A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) completou 10 anos em julho de 2025. Quais foram os desdobramentos e as lutas que levaram à sua criação e o que ela representa para as pessoas com deficiência? .jpg)
A LBI é fruto da luta dos movimentos sociais, das instituições, das famílias e das pessoas com deficiência. Mas é um desdobramento de muita coisa que aconteceu antes: desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, passando pela Constituição Brasileira de 1988 e pelo processo de entendimento do que era deficiência, de quem são as pessoas com deficiência, do que fazer com elas. As pessoas com deficiência eram tratadas, dependendo da época e do lugar, de formas diferentes: ou eram tidas como “anjos inspiradores de superação”, ou eram atiradas de precipícios, sacrificadas ou utilizadas em experimentos científicos. Tudo isso aconteceu. A sociedade foi se impactando com essas situações, e as pessoas com deficiência também passaram a não aceitar mais certas condições. Muito disso também passa pelos períodos das grandes guerras, em que soldados e combatentes se tornavam pessoas com deficiência e queriam continuar sendo “úteis”, sendo “funcionais”, vivendo suas vidas, na medida do possível, de forma próxima ao que viviam antes. Tudo isso foi conduzindo à Lei Brasileira de Inclusão. Um grande marco que a baseia foi a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que mudou o entendimento — inclusive da terminologia “pessoa com deficiência” — ao colocar a questão da igualdade de oportunidades e do ambiente em relação à deficiência, e não apenas a deficiência como algo clínico ou incapacitante por si só. A LBI também representa a consolidação dos direitos dessas pessoas no meio jurídico. Quer dizer, é possível, através dela, processar uma instituição, uma pessoa ou um órgão, pelo crime de capacitismo ou por não estabelecer as prioridades no atendimento ou nas cotas. Existia a Lei de Cotas antes, mas a LBI também fala disso. Para concursos públicos, para vagas de emprego, já houve instituições notificadas por não cumprirem essas cotas de vagas para pessoas com deficiência. Então, ela representa um grande avanço e algo em que a gente pode se amparar. Existem critérios que a instituição, a pessoa jurídica, a pessoa física ou a família da pessoa com deficiência precisam observar. Ela representa esse avanço.
Você mencionou que as terminologias foram mudando ao longo do tempo e que a Convenção trouxe uma nova. Pode explicar a importância desse processo?
As nomenclaturas representam muito do entendimento que a sociedade tem, naquele momento, sobre determinado tema. Então, quando se usa a expressão “aposentado por invalidez”, o que se está dizendo com isso? Que aquele cidadão se tornou, em virtude de um acidente ou de uma doença, alguém com deficiência. Então, ele agora não vale mais? Agora é inválido, é improdutivo, precisa ser escanteado, colocado de lado por que não serve mais para o trabalho? São nomenclaturas que passam por “deficiente”, “inválido”, “excepcional”, “retardado”, “incapaz”. Quando a ONU [Organização das Nações Unidas], em 1981, declara o “Ano das Pessoas Deficientes”, foi a primeira organização internacional que colocou o termo “pessoa” ao se referir a esse grupo populacional. O termo afirma que é uma pessoa e não esconde que ela tem uma deficiência, que é uma limitação. Mas também não tenta mascarar, como os termos “pessoas portadoras de deficiência” ou “pessoas com necessidades especiais”. Por exemplo, por eu não enxergar, algumas coisas ficam mais difíceis ou simplesmente impossíveis para mim. Agora, muitas outras coisas são possíveis. Quer dizer, eu não enxergo e, dependendo da época em que estivesse vivendo, não poderia nem trabalhar. Hoje, posso trabalhar, posso ter uma família, posso me divertir, posso assistir a um filme no cinema, posso assistir a um show, posso até ser o artista do show. Dependendo da época, as pessoas com deficiência só eram pedintes. A nomenclatura é importante, mas ela não necessariamente encerra um ciclo. A utilizada hoje é a melhor que nós temos neste momento.
A legislação já usou termos que hoje entendemos como capacitistas, mas que, para a época, eram o melhor termo a que se podia chegar. Agora, a LBI contou com muito debate público. A participação das pessoas com deficiência na elaboração da LBI foi o que fez dela um estatuto bastante abrangente: fala de trabalho, de lazer, de construção de família, de tutela e curatela., de habitação, de saúde. Por isso é um estatuto, pois abrange muitas dimensões. E isso se deve à essa participação ampla em sua elaboração, que contou também com organizações, coletivos, movimentos e instituições familiares.
