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Entrevista: 
Alvaro Bianchi

‘A ameaça maior paira sobre as conquistas sociais e trabalhistas do povo brasileiro’

Alvaro Bianchi é professor de Departamento de Ciência Política da Unicamp e um dos mais assíduos colaboradores do blog Junho, que vem discutindo a conjuntura política nos seus mais diversos aspectos desde muito antes do momento auge da crise. Nesta entrevista, ele analisa as consequências do impeachment para os trabalhadores. Defende que se trata de um golpe e que o papel da esquerda neste momento é tentar impedi-lo. Mas sem ilusões sobre o governo. “Não adianta continuar esperando uma guinada à esquerda”, afirma.
Cátia Guimarães, Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 06/04/2016 10h44 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A análise de quem tem comparecido às manifestações pró-impeachment e dos que não apoiam o governo, inclusive defendendo o impedimento da presidente, mostra um perfil variado. As classes populares, por exemplo, pouco se fizeram representar nas manifestações, mas aparecem entre os que avaliam mal o governo. Para os diversos segmentos, qual o papel da crise econômica na insatisfação com o governo e no crescimento de uma onda conservadora?

O caso que conheço melhor é o das manifestações na cidade de São Paulo. Na capital paulista o perfil social dos manifestantes em favor e contra o impeachment é menos variado do que se imaginaria, segundo os dados do Datafolha. Na manifestação do dia 13 de março em favor do impeachment 77% tinham ensino superior e no ato do dia 18, contra o impedimento, 78% possuíam o título. A média da cidade é de apenas 28%. Também são semelhantes em relação à renda: 50% no dia 13 e 46% no dia 18 ganhavam entre cinco e 20 salários mínimos. Por fim, a média de idade dos manifestantes é similar: 45,5 anos entre os manifestantes contra o governo e 38,9 anos nos atos contra o golpe. O que estes números indicam é que os mais pobres e os mais jovens não foram para as ruas. Em suma, é um perfil muito diferente das manifestações de junho de 2013. A  rejeição do governo de Dilma Rousseff está distribuída de maneira relativamente homogênea entre todas as classes de renda e grupos geracionais. Mas as classes sociais vivem de maneira diversificada essa rejeição. Entre os estratos superiores, aquilo que tenho chamado de low upper class, está a percepção de que tanto seus ganhos, como a distância que mantinham dos mais pobres diminuíram nos últimos anos. Sentem-se em uma situação de risco e imaginam que contribuem muito para o país com seus impostos, mas recebem muito pouco em troca. Por esse motivo o discurso anticorrupção é tão forte nesses setores sociais. Entre os estratos mais pobres, a inquietação tem uma origem diversa, ela se deve à frustração perante as expectativas não realizadas. Consideram que hoje estão melhor do que antes, mas sabem que não irão muito longe. Trabalharam, estudaram, endividaram-se,  fizeram sacrifícios inauditos, mas ainda assim não conseguem passar da barreira dos três salários mínimos. Os motivos que têm para rejeitar o governo atual são, portanto, muito diferentes. A insatisfação dos subalternos não pode ser vista nas ruas, mas está presente nas greves do setor de serviços, dos transportes, dos garis e de trabalhadores municipais, bem como nas ocupações das escolas pelos jovens estudantes. O ciclo grevista dos últimos anos ainda não se encerrou e tem uma dinâmica que envolve os setores mais precários com demandas defensivas tanto no setor provado quanto público. As percepções da crise e a reação a ela podem ser intensificadas pelo próprio desenvolvimento da crise. Toda a economia está sendo afetada pelo aumento da inflação e pela queda da atividade econômica. Pequenos e médios negócios fecham, as grandes empresas estão demitindo, o consumo cai, o desemprego aumenta, os reajustes salariais não acompanham a inflação. Enfim, a tendência não é a inquietação diminuir e sim aumentar.

Apesar de todas as muitas críticas ao governo Dilma, muitos partidos, entidades e movimentos sociais de esquerda têm se mobilizado contra o que vem sendo caracterizado como um “golpe”, em nome da “democracia” ou do “Estado democrático de direito”. Em que aspectos a violação da institucionalidade que está sendo identificada agora apresenta riscos concretos para os trabalhadores e não apenas para um governo específico?

