Quais são as vulnerabilidades que os idosos já têm, independentemente dessa pandemia?
Embora essa epidemia possa infectar todo mundo, ela é influenciada também nas suas consequências e desdobramentos por diversos fatores como gênero, idade, classe social, raça, entre outros. É importante mencionar isso porque quando nos referimos às pessoas idosas, elas não são uma categoria homogênea. Os idosos compõem uma faixa etária ampla e que abrange dos 60 até mais de cem anos, e nesse segmento existe uma grande heterogeneidade, diferentes níveis de vulnerabilidade e também diferenças de classe e de gênero que podem ser determinantes para o acesso à informação e especificidades dos cuidados necessários não só de modo geral mas também em situações emergenciais, como é o caso da atual epidemia do coronavírus.
Existe um fenômeno chamado de imunoscencência, decorrente do processo de envelhecimento e que significa que o sistema imunológico dos mais idosos pode responder de forma mais lenta, em quadros infecciosos. Essa é uma das razões pelas quais se considera que os idosos são mais suscetíveis a infecções respiratórias e por isso se faz uma campanha de vacinação anual para gripe para essa população. Eles são mais vulneráveis, podem demorar mais a se recuperar e tem um índice de mortalidade maior.
Nesse contexto muitas crianças ficam com avós, seja pela suspensão das aulas ou em meio turno. Isso coloca os idosos em situação de maior vulnerabilidade?
Muitas orientações que estão sendo feitas, inclusive, no nível da gestão, pensam em um cidadão ou em um idoso de uma classe social com recursos, ou seja; classe média ou média alta. Mas precisamos pensar também nas pessoas que vivem nas comunidades, nos arranjos familiares variados que existem na nossa sociedade. Não se pode confundir posição geracional com idade avançada. A noção de que os avós são necessariamente idosos é própria de um olhar sobre as classes sociais mais abastadas. Mas nós temos avós com 40, 50 anos, ou seja, não são idosos.
A questão da convivência entre as gerações pode ser mais intensa em determinados contextos populacionais, por exemplo, comunidades onde muitas pessoas residam juntas, ou mais espaçada em outros contextos populacionais onde as famílias sejam mais dispersas, as pessoas tenham condições de cada um ter a sua casa.
Outra coisa que também é importante destacar é que há pessoas que têm condição de fazer um isolamento por conta própria ou por acordo com seu trabalho e há pessoas que não têm essa escolha, porque precisam sair para trabalhar, seja por estarem inseridas em ocupações precarizadas ou na informalidade, ou por estarem inseridas nos serviços essenciais, que incluem por exemplo, os serviços assistenciais e de vigilância na área de saúde, bem como as cuidadoras de pessoas idosas, dentre outras. Então, é óbvio que os idosos que tiverem uma convivência mais intensa com as pessoas que estão circulando na cidade e estão em maior risco de contágio. Assim, não é só uma questão em relação às crianças, independe de uma faixa etária específica.
Qual o papel do cuidador de idoso?
Bom, primeiro eu gostaria de falar das cuidadoras no feminino, porque embora a norma culta da gramática portuguesa trate o “cuidador” no masculino, a gente está falando de uma categoria de trabalhadoras que são, em sua maioria, mulheres. Recentemente, inclusive, uma orientanda minha levantou o perfil de cerca de 1.600 pessoas inscritas para o nosso curso para cuidadoras e 90% eram mulheres.
E, antes de falar do papel das cuidadoras, eu queria falar de como a epidemia do corona impacta de forma diferente as mulheres. Um recente documento da ONU Mulheres Brasil aponta alguns fatores que fragilizam mais o gênero feminino, entre eles, um índice maior de informalidade no trabalho dessa população, que podem ser mais afetadas pela crise econômica ou serem mais compelidas a sair para trabalhar. Além disso, cabe à mulher a maior carga de trabalho doméstico, o que inclui o cuidado de parentes, e nesse caso eu estou me referindo ao trabalho não remunerado. E quando a casa fica mais cheia, a mulher tende a ser sobrecarregada.