Muitos artigos da LBI ainda não foram implementados. Qual é a importância dessa regulamentação para que a lei possa ser efetivamente aplicada?
Quando um artigo não é regulamentado, muita coisa fica em aberto. Então, por exemplo, a lei do cão-guia, nº 11.126 de 2005: a pessoa pode entrar com o cão-guia em ambientes públicos ou privados de uso coletivo. No entanto, como identificamos um cão-guia? Será que todo cachorro com uma pessoa cega é um? Como se define o cão-guia? Ele precisa de uma identificação que vem de determinada escola? A pessoa tem que ter uma carteirinha com a foto dela e do cachorro? Precisa andar com a carteirinha de vacinação do cachorro? Eu tenho um cão-guia. Ele é identificado, tem a plaquinha, tem um coletinho escrito “cão-guia”, tem o nome dele e toda a documentação. E, mesmo assim, tem lugar que eu chego e não aceitam cachorro. Então, eu respiro e digo que é um cão-guia. Há pouco tempo aconteceu isso: cheguei a um restaurante e o atendente falou “aqui não pode cachorro”. Veio o gerente e, prontamente, peguei a documentação do cão e mostrei. E ele nem sabia como era a documentação de um cão-guia, só queria saber se havia algum jeito de eu enganar, caso o meu cachorro não fosse realmente um cão-guia. Para que serve a regulamentação? Para amarrar, para deixar aquele artigo, aquela lei mais bem explicada e mais fácil de ser compreendida pelas pessoas. A LBI é complexa para quem não está no universo das pessoas com deficiência. Se não for alguém minimamente entendido do assunto, alguns termos não serão compreendidos. Por isso é importante regulamentar — e, mais importante ainda, fiscalizar e informar sobre isso. A formação e a educação das pessoas são fundamentais.
A lei tem como princípio central a garantia dos direitos humanos. Ao longo da última década, você considera que ela vem cumprindo esse papel?
A lei em si é abrangente, fala de muita coisa, mas estabelece questões relacionadas ao trabalho. À medida que há descumprimento dessa legislação e alguém denuncia, o Ministério Público pode atuar. Já aconteceu em outros lugares: medidas de acessibilidade não foram cumpridas, o Ministério Público notificou, ou alguém simplesmente processou dizendo “essa instituição não está cumprindo o básico da acessibilidade”. As pessoas não conseguem se movimentar com autonomia e segurança. Nesse sentido, acho que está mais fácil das coisas mudarem de fato. Agora, muito do que diz respeito às pessoas com deficiência não tem lei que vá mudar de forma acelerada. Passa pela educação, por outros fatores. Algumas coisas só acontecem pela força da obrigação: “se você não cumpriu o número de vagas, será multado”. E essa multa tem que ser alta, porque senão a empresa prefere pagar. Ela acha que terá que fazer muitas adaptações que não quer fazer, ou considera que a pessoa com deficiência vai dar mais trabalho. Então, prefere pagar a multa. Se a multa for baixinha, paga. Isso acontece bastante. Outras preferem contratar pessoas com deficiência e dizer: “olha, você está contratado, vai receber seu salário, mas fica em casa, não precisa vir. Você está empregado”. Isso acontece muito, principalmente em São Paulo. Se a lei ou o decreto estivessem regulamentados, poderiam dizer: “Olha, elas precisam estar empregadas e você tem que provar que frequentam o local de trabalho”. Sem isso, basta mostrar o contrato e está resolvido.
Como a lei atua em situações de mais vulnerabilidade?