As pessoas estão falando de um golpe de estado. Seja para dizer que vai ocorrer, seja para afirmar que não. No senso comum, golpe tem que ter tanques na rua, repressão violenta e tortura. Então não são poucos os que se atêm a essa visão caricatural para afirmar que não corremos risco de um golpe. Procurei recentemente definir o que é um golpe de estado. Considero que existe um golpe quando uma mudança institucional abrupta é promovida recorrendo a medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político. A direção do golpe de estado está no interior do próprio Estado, em setores da burocracia estatal. O que estamos vendo atualmente no Brasil é, exatamente, uma tentativa de depor a presidenta da República por meio de medidas e recursos excepcionais, transgredindo o funcionamento normal das instituições, ou seja, um golpe de estado. Nem sempre um golpe implica em uma mudança do regime político. Mas na medida em que tais golpes lançam mão de recursos não-ordinários contra o governo, estes recursos frequentemente também são utilizados contra a população. Se um ex-presidente da República pode ser ilegalmente conduzido coercitivamente a prestar depoimento, ao arrepio da lei, quais são as chances de um trabalhador poder reivindicar a proteção dessa mesma lei? Nenhuma.

Quais os riscos principais para os trabalhadores em cada uma das alternativas visíveis hoje para a saída da crise política?

Algumas pessoas têm afirmado que o Estado de direito encontra-se sob ameaça. Esta ameaça existe. Mas em algumas dessas narrativas da crise o Estado de direito assume formas idealizadas. Se o Estado de direito é o governo das leis e não dos indivíduos, nunca é demais lembrar que em nosso país as leis que deveriam proteger os cidadãos aplicam-se de maneira diferente às pessoas ricas e às pobres. Por isso eu prefiro dizer que a ameaça maior paira não sobre o Estado de direito e sim sobre o estado dos direitos, sobre as conquistas sociais e trabalhistas do povo brasileiro. A ameaça maior está, a meu ver, em que a frente política que defende o golpe pretende levar a cabo um programa radical de ajuste fiscal. O que essa frente tem deixado claro, e eles têm razão, é que o governo do PT não é capaz de promover os cortes nos direitos sociais e nos gastos públicos que eles desejam. Não é capaz seja porque nunca rompeu definitivamente seus laços com o movimento sindical, seja porque não tem a força necessária para isso no Congresso Nacional. Se olharmos a conjuntura política de maneira realista, seremos obrigados a admitir que os trabalhadores estarão em uma situação pior se uma frente PMDB-PSDB assumir o comando do Executivo. Não quero despertar nenhuma ilusão em um governo acovardado e subserviente às grandes corporações. É isso o que o governo de Dilma Rousseff é. Mas acho mais fácil derrotar o ajuste se Dilma for presidenta do que derrotá-lo se o presidente for Temer. Podem chamar isso de maquiavelismo, mas, nesse caso, eu direi que é isso mesmo.

Em meio a uma crise política dessa envergadura, o governo e o congresso têm aprovado ou anunciado pautas prejudiciais aos trabalhadores, como a lei antiterrorismo, o anúncio de um pacote de medidas que incluem até a demissão de servidores e a insistente defesa de uma nova reforma da previdência. Na tentativa de superar a crise, e se salvar do impeachment, o que os trabalhadores podem esperar dos próximos movimentos do governo?

O que a crise deixou claro é que o Partido dos Trabalhadores não quer governar contra os grandes empresários e os partidos conservadores. Às vezes dá a impressão de que prefere perder o governo a enfrentar os golpistas. A resistência até agora não passou de discursos em atos públicos. Quando o coronel Juan Domingos Perón foi preso na Argentina, em 1945, uma greve geral foi convocada. Mas no Brasil, até o momento, nem o governo nem a Central Única dos Trabalhadores ousaram falar em uma greve geral contra o golpe. A mobilização do governo é simplesmente retórica. Infelizmente, nem os discursos estão à altura dos acontecimentos. Na manifestação do dia 18 de março centenas de milhares de pessoas esperavam Luiz Inácio Lula da Silva declarar guerra contra o golpistas. E o que ele fez foi prometer paz e amor aos empresários e ao PMDB. Não adianta continuar esperando uma guinada à esquerda. É incrível que pessoas inteligentes continuem esperando que a presidenta Dilma vá reagir aos golpistas com um programa de reformas populares. O governo não fez isso quando contava com o apoio para tal. Não é agora, enfraquecido e rejeitado pela opinião pública que fará a reforma agrária, sobretaxará as grandes fortunas ou ameaçará os superlucros dos banqueiros. O que o governo tentará fazer é aplicar, na medida de suas poucas forças, uma agenda similar àquela de Michel Temer e costurar uma nova coalizão partidária. E para fazer isso utilizará os mesmos recursos que mobilizou até agora: concessões à agenda neoliberal e cargos para os partidos conservadores. Mas nas circunstâncias atuais não acredito que o governo tenha força para fazer o que quer, ou seja, cortar radicalmente direitos sociais.