Um homem jovem, mulçumano, com a mente orientada para o mal e disposto a qualquer sacrifício pessoal, inclusive a própria morte. A simplificação é grosseira, mas é um resumo do que muita gente tem na cabeça quando o assunto é terrorismo. Embora o que seja considerado um terrorista atualmente, principalmente após os recentes atentados em Paris ou o 11 de setembro em Nova York, guarde alguma relação com as características acima, a definição de terrorismo está muito longe de se resumir em um estereótipo de homem-bomba.
Vamos começar fazendo um esforço de limpeza desse campo minado para mostrar que não há apenas mocinhos e bandidos de lados opostos. Um retorno à história nos mostra que os atores que atemorizaram populações em outras épocas tinham motivações diferentes das atuais. O professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Arantes, nos ajuda a entender. Segundo ele, é a partir do século 19 que o mundo começa a presenciar atentados terroristas, embora com motivações bastante diferentes das atuais e com focos distintos. É o caso do assassinato de czares russos por grupos anarquistas. Mas é no século 20 que alguns teóricos consideram encontrar as origens do atual terrorismo, após o conjunto de mobilizações que ficaram conhecidas como o Maio de 68 francês. Para Paulo Arantes, há derivações do maio de 68 que trazem alguns aspectos importantes para a reflexão acerca do tema. “O maio de 68 começou no outono do ano seguinte na Itália, e culminou com as Brigadas Vermelhas uma década depois. Lá sim o confronto social e político foi de fato até as últimas consequências. É aí que aparecem vários outros grupos de luta armada clandestinos e outros de extrema-direita, e, ainda, grupos paramilitares armados pelo Estado. De modo que o circo do terrorismo foi de fato montado na Itália naquele momento”, afirma. Arantes lembra que na Alemanha a história se repetiu com a criação do movimento clandestino RAF – Fração do Exército Vermelho.
Terrorismo de Estado
É aí que entra em cena outra forma de terrorismo: o praticado pelo Estado. “Tanto na Alemanha, quanto na Itália, nessa mesma década, é que se começou a montar o aparato contemporâneo do estado de exceção. Eles apertaram e nunca mais desapertaram”, salienta Paulo Arantes. O professor explica que começa aí a legitimação de um Estado repressor, que passa por cima dos direitos civis, como o direito à manifestação, e as liberdades individuais.
Trazendo a discussão para o Brasil, Arantes ressalta que as práticas usadas para reprimir os opositores durante a ditadura militar brasileira – aliás, opositores também chamados de terroristas pelo regime – foi importada da França, após os franceses perderem a batalha na Indochina, contra a guerrilha popular de inspiração maoista. Foi aí que o exército francês criou uma teoria de contrainsurgência que, depois, seria aplicada na Argélia no início dos anos 1960. “Na Argélia, um exército ocidental francês aplica sistematicamente a tortura na contrainsurgência e a réplica da FLN [Frente de Libertação Nacional, movimento argelino] é justamente o atentado que passou a ser chamado de terrorista, que poderia ser suicida, embora raramente fosse. Quando terminou a guerra da Argélia já estava consagrada a expressão ‘terrorista’ para designar a resposta violenta da luta armada à repressão, ao terrorismo de Estado”, conta. Também tem início nos anos 1960 a atuação do grupo irlandês IRA e do espanhol ETA, que usavam a tática de enfrentamento armado e atentados para reivindicar independência territorial.
Neste ponto da história, já não há mais mocinhos e vilões em lados diferentes. “O terrorismo de Estado é o ‘irmão gêmeo’, o principal interessado no terrorismo não estatal. Os dois tipos precisam de populações aterrorizadas. O Estado, no momento em que tem uma população aterrorizada por um agente externo, que na verdade no caso dos recentes atentados na França é interno, ele tem a faca e o queijo na mão para fazer o que quiser”, reforça Paulo Arantes. Ele comenta que uma pesquisa recente mostrou que 84% da população francesa está de acordo com restrições a liberdades fundamentais desde que eles ganhem mais segurança.
O professor do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Demian Melo, acrescenta que o terrorismo, de Estado ou não, é uma construção política ideológica que não pode ser dissociada do capitalismo. “O Estado como aparelho de terror, de repressão, está no cerne da existência da sociedade capitalista. E os grupos que fazem oposição por qualquer motivo ao Estado eventualmente já recorreram a atos de terror para combatê-lo”, salienta.
Estado Islâmico
Para chegarmos aos dias atuais, Paulo Arantes lembra que tanto o IRA e o ETA, como também os ativistas alemães e parte dos italianos, se inspiraram na Frente de Libertação da Palestina, movimento que atuava na região após a ocupação israelense do território palestino em decorrência da Guerra dos Seis Dias em 1967. E, inclusive, participaram de treinamentos em território palestino. E é justamente o Oriente Médio que abriga o infame grupo Estado Islâmico, que atualmente recebe todos os holofotes por ter reivindicado a autoria dos atentados em Paris, embora eles tenham sido concebidos autonomamente por cidadãos franceses e belgas. “Existe uma desintegração geral – no Iraque e em parte da Síria depois da malograda Primavera Síria – e há porções de território com petróleo e sem presença nenhuma de Estado oficial. Então este grupo organiza um sistema de extorsão de tributos e oferece proteção entre aspas, porque a proteção e a ameaça vêm do mesmo lugar. Não deixa de ser uma máfia que comercializa petróleo”, descreve Paulo Arantes.