O papel das cuidadoras é, de uma maneira geral, de ajuda para as atividades da vida diária, e isso envolve diferente coisas como, por exemplo, acompanhar as pessoas que necessitam desse tipo de ajuda em saídas na rua, ajudar também na higiene, na alimentação, na mobilidade, estimular nas atividades de lazer... As cuidadoras têm uma função importante na promoção da saúde, na proteção à dignidade e aos direitos, bem como na observação de mudanças na pessoa cuidada que possam demandar algum tipo de auxílio externo, ou mesmo o acionamento dos serviços de urgência e emergência. Elas ajudam as famílias a cuidarem ou a substituem quando essa família não existe ou não tem condições de cuidar por variadas razões.
Em um momento de pandemia, essa profissional passa a ter outro papel?
Nesse contexto, as cuidadoras estão expostas também a uma situação de risco, já que o cuidado é um trabalho de proximidade. Eu vi, por exemplo, uma recomendação de que as pessoas deveriam manter uma distância de um metro das pessoas idosas, mas como você vai manter distância de quem precisa da sua ajuda para se locomover, para não ter o risco de sofrer uma queda? E quem precisa de um auxílio para tomar um banho ou se vestir? Essa distância não é possível no cuidado das pessoas com limitações funcionais.
As cuidadoras têm que estar urgentemente informadas sobre as precauções e recomendações para prevenir os riscos de contágio do coronavírus tanto em relação a elas próprias como para as pessoas sob seus cuidados. É importantíssimo que tenham acesso a equipamentos de proteção individual. Elas precisam também de ter garantida a sua liberdade para se deslocarem até os seus locais de trabalho, porque receber cuidado não é algo que possa ser facilmente dispensado ou seja opcional. Há pessoas que sem os cuidados podem morrer, porque deles necessitam para sua sobrevivência. Essas trabalhadoras também precisam estar informadas sobre as situações nas quais é necessário acionar os serviços de emergência, no caso do coronavírus, porque são elas que estão mais próximas das pessoas cuidadas e podem reconhecer em primeiro lugar a necessidade de uma ação mais imediata.
E falando sobre isso, eu não posso deixar de lembrar que o Brasil perdeu a oportunidade, em 2019, de regulamentar a profissão de cuidador de pessoa idosa. O projeto de lei 11/2016 foi vetado pelo presidente Bolsonaro e o veto foi mantido pelo Congresso Nacional. A principal contribuição que essa regulamentação da profissão trazia era um incremento na escolarização e na formação profissional dessas trabalhadoras.
Apenas para citar um exemplo, no curso para cuidadores que a gente possui na EPSJV/Fiocruz, uma das disciplinas é a biossegurança, que fala sobre o uso de equipamentos de proteção individual como, por exemplo, jaleco e luvas, e também sobre a higienização das mãos, que estão entre as medidas que estão sendo recomendadas em relação ao covid-19, e fazem parte da formação que a gente dá para as cuidadoras.
Na formação geral, esse cuidador não tem nenhum treinamento específico para coronavírus. Você considera isso necessário?
Nenhuma formação, dentro do campo da saúde ou de qualquer outra área, tem capacidade de abordar todas as doenças existentes. Então, é muito difícil responder sobre doenças específicas. A formação geral das cuidadoras é mais focada nos cuidados do que nas doenças. Ela obviamente aborda agravos que possuem uma incidência maior na população idosa, como, por exemplo, a Doença de Alzheimer, mas com foco nos cuidados, ou seja, em formas de lidar com questões comportamentais decorrentes dessa condição.
Como se trata de uma formação no nível de qualificação profissional e que tem uma duração mais curta, é difícil pensar em uma grade focada em doenças. Então, eu acho que, por exemplo, noções sobre biossegurança no cuidado seriam já uma ótima contribuição, tanto para a segurança da trabalhadora cuidadora, como para a proteção das pessoas que são cuidadas.
No caso de uma situação de emergência sanitária como a que estamos vivendo, devem ser realizadas ações e campanhas de orientação e treinamento para a população em geral, incluindo, tanto as cuidadoras familiares como as cuidadoras remuneradas e abarcando as realidades não somente dos idosos com melhores condições de renda, mas também nas populações mais vulneráveis que moram em comunidades mais pobres. Porque tem gente que não tem água encanada, que não vai conseguir comprar álcool gel, que não tem cômodo separado na sua casa. Então, tudo isso tem que ser levado em consideração quando se pensa numa educação para a saúde em uma realidade heterogênea e desigual como a do nosso país.
