões de pessoas não tiveram acesso à água potável e 3,6 bilhões a saneamento seguro. Um olhar para o futuro pode ser ainda mais alarmante, já que a demanda urbana por água deve aumentar 80% até 2050, de acordo com o relatório ‘Parcerias e cooperação para a água’, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco/ONU). Na esfera ambiental, o que se observa é uma crise climática que tem gerado eventos extremos com maior frequência e intensidade do que jamais se viu, apesar de inúmeros protocolos assinados pelos países ao longo das últimas décadas com o objetivo de conter a emissão de gases de efeito estufa na atmosfera e estimular o desenvolvimento sustentável.
É neste contexto que o Ecossocialismo dá seus primeiros passos na década de 1960, como um movimento que entende a crise ecológica como parte de uma crise civilizatória e defende que o enfrentamento a essas questões passa pela construção de uma sociedade democrática e igualitária. No livro ‘O que é o socialismo’, Michael Löwy, um dos pesquisadores e militantes que se tornou referência nesse debate, explica que se trata de uma “corrente de pensamento e ação ecológica” que, a partir da tradição marxista, quer demonstrar que a lógica do mercado e do lucro que caracterizam o capitalismo é incompatível com a proteção ambiental. E é precisamente isso que há de novo na junção do prefixo ‘eco’, com o substantivo ‘socialismo’. “Há um entendimento de que o capitalismo é impositivamente expansionista, irremediavelmente destrutivo e tragicamente incontrolável”, explica Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz.
Capitalismo e suas impossibilidades ecológicas
Baseado na observação do que tem acontecido ao longo das últimas décadas, o que a palavra ‘socialismo’ presente no conceito chama a atenção é que as sucessivas tentativas de conciliar interesses ambientais com o capitalismo não geraram resultados satisfatórios. Exemplo disso são as Conferências das Partes (COP), que há 30 anos discutem as questões do clima no âmbito da ONU e a Cúpula da Terra, mais conhecida como Rio 92. “Sabe qual foi o resultado disso? Nenhum. Não houve diminuição das emissões globais, a não ser por dois episódios de crise: em 2012 (com uma crise econômica global) e em 2020, primeiro ano de pandemia. Ou seja, aconteceu como fruto de uma profunda desestabilização econômica”, afirma Eduardo Sá Barreto, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (Niep-Marx). E como o decrescimento econômico é incompatível com a sociedade capitalista, apesar da melhora de indicadores ambientais, quando ele acontece, todos se prejudicam. “Não só os capitalistas, [mas também] os trabalhadores. Todo mundo é impactado. Não é à toa que a gente chama decrescimento de crise, recessão, depressão”, explica Sá Barreto, ressaltando, no entanto, que essa “impossibilidade de decrescer é circunscrita à lógica do capital”.
Na base do Ecossocialismo está uma crítica ao movimento, cada vez mais difundido, do ‘capitalismo verde’ ou ecocapitalismo, que aposta na redução da crise ambiental atrelada ao desenvolvimento econômico e à lógica do mercado. Práticas como compensação e intercâmbio de carbono entre nações que geram mais gases de efeito estufa, produtos com rótulos ecológicos, além de investimento em energia renovável são alguns exemplos de medidas que, apesar de ‘venderem uma ideia’ sustentável, na avaliação dos ecossocialistas nada mais fazem do que promover aquilo que se pretende reduzir, garantindo um crescimento econômico a partir da exploração do meio ambiente. “Os créditos de carbono se resumem na precificação da poluição, na medida em que empresas que possuem um nível de emissão alto e supostamente poucas opções para a redução podem comprar créditos de carbono para compensar suas cotas de emissões. Na verdade, eles têm se tornado um sinal verde, uma licença para continuar poluindo”, afirma Pessoa. No Brasil, explica ainda o professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, nesta ótica do capitalismo verde, empresas nacionais e estrangeiras estão sendo denunciadas e processadas por suspeita de ilegalidades, grilagem de terras, fraudes, uso de documentos sem validade, uso abusivo de poder sobre os territórios e mesmo violação dos direitos humanos.
Ecologia no século 19?
Alexandre Pessoa explica que o Ecossocialismo propõe a aproximação das ciências ecológicas com a teoria, as lutas, as conquistas e o legado do socialismo, à luz do que ele chama de “ecologia marxista”. Mas no século 19, quando Marx desenvolvia seus trabalhos, a questão ambiental não exercia o mesmo impacto na sociedade como nos dias de hoje. Os ecossocialistas argumentam, no entanto, que, ainda que não coloquem a questão ecológica no centro de seus debates, seus escritos, principalmente os da crítica à economia política, fornecem embasamento para uma nova tradição de crítica ecológica da sociedade capitalista. Um ponto central da obra de Marx para esse debate, na avaliação de Alexandre Pessoa, é a constatação, já no século 19, de que “a produção capitalista, por meio da exploração humana, resultava no esgotamento dos solos e do trabalhador” e a compreensão de que a relação entre seres humanos e natureza deve ser de “reciprocidade”.
