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Entrevista: 
Carlos Eduardo Martins

‘A classe dominante brasileira como um todo apoia a queda do governo: a síntese de tudo isso é a Globo’

Carlos Eduardo Martins é sociólogo, professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ e do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional e pesquisador do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso). Chamado a contribuir com a análise da conjuntura atual, nesta entrevista ele enumera as razões do que considera um golpe em curso no Brasil, explica o papel ocupado pelos diversos segmentos sociais nos governos do PT e critica as opções da presidente Dilma Rousseff de penalizar as políticas sociais no enfrentamento da crise econômica. “A classe dominante brasileira quer muito mais do que conciliação”, diz.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 30/03/2016 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

No esforço de entender a conjuntura brasileira, atualizando com os últimos capítulos da conjuntura política, na sua avaliação, quais são os determinantes da crise atual?

Acho que essa é uma crise do modelo de acumulação no país, onde é protagônico o capital financeiro. E essa crise do modelo de acumulação foi tomada para si pelo governo Dilma na medida em que esse governo aprofundou sua aliança com esse segmento durante a crise econômica, que se articula também com a crise internacional, marcada pela queda dos preços das commodities. Então, essa crise econômica, que se aprofundou e foi tomada para si pelo governo determinou uma baixa popularidade desse governo, gerando, portanto, uma crise política. O governo Dilma é um governo de segmentos oriundos da esquerda brasileira, é uma articulação, portanto, entre segmentos oriundos da esquerda e o capital financeiro como setor fundamental da classe dominante brasileira. Então, ao tomar a aliança com o capital financeiro como o experimento fundamental do seu projeto de governo, o governo Dilma perdeu justamente a única coisa que garantia a ele a sua sustentabilidade, que é o apoio popular. Sem apoio popular diante da classe dominante, esta passou a investir e a conspirar abertamente pela queda do governo. O que nós estamos observando é justamente isso: um governo que tem origens na esquerda, que tem, ao mesmo tempo, uma política articulada com o capital financeiro, e faz algumas políticas populares, com avanços em algumas demandas populares como a elevação do salário mínimo, programas de renda mínimo e programas de empoderamento de segmentos populares, tal como a política de cotas na universidade pública. Nesse momento de crise econômica internacional, o governo não optou por uma política anticíclica, e sim por uma política pró-cíclica, que aprofundou as determinações externas, recessivas. Nesse momento, o governo perde a sua popularidade e a classe dominante brasileira se vê diante da possibilidade de ajustar conta com esses programas populares que ela não apoia.

Sua fala dá a entender que a classe dominante estava esperando o momento para romper com o governo do PT. Mas os críticos de esquerda, você inclusive, têm afirmado que o PT não governou contra a classe dominante. Como o próprio Lula não cansa de dizer, o empresariado nunca ganhou tanto dinheiro como no governo dele. Por que essa classe dominante quer, nesse momento, aproveitar a oportunidade da perda de popularidade para tirar o governo?

Porque não é um governo completamente da classe dominante. É um governo que os obriga a engolir certas políticas sociais que de alguma forma aumentam o espaço de poder de segmentos que não são oriundos da classe dominante. Tem-se, por exemplo, uma política em que, nas universidades públicas brasileiras, 50% dos ingressos já vêm de cotas sociais; se tem uma política de elevação do salário mínimo que entra em contradição com os altos níveis de desigualdade que a classe dominante sempre quis impor ao país. Essa política de valorização do salário mínimo está na contramão de tudo o que a classe dominante fez do golpe militar para cá. O que a classe dominante fez foi baixar o salário mínimo sistematicamente. No governo Fernando Henrique houve uma leve elevação, mas sem nunca reverter a tendência de queda que se impôs desde o governo militar. Então, mal ou bem, esse governo apostou numa expansão do consumo interno que está contra, digamos assim, a superexploração do trabalho que sempre foi um pilar do modelo de acumulação da classe dominante brasileira. E essa é uma das razões também da crise econômica que nós estamos vivendo. Porque essa é uma crise econômica que não se explica apenas por determinações externas. Nós não temos uma crise, por exemplo, no balanço de pagamentos: o país tem quase 400 bilhões de dólares de reservas. Por que há uma redução do crescimento e uma recessão? Em parte tem a ver com o fato de que o governo adotou uma política errada, uma política pró-cíclica de aumento da taxa de juros. Mas em parte tem a ver também com o fato de que o custo da força de trabalho aumentou para a classe dominante, e ela não tolera isso. Tanto que todo o chamado ‘Salto para o Futuro’ [proposta do PMDB] é uma política de flexibilização do mercado de trabalho, de terceirização completa das relações de trabalho, de desmonte da valorização do salário mínimo. O fato é que essa oportunidade que o governo Dilma deu, de aprofundar uma política recessiva nesse momento histórico, deu à classe dominante a grande chance de investir contra o governo.

