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Entrevista: 
Luzia Mota

“A Lei de Cotas gerou uma demanda por políticas que garantissem a permanência e o êxito desses estudantes, não apenas o acesso”

Assim como nas universidades federais, a Lei de Cotas provocou mudanças importantes nas unidades da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Rede EPCT), que envolve institutos federais, Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets) e o Colégio Pedro II, que somam mais de 700 unidades espalhadas pelo Brasil. Em 2021, dos 1,5 milhão dos matriculados, 70% têm renda familiar de 1,5 salários-mínimos per capita. O dado é da coordenadora da Câmara de Ensino do Conselho Nacional das Instituições da Rede EPTC (Conif), Luzia Mota, entrevistada para a reportagem “Ações afirmativas transformam universidades e institutos federais”, publicada na edição nº 84 da Revista Poli. Na entrevista completa, a também reitora do Instituto Federal da Bahia (IFBA) fala da mudança do perfil étnico-racial, mesmo registrando a necessidade de aprimorar a coleta de dados sobre a implementação da lei e das novas demandas colocadas para as instituições de ensino após a sua promulgação.
Redação EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 25/08/2022 14h37 - Atualizado em 11/09/2023 15h25

Após dez anos da lei de cotas, qual é o balanço que a senhora faz da lei 10.711/2012?
DivulgaçãoDepois desses dez anos, o que nós observamos, particularmente na Rede Federal, foi uma alteração da composição étnico-racial dos nossos institutos. E apesar dos institutos federais serem oriundos das antigas escolas técnicas, que tinham um perfil voltado para a população pobre, o perfil étnico-racial não correspondia à realidade do país. Então, a Lei de Cotas traz para dentro das nossas instituições um número mais expressivo de estudantes pretos, pardos e indígenas, e gerou uma demanda por políticas que garantissem a permanência e o êxito desses estudantes, não apenas o acesso. E eu considero que a lei trouxe elementos positivos na luta antirracista e na luta pela inclusão das populações sub-representadas.

Hoje nosso principal desafio é a permanência, porque com a Lei de Cotas nós conseguimos o acesso para essa parcela da população. Para lidar com esse desafio, os institutos federais, em sua grande maioria, têm uma coordenação ou um departamento de políticas afirmativas. A permanência tem que ser qualificada, porque essa é a marca dos institutos federais, ofertar uma educação de qualidade. Os institutos federais têm dois princípios, duas características muito fortes: a capilaridade e a verticalidade na oferta, ou seja, um campus pode ofertar a educação profissional da formação inicial continuada até a pós-graduação.

A política de cotas é mais diretamente associada à democratização do acesso ao ensino superior, mas qual a importância dessa lei para a educação profissional? Quais as especificidades do segmento?
Existem as especificidades, mas eu considero que o principal objetivo da lei é dar acesso e garantir uma educação de qualidade para uma população que foi historicamente excluída dos processos econômicos e da educação. Eu chamo a atenção para um elemento da educação profissional, principalmente da Rede Federal, que é o fato de ela estar capilarizada para o interior do país, em cidades com baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), assim como os índices de educação. Então, quando um campus está em uma cidade com essas características, ele consegue fazer uma alteração no desenho, no arranjo educativo local. O campus se liga com a comunidade e consegue fazer uma diferença tanto para os estudantes que entram no instituto e também consegue ter uma aderência, uma sinergia com as leis municipais e estaduais. Vou dar um exemplo de como essa lei é importante. A cidade de Euclides da Cunha, aqui na Bahia, tem um IDH de 0,567, considerado baixo. Ela é uma cidade pobre e você tem um instituto federal ali. Então, você garante através também da Lei de Cotas que estudantes pretos, pardos, quilombolas, acessem esse equipamento público. Populações que jamais teriam acesso a uma educação profissional que garanta a elas uma sustentabilidade, garanta elas sonharem com uma universidade, com uma vida melhor.

E o que é oferecido aos cotistas hoje para a permanência?
Os institutos têm programas de permanência, de assistência estudantil, mas que não atendem a todos os cotistas. E nós temos também políticas de pesquisa voltadas para os cotistas, que são as bolsas de iniciação científica de ações afirmativas. Essas bolsas são ofertadas pelos órgãos de fomento, mas há também iniciativas internas com recursos próprios.

Além de auxílio financeiro, há outras ações para o incentivo à permanência?
Sim. Não são todos os institutos, mas a maioria faz os chamados cursos de nivelamento, que garantam aos estudantes que entram fazer uma transição do Fundamental 2 para o Ensino Médio. A maior parte dos institutos têm programas de monitoria para estes estudantes, o que ajuda na integração deles nessa nova etapa da aprendizagem. Há também ações que estão sendo realizadas para garantir que as leis que tratam da inclusão de conteúdos de cultura e história afro-brasileira e indígena (nº 10.639/03 e 11.645/08) sejam cumpridas, e os estudantes tenham acesso a conteúdos relacionados com a história da África, das culturas afro-brasileiras, curricularmente. Além das ações para a permanência e para o êxito, é muito importante que essa permanência seja qualificada e que esses estudantes tenham acesso à cultura afro-brasileira, até para que eles possam ser sujeitos capazes de defender as mudanças, as alterações necessárias na sociedade. Então agora aqui no IFBA, por exemplo, nós estamos com um projeto para a construção de cadernos temáticos relacionados à cultura afro-brasileira. Nós faremos formação de docentes, porque isso é uma dificuldade relatada pelos professores, e os conteúdos relacionados com a lei precisam ser incluídos não apenas nas disciplinas de história, de sociologia. Com esses projetos e com essa formação o que nós queremos garantir é que os professores de química, física e educação física, por exemplo, possam incluir estes conteúdos.