Eduardo Sá Barreto destaca também que dos textos de Marx se extrai, por exemplo, uma elaboração ainda atual sobre a “agricultura capitalista”. “Marx percebe muito rapidamente que ela exibia uma ruptura [em relação às práticas anteriores], um padrão e uma tendência que gerava elementos de instabilidade, de desvio, na garantia das condições de reprodução, que acontece devido à predileção do capital por grandes aglomerações urbanas”, afirma. Isso porque é nas grandes cidades que as mercadorias circulam com mais facilidade e encontram mercado consumidor, tornando-se economicamente viáveis. Como esses centros urbanos precisam ser abastecidos por uma produção que vem do campo, isso acaba por provocar uma ruptura no ciclo de nutrientes, tanto do ponto de vista do empobrecimento do solo, que não recebe os resíduos deste produto agrícola para recompor a fertilidade do solo, quanto de um acúmulo de resíduos poluentes decorrentes do consumo nessas cidades. Pessoa complementa: “Ele [Marx] observa que [a relação das] cidades com as áreas rurais é insustentável, na medida em que elas retiram da natureza as suas fontes de energia e matéria, no único sentido de prover os centros urbanos, o que promove um desequilíbrio ecológico das áreas fornecedoras do alimento e, por sua vez, das cidades, que se traduz em acúmulo de poluentes”.
Sá Barreto destaca ainda a importância d’O Capital, obra de maior peso de Marx, para essa corrente. “Nela, há uma riqueza de categorias que, embora não tratem diretamente de meio ambiente, podem ser mobilizadas para elaborar uma crítica ecológica da sociedade capitalista. A teoria do valor, por exemplo, permite mostrar que não só o capitalismo tem sido destrutivo até aqui, mas, mais importante que isso, que ele não pode não ser destrutivo”, afirma.
Coletivo x individual
Como ferramenta de luta, o Ecossocialismo propõe a organização de todas as parcelas de movimentos sociais que estão sucumbindo diante da destruição ecológica causada pelo avanço do capital. E isso inclui, segundo Pessoa, os operários, os trabalhadores precarizados, indígenas, camponeses sem terra, sem teto, sem trabalho e os sem direitos, além de movimentos ambientalistas e de defesa da Saúde Pública, o ecofeminismo, os movimentos agroecológicos, movimentos antirracistas e antifascistas. “É a partir desse contingente, da luta concreta, que é possível enfrentar essa escalada de destruição, de crise do metabolismo socioecológico que inevitavelmente já nos apresenta um mundo mais hostil”, afirma.
Para além dos movimentos coletivos, há ainda a pauta que passa a ocupar o cotidiano das pessoas comuns, com espaço nas páginas de jornais e debates públicos, sobre as mais variadas formas de como cada um pode contribuir para enfrentar os problemas ambientais: banhos mais curtos, uma maior preocupação com o descarte e a separação de lixo, carros eletrônicos não poluentes e até mesmo uma redução na compra de equipamentos eletrônicos devido à impossibilidade de reciclar certos componentes. Mas uma das prioridades da concepção Ecossocialista é exatamente apontar os limites dessas iniciativas individuais para a solução da crise ambiental em curso.
Os dois pesquisadores ouvidos pela reportagem defendem que essas medidas não devem ser ignoradas, mas sem deixar de ressaltar que, em esfera global, os desafios são bem mais complexos. “Vamos supor que eu percebi que estou consumindo muito. [Reduzir o consumo] está ao meu alcance, e levando ao limite, ao alcance de um país inteiro. Onde é que está o ‘calcanhar de Aquiles’ desse raciocínio?”, pergunta Sá Barreto. “Está em supor que isso possa se multiplicar e se generalizar a ponto de provocar uma mudança geral no padrão de consumo. Por que isso não pode acontecer? Porque isso feriria de morte a dinâmica reprodutiva da sociedade capitalista. A minha alteração [de padrão de consumo] é tolerável, a sua também. O que não é tolerável é a soma total do consumo que precisa ser, do ponto de vista da reprodução do capital, crescente em escala, em abrangência e em velocidade”, explica. Alexandre Pessoa completa, situando como a sobrevivência do capitalismo depende da lógica exatamente oposta: “Veja o exemplo do celular, que é trocado, antecipadamente, pelas pessoas não em decorrência da vida útil, mas como toda uma estratégia de marketing e de incorporação de novas funções, que estabelece uma relação de dependência tecnológica, de criação constante de novas necessidades, para que se possa gerar maior acúmulo de capital. A consequência disso é um volume de resíduos descartáveis que traz impactos avassaladores”.
O futuro a quem pertence?
O panorama das próximas décadas não é otimista. Ainda assim, é preciso agir - afinal, mesmo sabendo que seu objetivo não é plenamente realizável no presente da sociedade capitalista, o Ecossocialismo é também um programa de reivindicações para a luta imediata. Movimentos e organizações vêm denunciando a crise em andamento e propondo novas formas de enfrentar esse cenário. Debater soberania alimentar como um direito da população a decidir de que forma serão organizados, produzidos e distribuídos os alimentos, passando pela relação direta com outras pautas, como a Reforma Agrária Agroecológica, políticas públicas que favoreçam uma democratização no direito à cidade, representada pela Reforma Urbana, são algumas das formas que os ecossocialistas defendem para se construir o caminho para uma nova sociedade.
E este é um movimento que deve ser feito o quanto antes, visto que as consequências das crises ambientais são cada vez mais alarmantes e perceptíveis. É neste sentido que o professor da UFF alerta que, ainda que o mundo acordasse amanhã num sistema diferente do capitalismo, sob a ótica do Ecossocialismo, o futuro, ainda assim, seria delicado. Isso porque, segundo Sá Barreto, o cenário que está se formando é de um mundo de escassez absoluta, onde não haverá excessos de produção ou consumo, nem será possível garantir a plena satisfação de necessidades individuais. “A gente costuma ter a expectativa de que o mundo amanhã vai ser parecido com o mundo de hoje. Mas o mundo que está se formando, para daqui a 20, 30, 40 anos, é um mundo de mudança exponencial, praticamente irreconhecível”, afirma, para então concluir: “Tudo isso só acentua a urgência de uma via que, a partir de uma ruptura histórica com o capitalismo, abre as possibilidades para uma transição ecossocialista”.