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GEFM

O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), completou 30 anos de atuação em 2025, com 65.598 pessoas resgatadas do trabalho escravo e 8.483 ações fiscais realizadas, conforme dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no início deste ano.
Giulia Escuri - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2025 11h34 - Atualizado em 01/10/2025 11h34

Luiz Silveira/Ag. CNJ

No início da década de 1990, Pureza Loyola, conhecida como Dona Pureza, mãe de cinco filhos, deixou sua casa em Bacabal, no Maranhão, para procurar o seu caçula, Abel, que havia partido em busca da sorte como garimpeiro. Durante três anos, ela percorreu garimpos, carvoarias e zonas rurais do Maranhão e do Pará tentando localizá-lo. Nesse período, descobriu um sistema generalizado de trabalho forçado voltado para a derrubada de grandes áreas da Floresta Amazônica e a formação de pastos para o gado. Arriscou a própria vida ao registrar, com uma câmera e um gravador o trabalho escravo no interior das fazendas e, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), denunciou as práticas de exploração. Em 1993, conseguiu encontrar Abel com vida e libertá-lo de uma fazenda no sul do Pará, onde ele era mantido em regime de escravidão. Em 1997, ela recebeu o prêmio Anti-Slavery Award, concedido pela organização britânica Anti-Slavery International, e, 25 anos depois, sua história virou filme: “Pureza”, com direção de Renato Barbieri.

A luta de Dona Pureza é apenas um exemplo que ajudou a impulsionar o reconhecimento, por parte do governo brasileiro, da existência de trabalho escravo no país em 1995. “Com a redemocratização e o crescimento das pressões da sociedade civil, além das denúncias que resultaram em processo na CIDH [Comissão Interamericana de Direitos Humanos], o Brasil assumiu o compromisso de implementar uma política pública de combate ao trabalho escravo”, explica o auditor fiscal do trabalho Marcelo Campos. Como resultado, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que completa 30 anos de atuação em 2025, com 65.598 “Abéis” resgatados do trabalho escravo e 8.483 ações fiscais realizadas, conforme dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no início deste ano.

Instituído pelas Portarias nº 549 e 550 do MTE, ambas de 14 de junho de 1995, o GEFM é vinculado à Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). Sua missão é verificar denúncias in loco e libertar trabalhadores submetidos a situações de escravidão — inclusive em áreas de difícil acesso.

Em 2016, o GEFM foi reconhecido pelas Nações Unidas como uma ferramenta fundamental no combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil. “O Grupo é importante porque o trabalho escravo começa a ser percebido em lugares em que o Estado não acessava, por exemplo, o interior da Amazônia”, explica Natalia Suzuki, jornalista e coordenadora do programa “Escravo, nem pensar!”, iniciativa da ONG Repórter Brasil. Ela completa: “A importância disso é que o Grupo Móvel começou a chegar a lugares onde os trabalhadores eram escravizados e resgatá-los, como ainda tem resgatado. Ele tem uma tecnologia distinta, tão inovadora que continua vigente: aprimorado, melhorado, mas que, na sua essência, continua igual”.

Mas, afinal, o que faz?

“O GEFM executa a política pública. Basicamente vai a campo a partir de denúncias para realizar a fiscalização”, explica Marcelo Campos, que integra o Grupo desde sua criação. Ele completa: “Inicialmente, essas equipes eram compostas por auditores fiscais do trabalho, pelo Ministério Público do Trabalho [MPT] e pela Polícia Federal [PF]. Ao longo desses 30 anos, essa composição foi se fortalecendo, com a entrada de outras instituições”.

Atualmente, o GEFM pode contar com a participação de diversos órgãos federais, a depender da operação — como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e também órgãos estaduais.

Campos relembra que, no início, “as denúncias vinham basicamente da CPT, que tem um grande protagonismo nessa questão na sociedade civil, mas também de federações e sindicatos de trabalhadores rurais”. Hoje, os canais de denúncia se multiplicaram. Além da CPT, é possível denunciar casos por meio do Disque 100, do Sistema Ipê de Trabalho Escravo, da PF e do próprio MPT, que também possuem sistemas próprios para recebimento dessas informações.

Segundo Campos, todas as denúncias que apontam possível ocorrência de trabalho escravo são encaminhadas ao MTE, especificamente à SIT. “Se houver indícios suficientes, ela é repassada para uma das equipes do Grupo, que são coordenadas nacionalmente pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo [Detrae], em Brasília”, relata.

As ações, geralmente, duram cerca de dez dias e costumam abranger de três a quatro denúncias em uma mesma região. A equipe identifica as pessoas envolvidas e coleta informações que possam comprovar a ocorrência de trabalho escravo contemporâneo. Essa caracterização é feita com base em quatro hipóteses previstas no artigo 149 do Código Penal, que não precisam ocorrer simultaneamente para configurar o crime: o trabalho forçado, quando o trabalhador é obrigado a prestar serviços contra a própria vontade, por meio de ameaças, coerção, violência ou retenção de documentos; a jornada exaustiva, com turnos excessivos, ausência de pausas, descanso insuficiente e pressão abusiva por produtividade; as condições degradantes, caracterizadas por alojamentos precários, alimentação inadequada ou estragada, falta de água potável e ausência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs); e, por fim, a restrição de locomoção, quando o empregador impede que o trabalhador deixe o local de trabalho.

“Se uma ou mais hipóteses forem confirmadas, caracterizamos o trabalho escravo. O empregador é notificado, a atividade é interrompida e exigimos que os trabalhadores fiquem em um local adequado, com alimentação garantida, durante toda a ação”, afirma Campos. Ele explica que o empregador deve pagar todos os direitos trabalhistas devidos — como salários, férias e verbas rescisórias —, o que costuma levar cerca de dez dias. “Ao final, os trabalhadores retornam para casa com todos os direitos. Recebem um seguro-desemprego especial, com três parcelas de um salário-mínimo. Os dados levantados durante a ação são encaminhados aos órgãos públicos, especialmente à assistência social dos estados de origem das vítimas, para que políticas públicas compensatórias possam ser oferecidas”, esclarece.