A Lei de Cotas também prevê o monitoramento da execução da lei. Na avaliação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) pouco foi feito nesse sentido. Você concorda?
Eu concordo com o diagnóstico de que nós não estamos produzindo dados sobre a efetividade da lei. Isso é algo que precisa urgentemente ser feito. Essa pauta de análise do percurso dos cotistas precisa ser institucionalizada dentro da Rede Federal. Aqui no IFBA, nós estamos com um projeto para fazer esse diagnóstico, que se chama ‘Turma Cotas’. Ele objetiva fazer uma análise dos impactos das cotas para a população negra, indígena e pessoas com deficiência aqui do IFBA nos últimos dez anos. Porque a nossa resolução de cota é anterior à lei, é de 2006. Por outro lado, há informações que a coleta de dados não consegue alcançar, até porque, como você vive em uma sociedade racista, às vezes a questão do quesito cor é negligenciada. Então uma ação importante é que a gente possa ter esses dados [de raça/cor] e outra é a formação dos servidores para garantir que eles entendam a importância de produzir esses dados relacionados ao quesito cor dentro das instituições.

De que maneira a mudança de Cefet para IF auxiliou nas implementações das ações afirmativas?
A criação dos institutos garantiu autonomia didático-pedagógica aos antigos Cefets, às antigas escolas agrotécnicas, às antigas escolas técnicas, então permite que nós tenhamos a possibilidade de criar, de construir uma arquitetura pedagógica, uma arquitetura educacional própria. A legislação que criou os institutos federais e os documentos básicos dos institutos federais trazem o trabalho como princípio educativo, a pesquisa como princípio pedagógico e a formação politécnica dos nossos estudantes – portanto, os institutos federais formam para a inclusão social e essa formação passa pelo enfrentamento do racismo com políticas públicas focalizadas na emancipação de jovens e adultos sujeitos das ações afirmativas. 

É possível diferenciar a inclusão das cotas sociais e das cotas raciais? Ou a avaliação é a mesma?
Aqui na Bahia, nós temos uma população negra que chega a quase 80%, então para nós [do Instituto Federal da Bahia] a questão racial é estruturante. No conjunto dos institutos federais, eu considero que houve também uma mudança na composição racial. Dependendo da região em que o instituto está, você tem essa realidade com graus diferentes. Entretanto, para um país como o Brasil, que tem uma profunda desigualdade social, com a população negra na base da pirâmide, com indicadores que provam que a pobreza tem cor, eu diria que não pode haver uma dissociação entre essas duas estruturas de opressão e desigualdades, assim como não pode haver uma política afirmativa que não considere o racismo estrutural que sustenta a sociedade brasileira.

Os Institutos Federais respondem por 3% das matrículas no ensino médio do total de matrículas de acordo com dados do Censo Escolar de 2021. Quais são os desafios para democratizar o acesso para além das cotas?
Nós ainda temos um público selecionado por meio de processos, o que de alguma forma não permitem o acesso universal. Essa é uma pauta que nós vamos ter que enfrentar em algum momento. É preciso também levar em consideração que nós temos um número limitado de matrículas e instituições. E estamos em resistência permanente não apenas para a ampliação, mas também para o fortalecimento da rede que já existe. Você está observando os bloqueios, os cortes orçamentários desde 2014, cada vez mais difíceis de lidar. Tudo isso precariza nossa estrutura, o nosso funcionamento e isso impacta na qualidade do ensino que ofertamos. É necessário que nós estejamos atentos para dois vetores: o da manutenção da estrutura atual e da ampliação do número de instituições e de vagas.

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Em 2022 completam-se dez anos da lei 12.711/2012 que instituiu um programa de reserva de vagas para alunos egressos das escolas públicas, pessoas pardas, pretas, indígenas e, a partir de 2016, pessoas com deficiência. Em balanço da política, o presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Cleber Santos Vieira, comenta a importância da lei como vetor de transformação no perfil discente das instituições. Uma transformação que caminhava já antes da lei ser aprovada, uma vez que a maioria das universidades federais já adotava alguma ação afirmativa para inclusão de alunos vindos de escolas públicas, indígenas, negros e pardos. Desde 2014, os graduandos das universidades públicas vêm em sua maioria de escolas públicas (60%) e de famílias com renda de até 1,5 salários-mínimos por pessoa (70%). Os dados são de 2018, sistematizados por uma das pesquisas mais abrangentes sobre o tema, realizada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Fonaprace/Andifes). No entanto, o historiador pontua a falta de monitoramento da política pública e os desafios de permanência dos estudantes, que vão além da necessidade de custeio financeiro.