O aumento real do salário mínimo elevou, sem dúvida, o custo da força de trabalho, mas a reação da classe dominante na sequência foi em grande medida apoiada por ações do governo, inclusive por votações do PT no Legislativo. Tivemos duas medidas provisórias, 664 e 665, que tiraram direitos importantes dos trabalhadores, que vem nesse movimento de reação da classe dominante. Na sua avaliação, houve de fato um momento em que as classes dominantes deixaram de ganhar nesse governo e a balança um pouco pendeu para o outro lado?

Não é que tenham deixado de ganhar. As classes dominantes continuam ganhando, só que há uma crise econômica no país. O golpe é produto de vários elementos. Primeiro, da oportunidade das classes dominantes brasileiras de se desvencilharem de um governo que fez políticas sociais, de expansão do consumo popular e de aproximação geopolítica com o Sul, num contexto em que esse governo tem baixa popularidade em função de adotar políticas recessivas, propugnadas pelo capital financeiro. Outro elemento é o medo dos efeitos de médio e longo prazo que as classes dominantes e as camadas médias têm de perderem a hegemonia político-cultural do país, medo do empoderamento de atores oriundos dos movimentos sociais e populares. Terceiro, aparentemente é baixo custo político institucional de realização do golpe, ao se mobilizar uma base de massas reacionária através da atuação do monopólio dos meios de comunicação e se institucionalizar o parlamentarismo, que imunizaria por muito tempo uma maioria político-institucional das esquerdas e centro-esquerdas. Por fim, o golpe é resultado do erro gravíssimo do PT e do governo Dilma de considerarem que a adoção das políticas do capital financeiro e agronegócio lhe garantia a governabilidade, quando o que lhe garante a governabilidade é o apoio popular. Os governos petistas nunca foram os preferidos pelo grande capital no Brasil. Eles foram tolerados em um contexto de forte crise de legitimidade de suas lideranças políticas tradicionais, mas ao exportar para os governos de centro-esquerda a crise do seu modelo de acumulação, a classe dominante vê a oportunidade de retomar a articulação com suas lideranças políticas tradicionais, reforçando a blindagem contra a recuperação das esquerdas através políticas de exceção e persecutórias. A classe dominante brasileira quer muito mais do que conciliação. Ela quer de fato dirigir o Estado. E nesse momento em que as políticas de conciliação falham, não dá para atender a todos: não dá para atender ao setor industrial, ao setor financeiro e às classes populares ao mesmo tempo. Então, nesse momento, o governo deveria fazer uma escolha.

E qual deveria ser essa escolha?

Seria o grande momento para o governo romper com o capital financeiro e dirigir o projeto de acumulação efetivamente em relação a algum tipo de desenvolvimentismo. Haveria a possibilidade de o governo Dilma construir uma base de apoio popular e no Congresso desde que, num contexto de crise internacional, redefinisse as relações com o capital financeiro, exigindo que ele pagasse os custos da crise. Mas o governo Dilma seguiu o caminho contrário e preferiu cortar parte de suas políticas sociais. O veto da presidente à auditoria da dívida pública aprovada pelo Congresso é o principal sinal disso: da possibilidade desperdiçada de articular uma aliança desenvolvimentista que penalizasse o capital financeiro em nome do desenvolvimento e da expansão do mercado interno e do consumo popular. Ao não fazê-lo, o governo deixou que o modelo de acumulação regido pelo capital financeiro fosse a pedra sagrada do processo de reestruturação em curso, alinhando os diversos segmentos da burguesia brasileira em torno da redistribuição negativa de renda e aprofundamento da superexploração do trabalho. O resultado é a perda de apoio popular e uma oportunidade extraordinária para a ofensiva da classe dominante no Brasil sobre o Estado. A classe dominante tem nesse momento a oportunidade de impor o parlamentarismo, como está tentando, por PEC [Proposta de Emenda Constitucional], o que faria com que as eleições diretas fossem banidas para a escolha do chefe de Estado. O que nos colocaria numa situação muito complicada porque a população brasileira já escolheu chefes de governo, na figura do presidente da República, que foram antagônicos às classes dominantes brasileiras, mas nunca houve um Congresso antagônico às classes dominantes brasileiras, o Congresso sempre teve a maioria conservadora. Então essa é uma oportunidade em que a classe dominante pode fazer uma ofensiva brutal, golpista, contra um projeto popular que colocará a esquerda numa situação muito complicada. Ainda que essa classe dominante vá ter que lidar com o fato de que, ao retirar um governo com segmentos oriundos da centro-esquerda, ela não vai resolver o problema do seu modelo de acumulação. Escolhendo o segmento popular como o que vai pagar o custo da crise, e ao mesmo tempo retirando os mecanismos de expressão da vontade popular e as esperanças populares com um governo próprio, o resultado dessa combinação, somado ainda à existência de um megaevento como as Olimpíadas no Rio de Janeiro, pode ser muito explosivo.