A lei também fala de questões de vulnerabilidade, quando a pessoa tem vínculos frágeis ou rompidos com a família. Isso acontece bastante. Ou quando esses vínculos até são bons, mas essa pessoa precisa de mais cuidados. Uma questão para a qual a lei também carece de regulamentação é a dos cuidadores. Muitas pessoas com deficiência precisam de cuidadores e eles não são remunerados, ou são remunerados pela própria pessoa quando ela pode. O trabalho do cuidado é muito invisibilizado. Quem cuida é a mãe, a esposa, a filha, quase sempre é a mulher e muitas vezes sem remuneração, sem descanso, sem uma regulamentação. Isso é uma coisa que a lei precisava amarrar mais. Existe a profissão, por exemplo, do cuidador de idosos, em que você faz um curso. Mas no caso de um cuidador da pessoa com deficiência esses cuidados vão variar de acordo com a necessidade de cada pessoa. Dependendo do nível de suporte de uma pessoa autista, por exemplo, ela pode precisar de cuidados em relação à saúde básica, tomar banho, ou pode não precisar de cuidado nenhum. Talvez uma regulamentação desse conta disso, ou uma lei específica sobre o cuidado das pessoas com deficiência. O Plano Nacional [dos Direitos da Pessoa com Deficiência] tem uma parte voltada para isso, mas não é suficiente. É sempre bom deixar muito explícito que o cuidado vai variar de pessoa para pessoa, a necessidade vai variar. Uma pessoa, por exemplo, que tenha perdido a visão na idade adulta, e precise de um processo de reaprender as coisas, dependendo da forma como a família e a própria pessoa lidam com isso, pode ser mais leve ou mais pesado, ou até impossibilitado. A gente conhece muitos casos de maridos que abandonam a esposa que perdeu a visão - ou o contrário – ou então os filhos passam a não respeitar mais os pais. As pessoas se aproveitam muitas vezes do benefício da pessoa com deficiência. Essa regulamentação do cuidado resolveria muitas coisas, inclusive nessa questão da autonomia, você não ter que ficar dependendo desse familiar. Você tem uma pessoa que saiba o que fazer, legalizada, com seu descanso garantido, com a sua remuneração garantida. E isso abre uma possibilidade de trabalho para quem precisa. Mas elas também precisam de descanso, remuneração digna, formação para saber exercer esse cuidado, e não ser uma coisa só da caridade, do assistencialismo. Falamos muito de acessibilidade, de barreiras, de libras, mas a gente fala pouco do cuidado, e de como ele é ofertado ou não, quem é que pode pagar por ele, quem é que sabe cuidar. Tudo isso são discussões que ainda precisamos aprofundar.
Segundo o IBGE, em 2022, entre as pessoas com deficiência de 15 anos ou mais, 2,9 milhões eram analfabetas. Isso corresponde a uma taxa de analfabetismo de 21,3%. É também quatro vezes a taxa de analfabetismo das pessoas sem deficiência (5,2%). Ou seja, apesar da LBI garantir o direito à educação inclusiva, os dados mostram que pessoas com deficiência têm, em média, menos anos de escolaridade e mais dificuldade de concluir os ciclos escolares. Como você avalia esse cenário?
Quais são as barreiras para a formação dessas pessoas? Começam com você chegar até a escola, porque, às vezes, o próprio caminho já desanima. Até você ter o material adaptado para a sua necessidade, profissionais instruídos para conseguir extrair o melhor daquela pessoa; ter famílias instruídas, porque muitas vezes a pessoa é neurodivergente, que precisa de um tratamento, de um medicamento, e a família não sabe, não tem dinheiro para comprar. Então é melhor ficar em casa. Porque na escola, sem o devido tratamento, o devido medicamento, ela pode estar em situações extremas de crise, se tornar agressiva, e quem é que vai querer levar um tapa ou chute de um aluno que você nem conhece, que você nem sabe se ele está fazendo isso porque está em crise? E que disposição você vai ter para chegar em uma sala de aula e o professor dar um material cheio de gráficos que você não consegue ter acesso? As barreiras são muitas. Desde acesso físico, sair de casa e chegar na escola até o acesso a profissionais habilitados. Falta fiscalização. Porque no ensino privado acontece muito de a escola fingir que inclui. E o pai e a mãe trabalhando na correria do dia a dia, muitas vezes não conseguem acompanhar. Acham que está tudo bem. E não está. O filho não está aprendendo. Está passando, mas não está sendo preparado para nada. O aluno precisa de um mediador, mas não tem. O cenário é desanimador, ainda hoje, com 10 anos da LBI. Já foi pior? Claro que sim. Mas ainda não está nem perto de ser bom. As questões sociais e socioeconômicas fazem muita diferença nisso, especialmente se a família puder pagar alguém para ser mediador, para ser um explicador que vai dar um reforço em casa, que vai ensinar questões que muitas vezes na sala de aula, o professor não conseguiu dar conta. O que também não é culpa do professor. Às vezes ele não consegue, não tem como. E quem responde por isso então? Quem é que vai ser responsabilizado por essa taxa de analfabetismo entre as pessoas com deficiência?