Já os empregadores são autuados. Os auditores fiscais elaboram um relatório detalhado com as provas e o encaminham ao MPT, à PF e ao Ministério Público Federal (MPF), para que as instituições adotem as medidas cabíveis. “Se os autos de infração forem confirmados, além das multas, o nome do infrator é incluído na Lista Suja do trabalho escravo”, diz Campos. A versão mais recente da Lista, atualizada semestralmente pelo MTE, traz 745 nomes de empregadores.

Desafios de erradicar o trabalho escravo

Apesar de o GEFM ter resgatado mais de 65 mil pessoas do trabalho escravo ao longo de sua atuação, esse número revela os desafios para a superação do problema. “Desde 1888, a legislação brasileira veda, do ponto de vista formal, a prática da escravidão no Brasil, mas percebemos que a escravidão contemporânea é uma chaga ainda aberta”, avalia Lucas Reis, auditor fiscal do trabalho e adjunto de inspeção do trabalho da diretoria executiva do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).

Ano após ano, milhares de trabalhadores continuam sendo resgatados. “Na década de 1990, era um orgulho dizer que tantas pessoas tinham sido resgatadas, porque elas estavam esquecidas”, afirma Natalia Suzuki. Mas, com quase 30 anos de política, a pesquisadora considera que o cenário atual é alarmante: “Dizer que ainda continuam os resgates e que já somam mais de 60 mil pessoas deveria ser motivo de vergonha”. Para ela, a política centrada apenas no resgate demonstra sua ineficiência: “A política para erradicação do trabalho escravo é um fracasso. Continuar resgatando não contabiliza como sucesso da política”.

A quantidade de resgates pode ser interpretada de duas formas, segundo Reis: “Por um lado, revela o sucesso das políticas de combate ao trabalho escravo — e não só do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, mas também de outras iniciativas correlatas, como a Lista Suja. Por outro, expõe a insuficiência do Estado brasileiro em erradicar o trabalho escravo”.

Outro desafio é a oposição de determinados grupos políticos e econômicos. “Não só o Grupo Móvel, mas também a própria política pública e a Lista Suja sofrem ataques da bancada ruralista e de setores empresariais específicos”, revela Marcelo Campos. Nesse contexto, o fortalecimento da política pública depende da orientação dos governos. “Por exemplo, o governo Michel Temer realizou uma reforma trabalhista profundamente precarizante. E o governo Bolsonaro chegou a declarar que um de seus objetivos era levar a Auditoria Fiscal do Trabalho praticamente à extinção”, lembra o auditor.

Falta de auditores compromete fiscalização

Segundo dados oficiais do MTE, em 2024 o Brasil resgatou 2.004 trabalhadores em condições de escravidão — número inferior aos 3,2 mil de 2023 e aos 2,5 mil de 2022. Isso não significa, necessariamente, que o trabalho escravo tenha diminuído. “Esse é o pior erro que se pode afirmar. O trabalho escravo, infelizmente, continua igual em todos os setores. Não houve melhoria em nenhuma cadeia produtiva ao longo dos anos”, afirma Natalia Suzuki.

Já para Reis, a queda no número de resgates revela o déficit de profissionais da categoria em atividade. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), é necessário haver um auditor fiscal do trabalho para cada 20 mil pessoas economicamente ativas. Com base nesse parâmetro, o Brasil deveria contar com 5.441 servidores. No entanto, está longe de alcançar essa meta: atualmente, são apenas 1.888 auditores em exercício no país. “Com menos auditores, temos menos possibilidade de identificar irregularidades, tanto no campo quanto nas cidades”, explica.

Em 2023, o MTE disponibilizou 900 vagas para auditor fiscal do trabalho por meio do Concurso Público Nacional Unificado (CNU). No entanto, os aprovados ainda não tomaram posse e, mesmo após a nomeação, o número seguirá abaixo da recomendação da OIT. “O ideal é que os excedentes também sejam chamados, para que possamos recompor o quadro”, alerta Reis, apoiando a reivindicação do Sinait.

Neoliberalismo e trabalho escravo

Em dezembro de 2024, uma força-tarefa do GEFM encontrou 163 chineses trabalhando em condições análogas à escravidão nas obras da indústria automobilística BYD, em Camaçari, na Bahia. A empresa e a prestadora de serviços responsável pela construção, a Jinjiang, foram responsabilizadas e notificadas pelos auditores fiscais do trabalho.

Para Reis, esse é um caso emblemático que revela os desafios do combate ao trabalho escravo no contexto neoliberal. Segundo ele, o avanço do neoliberalismo e a ampliação das redes de produção são os principais fatores que diferenciam o trabalho escravo atual daquele identificado há 30 anos. “Hoje, o trabalho escravo nem sempre ocorre em um vínculo direto entre o trabalhador e a empresa que explora sua mão de obra. Muitas vezes, se dá ao longo de complexas cadeias produtivas, por meio de empresas terceirizadas ou até quarteirizadas”, explica.

Segundo Suzuki, “a marca do trabalho escravo contemporâneo está nas condições degradantes de trabalho, que ainda são amplamente disseminadas”. Ela ainda reforça: “Não teve nenhuma cadeia produtiva que se esforçou para limpar e retirar o trabalho escravo das suas etapas de produção”. Uma demonstração de que, apesar dessas novas relações, o trabalho escravo ainda está presente em todos os segmentos no Brasil.