Você deu muito destaque ao capital financeiro como o setor que foi francamente beneficiado durante o governo Dilma. No entanto, neste momento, a Fiesp, que era apoiadora do governo Dilma e não é propriamente representante do capital financeiro, agora é uma das principais antagonistas. Como é que está essa divisão no interior do empresariado?

O capital industrial é o que está sendo mais afetado com a crise econômica, porque não há nenhuma política do governo nesse momento para os seus ganhos. Enquanto o setor rentista tem instrumentos financeiros de aplicação dos seus capitais, que estão sendo corrigidos bem acima da inflação pelo governo, não há nesse momento uma política específica para o setor industrial, na medida em que ele é afetado também por uma taxa de juros que reduz a possibilidade de investimento e, de outro lado, é pressionado por uma política de aumento do poder aquisitivo de setor de baixa renda. Na verdade, o capital industrial quer o alto salário na hora de vender seus produtos mas não quer o alto salário na hora de pagar seus trabalhadores. Então, essa política de elevação salarial ela não vai ao encontro dos interesses desse segmento. Agora, como nós sabemos, boa parte do setor industrial brasileiro é rentista também, faz suas aplicações no setor financeiro e acaba sendo beneficiado por essa política de expansão da dívida pública que o governo está fazendo através do aumento da taxa de juros. Esse setor acaba sendo beneficiado pelo processo de financeirização porque, embora as oportunidades para investimento no setor real da economia estejam se restringindo, há espaços que estão sendo abertos para esse segmento no setor financeiro.

Agora, eu acho que a classe dominante brasileira como um todo apoia a queda do governo. De alguma forma, a síntese de tudo isso é a Globo, que tem um papel fundamental na conspiração contra o governo. Ela dá à classe dominante brasileira a ilusão de que pode controlar o setor popular e mesmo fazer uma política de massas, uma política de insurgência do setor popular contra o governo. Mas essa é uma aposta muito perigosa para a classe dominante porque essa mobilização de massas e a insurgência pode, mais adiante, se voltar contra ela, na medida em que a capacidade de controlar esse segmento é limitada. E as Jornadas de Junho de 2013 mostraram isso.

O que está acontecendo no Brasil neste momento deve ser considerado um golpe? Com os elementos concretos que a gente tem hoje, quais são as perspectivas de desdobramento dessa crise?

Não há dúvida de que é um golpe, que está sendo desenvolvido em três frentes. É um golpe contra o mandato da presidenta Dilma, porque se apela para o impeachment sem haver fundamentação jurídica, sem crime de responsabilidade. É um golpe contra os direitos políticos do ex-presidente Lula para inviabilizar sua candidatura em 2018, como candidato mais popular, na medida em que essa retirada de direitos políticos também não está amparada em nenhum delito que o justifique. Trata-se de uma cassação de direitos políticos. E é um golpe também contra a soberania popular, na medida em que quer se impor o parlamentarismo sem consulta popular. Então, nós estamos diante de uma ofensiva não só contra um governo e contra uma liderança popular que é o ex-presidente Lula, mas contra um regime de governo amparado na soberania do povo brasileiro que é o regime presidencialista que se quer mudar sem consulta popular. Creio que, se isso se consumar, o país vai entrar num cenário muito difícil. Eu acho que com isso se esgota a Nova República. De alguma forma, o PT foi, digamos assim, o braço esquerdo da Nova República, que traz essa ideia de que o processo democrático deveria seguir sendo conciliador, para ser institucional. Essa sempre foi uma característica da Nova República, que de alguma forma estendeu o modelo de democratização que o Golbery havia pensado para a democracia brasileira. Agora, rompe-se com essa conciliação que chegou ao seu extremo com a ascensão do PT dentro desse cenário. Acho que a ruptura dessa conciliação abre o espaço para que a esquerda se reorganize e coloque temas fundamentais que o PT acabou marginalizando com o seu compromisso com a Nova República. Temas fundamentais como a soberania nacional, que foi banido ou profundamente alvejado pelo golpe de 1964 e pela Nova República também, que não deu espaço para que o Brizola reorganizasse o velho PTB. Acho que o tema da desigualdade, questionando as estruturas da propriedade no Brasil, deve ser recolocado com esse processo de reorganização da esquerda. As questões da reforma agrária, da nacionalização de empresas privadas vão se recolocar novamente. Agora, esse processo de reorganização da esquerda vai levar tempo, e pode se dar inicialmente numa situação de muito isolamento. Quanto tempo a esquerda vai levar para se reorganizar e quanto tempo pode passar para ela possa recolocar essas questões, é impossível dizer. O que me parece certo é que essa combinação de golpe com aprofundamento de um modelo de acumulação em que as perdas são jogadas para as classes trabalhadoras, junto ainda com isso com um megaevento como serão as Olimpíadas do Rio de Janeiro, é absolutamente explosiva em termos de lutas sociais e políticas.