Para Demian Melo, o Estado Islâmico mostra o quanto estes grupos estão integrados ao sistema capitalista. “É curioso que todos esses grupos são bancados por gente que ganha dinheiro com petróleo, que está inserida no circuito internacional do capitalismo”, acrescenta. Para o professor, é preciso, entretanto, deixar de lado a visão simplista de que para que o Estado Islâmico ou outros grupos violentos existam é preciso haver um acordo com as principais nações que comandam o mundo atualmente. “O capitalismo não é resultado de conspiração com planejamento central. Podemos fazer a análise que todos os ataques terroristas de 11 de setembro até hoje sempre acabam beneficiando o lado mais conservador da política: o 11 de setembro foi um presente para o Bush e esse atentado agora em Paris está sendo um presente para a extrema direita européia. Entretanto, não precisa necessariamente a Marine Le Pen [deputada francesa de extrema-direita] ter sentado para negociar com o Estado Islâmico para que tenha acontecido o que aconteceu, embora tacitamente essa ação a tenha beneficiado”, observa. Demian faz ainda um alerta: “A cada ação dessa se fortalece um polo mais conservador dentro dos Estados. Ou seja, isso não favorece a luta dos trabalhadores e contra o capitalismo. Se alguém de forma ingênua acredita que esse tipo de ação é eficiente contra o sistema, está muito enganado, acaba sempre fortalecendo-o”.
Lei antiterrorismo no Brasil
E por falar em relações entre o sistema capitalista e o terrorismo, em nosso país está prestes a ser aprovada uma lei antiterrorismo motivada, sobretudo, pela pressão de organismos internacionais que teriam como trabalho a fiscalização desse dinheiro que banca o terrorismo. Até o fechamento desta reportagem, o projeto de lei 2016/2015, apresentado pela Presidência da República, já tinha sido aprovado pela Câmara e Senado, mas após mudanças feitas pelos senadores estava aguardando nova apreciação dos deputados. Na justificativa, os ministros José Eduardo Cardozo (Justiça) e Joaquim Levy (Fazenda), autores da proposta, apontam a necessidade de adequar o ordenamento jurídico brasileiro aos tratados internacionais assinados pelo Brasil. O texto afirma ainda que com a nova legislação, o país cumpre acordos “principalmente em relação a organismos como o do Grupo de Ação Financeira (GAFI), entidade intergovernamental criada em 1989, que tem a função de definir padrões e implementar as medidas legais, regulatórias e operacionais para combater a lavagem de dinheiro, o financiamento ao terrorismo e o financiamento da proliferação e outras ameaças à integridade do sistema financeiro internacional relacionadas a esses crimes”.
Para Paulo Arantes, está aí, no entanto, uma grande contradição, já que esse dinheiro que financia os grupos terroristas só circula por conta da liberalização do sistema financeiro. “Esses grupos seriam impensáveis se não houvesse essa autonomização da finança globalizada nessas últimas três décadas. À medida que se abre esse canal, passa tudo por aí, inclusive dinheiro do Estado Islâmico”.
A professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e advogada do Centro de Assessoria Popular Mariana Criola, Fernanda Vieira, rechaça a necessidade de uma nova resposta legal do Estado Brasileiro para tipificar uma situação de terrorismo. “Há uma série de tipos penais que com certeza podem ser acionados para punir uma conduta terrorista, seja com resultado de morte ou de dano ao patrimônio”, defende.
Para a advogada, pode ser ainda mais danosa a criação de uma legislação desse tipo à medida que ela passa a enquadrar situações que não são de terrorismo. “Nós temos uma passagem histórica que mostra isso: até o papa Inocêncio 8º não havia o reconhecimento da Igreja da existência de bruxas. Quando ele libera a bula papal reconhecendo que elas existem passam a existir uma série de tribunais cujo objetivo era detectar, criminalizar e eliminar as bruxas. Então, não é que vão surgir terroristas, mas é que eles vão passar a existir porque o olhar do sistema judicial a partir da criação daquele tipo penal será de entender diversas condutas como terroristas”, aponta. “O problema é quem será enquadrado como terrorista: os movimentos sociais”, conclui. Ela alerta que isso já vem acontecendo em outros países que aprovaram legislações do mesmo tipo. No Chile, os índios Mapuche, que se opõe a projetos exploratórios em suas terras, estão sendo criminalizados como terroristas.
O texto aprovado na Câmara afirma que a lei não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em movimentações políticas, movimentos sociais ou sindicais movidos por propósitos sociais ou reivindicatórios. No entanto, o trecho foi retirado do texto aprovado no Senado. “A interpretação dessa lei será feita pelos juízes e nós já sabemos que eles não são garantistas. Haja vista o encarceramento em massa no país, a legitimação de operações sem mandado, entre outras situações. Sem esse trecho que tenta resguardar as manifestações, o projeto ficou muitíssimo pior”, critica Fernanda.
Para Demian Melo, a preocupação aumenta ainda mais se for levada em conta a onda conservadora vivenciada no país. “Até poucos dias atrás havia um acampamento pedindo intervenção militar em frente ao Congresso Nacional autorizado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Havia um sujeito armado no acampamento, deu tiro para cima no dia da manifestação da Marcha das Mulheres Negras e ninguém utilizou a pecha de terrorista para se referir a este cidadão ou ao movimento que estava ali. Entretanto, contra o Movimento Sem Terra, Sem Teto e outros movimentos sociais a idéia de terrorismo aparece com grande facilidade. Vai ser um golpe nos movimentos sociais”, alerta.