Na saúde, entre tantos desafios impostos, as pessoas com deficiência ainda encontram barreiras para consultas, reabilitação, entre outros. De que forma a LBI tem incidido neste aspecto?
Quando você fala de saúde está falando de médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, psicólogos. São categorias que carecem muito dessa formação anticapacitista nos seus próprios cursos. A deficiência, muitas vezes, para os médicos, é muito medicamentosa. Eles não sabem o que fazer quando entra uma pessoa com deficiência no consultório, ou que sofre um acidente e chega num pronto-socorro e precisa de um atendimento. Como a lei atua? Ela fala sobre a prioridade no atendimento, mas observados os protocolos de saúde, de acordo com a gravidade, e o resto passa por tudo que a gente já falou, pelas atitudes, pelas barreiras de acessibilidade da pessoa conseguir chegar aonde ela precisa chegar, de como ela vai ser atendida. Tudo isso passa por essas questões, que muitas vezes são de ordem atitudinal. Você, quando vai ao médico para uma consulta e ele precisa receitar alguma coisa, dependendo de como for essa interação, ela é inviável para a pessoa com deficiência. Ele passa receita de um medicamento que você precisa ver para dosar a quantidade necessária. São coisas que ou você precisa ter alguém, ou precisa desenvolver um meio de conseguir fazer isso acontecer. Imagina se você tem um filho, e você precisa saber fazer isso de uma forma que funcione, que não seja prejudicial. Porque não há instrumentos prontos para isso. A vida faz a gente correr atrás de algumas coisas, porque não dá para esperar. As pessoas com deficiência precisam viver, elas não têm o tempo do legislador, da agência reguladora. Eu tenho que dar o remédio hoje.
O que eu vou fazer? Tenho que achar meios.
E se eu não tiver como? São muitas barreiras de ordem prática que o legislador não consegue alcançar. Então quando você fala do que a lei garante, é muito pouco, porque muitas coisas estão nessa ordem do dia a dia, da prática, que não sei como seria para regulamentar isso de forma assertiva, de forma que dê resultado prático. Agora, o Estado precisa garantir mais atendimento para quem precisa de reabilitação, mais clínicas, hospitais especializados, para quem precisa eventualmente desse lugar. Isso é uma coisa que a própria Constituição já dizia, não precisava nem da LBI para isso. As políticas públicas, a fiscalização, as denúncias, tudo isso tem potencial de fazer com que os governos estaduais, municipais e federal queiram correr para proporcionar mais acesso à reabilitação, aos tratamentos, a uma instrução aos profissionais do SUS para atender melhor as pessoas com deficiência.
Falando em participação social, que é um aspecto central da LBI, em 2024 aconteceu a 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, depois de um hiato de oito anos sem conferências. Qual é a importância disso?
O fato de ser depois de tanto tempo é um problema. Representa um atraso nas políticas públicas voltadas para as pessoas com deficiência de acordo com as prioridades que são levadas para essas conferências. São espaços onde as pessoas, instituições, coletivos, organizações de pessoas com deficiência, familiares, cuidadores, todo mundo estão ali para discutir o que é prioridade para os próximos anos. A avaliação biopsicossocial unificada, por exemplo, é importante para que as oportunidades sejam, de fato, iguais para todas as pessoas. Digamos que você chega com um laudo. E a banca avaliadora diz “não, para nós você não é uma pessoa com deficiência, não pode concorrer a essa vaga, vai voltar para a ampla concorrência”. Se tem um instrumento unificado, isso não acontece. Então a Fiocruz, o INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], o Tribunal de Justiça do Estado, vai todo mundo usar esse instrumento. Pronto. A gente está falando de oportunidades iguais e justas. As pessoas vão de fato poder usufruir desse direito a essas vagas afirmativas para pessoas com deficiência sem ter que ficar judicializando toda hora essas questões.
Esse foi um tema discutido na 5ª Conferência, que é de muita importância para as pessoas com deficiência e deveria ser também para as instituições, para a sociedade de uma forma geral.