A cuidadora, na prática, não pode ficar em casa de quarentena. Ela se relaciona com sua família, precisa andar de transporte público. Inclusive, recentemente, no Rio de Janeiro, um decreto passou a impedir a circulação de transporte intermunicipal de passageiros que liga a Região Metropolitana à cidade do Rio de Janeiro. De acordo com a Secretaria de Estado de Transportes, só poderão embarcar nos transportes públicos os trabalhadores de setores definidos como essenciais, como os de saúde e de segurança pública com os respectivos serviços de apoio, além dos que trabalham em farmácias, mercados, transporte de cargas e logística, postos de gasolina, entre outros. O que fazer com essa cuidadora que precisa chegar a casa dos idosos?
As cuidadoras, sejam de pessoas idosas, de crianças com autismo, de pessoas com transtornos mentais graves, atuam, em sua vasta maioria, na informalidade. Muitas não estão formalmente contratadas. Mas o cuidado é serviço essencial, é questão de sobrevivência. Apelo às autoridades para que tenham sensibilidade à essa questão. Sugiro que as famílias, agências e demais contratantes providenciem declarações para facilitar a identificação dessas trabalhadoras. E reforço a necessidade de que seja viabilizado o fornecimento de equipamentos de proteção individual para elas.
Uma situação preocupante é que o Brasil avançou muito pouco na implantação de políticas públicas de cuidado domiciliar. A gente ainda trabalha numa lógica assistencial baseada muitas vezes na institucionalização e a população idosa residente nas instituições está entre as de maior risco, porque o risco de contágio em locais onde as pessoas vivem juntas é muito maior. Como aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, a gente não tem uma política pública com cuidadoras domiciliares, não existem canais para comunicação direta com essas pessoas. Essas pessoas têm que se informar pela mídia em geral, o que é mais difícil.
Além disso, existe também uma conjuntura de desinvestimento nos recursos do SUS, desde a aprovação da Emenda Constitucional 95 [que congela os gastos com saúde e educação por 20 anos] e também com a reformulação da Política Nacional de Atenção Básica [PNAB], o que fez com que muitos profissionais de saúde fossem demitidos, que as equipes de Saúde da Família tivessem a sua composição diminuída, além da falta de insumos. E isso vai penalizar os segmentos mais vulneráveis da população, o que inclui uma parte importante da população idosa que depende de serviços públicos. O fato de a gente ter menos recursos para o atendimento domiciliar é preocupante. E é importante lembrar que o cadastramento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs) foi suspenso por uma portaria do Ministério da Saúde de Janeiro de 2020, o que faz com que as pessoas tenham que se deslocar mais para os serviços de saúde para serem atendidas. E isso as coloca em risco, porque só é possível você fazer medidas de contenção se você tem serviços de atendimento domiciliar, de cuidado domiciliar, além de outras ações da intersetorialidade, como a provisão de comida a domicílio, por exemplo, para idosos que moram sós e que existem em outros países que têm políticas de cuidado implantadas há mais tempo.
Existe a cuidadora familiar e a cuidadora remunerada. Em contexto de coronavírus é preciso garantir uma melhor saúde, uma melhor higiene e tantas outras questões a essa população que necessita de maiores cuidados. Faz diferença essas duas cuidadoras agora?
Bem, chamo atenção para o caso das cuidadoras familiares. É importante ter um olhar para essas pessoas porque elas não fizerem a escolha por esse trabalho de cuidados como a cuidadora remunerada fez. A cuidadora familiar assume um papel de cuidado por necessidade, por contingências da vida e também por imposições pelo seu papel de gênero na sociedade, que delega os cuidados para as mulheres. As cuidadoras familiares não têm um horário de trabalho definido e é frequente que não possuam tempo para o seu descanso. De modo geral, não têm oportunidades de acesso a uma qualificação para o desempenho das tarefas de cuidar. Além disso, são mais vulneráveis à sobrecarga. E nesses tempos de maior tensão social, essas pessoas, que são em sua maioria mulheres, tendem a ficar mais sobrecarregadas e em situação de isolamento, as angústias também aumentam, o que pode aumentar o risco às situações de violência doméstica.