Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Maraci Soares

'Defender a Vila Autódromo é defender a honra do movimento social no Brasil'

Nesta semana, com a demolição do prédio da Associação de Moradores, as forças de segurança do Rio deram mais um passo na destruição da Vila Autódromo, que se tornou símbolo da luta pelo direito à cidade e por políticas de reforma urbana no Brasil. Nesta entrevista, Maraci Soares, liderança comunitária do Quilombo do Camorim, e integrante do Conselho Popular de Moradia do Estado do Rio de Janeiro, defende que a resistência de Vila Autódromo é crucial para a "honra do movimento social no Brasil".
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 29/02/2016 09h27 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Durante as preparações para a Copa do Mundo no Brasil, em meio a protestos e denúncias de violação de direitos em diversas áreas, o país passou a conhecer uma pequena comunidade da zona oeste do Rio de Janeiro, cuja saga se tornou símbolo da luta por uma outra concepção de cidade e pela política de reforma urbana. Na verdade, quem tinha boa memória apenas se lembrou da saga da Vila Autódromo que, já em 2007, durante a preparação para os jogos Pan-Americanos, denunciava as pressões pela remoção da população local. Durante todo esse tempo, as ameaças (e as lutas) nunca cessaram. E agora, em 2016, com a proximidade das olimpíadas, o problema voltou a se acirrar.

Nesta semana, as forças de segurança do município e do estado deram mais um passo, demolindo o prédio da associação de moradores, símbolo da resistência dos poucos moradores que ainda restaram naquela região. As reuniões agora acontecem na igreja. Nesta entrevista, Maraci Soares, liderança comunitária do Quilombo do Camorim, e integrante do Conselho Popular de Moradia do Estado do Rio de Janeiro, interpreta a estratégia da prefeitura e defende que a resistência de Vila Autódromo é crucial para a luta pelo direito à cidade em todo o país. “Essa associação ter caído para a gente significa que o resto está por um fio”, alerta.

O que existe de novo na situação de Vila Autódromo hoje?

A questão de vila autódromo para mim é gravíssima, até porque eu nasci lá. Há 40 anos minha casa foi removida, já para a construção do Riocentro [centro de convenções]. Ali era uma colônia de pescadores do Camorim. Minha família sobrevivia da pesca. Até que, já num projeto de governo de exclusão social, resolveram remover todos os barracos, inclusive o que eu morava. Na época, já havia também essa possibilidade de morar em Santa Cruz. Mas, como minha família é quilombola do Camborim, nós fomos morar lá, nas terras do meu avô. Conto essa história para deixar claro que esse projeto de exclusão não começou agora, é tudo muito antigo. Defender a Vila Autódromo é defender aquela minha casinha que eu não pude defender aos nove anos. Acompanho a luta de vila autódromo há 20 anos, vendo meus companheiros ali sofrendo essa perseguição pela prefeitura e pelo estado. As remoções de Jacarepaguá sempre foram totalmente violentas. E vila autódromo hoje chega ao momento mais grave de toda a sua história. O fato é que se divulgou na internet que neste sábado, 27 de fevereiro, será apresentado, acho que pela décima vez, o Plano Popular Urbanístico de Vila Autódromo. É um documento em que companheiros do Ippur [Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da UFRJ] e do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense se dedicaram a provar para a prefeitura que dá para acontecer tudo sem remoção de Vila Autódromo. À medida que a prefeitura ficou sabendo desse novo lançamento, e que isso tomou uma proporção grande, Vila Autódromo está sendo seriamente atacada pelas polícias todas juntas, ao mesmo tempo. O morador está acuado, está sofrendo. Hoje acabaram de derrubar a associação de moradores. A casa da Penha [liderança comunitária da região] está protegida ainda por uma liminar que pode cair a qualquer momento. Enfim, a gente pede socorro por vila autódromo. Eu acho que defender Vila Autódromo é defender a honra do movimento social do Brasil. É dizer que a gente tem direitos. E não aceitar covardias.

O que a demolição da associação de moradores significa para a luta da população de Vila Autódromo?

Na verdade, a prefeitura está acampada dentro de Vila Autódromo, com suas estratégias, há cinco anos. [Jorge] Bittar ainda estava na secretaria de habitação quando isso começou. Foi a primeira mentira pública que a gente ouviu, porque ele falou publicamente que Vila Autódromo não iria sair, que só sairia quem quisesse. O prefeito vem dizendo a mesma coisa esse tempo todo, mas não assina de fato o documento que tem que ser assinado para a permanência dos moradores. Eles falam uma coisa e fazem outra. Quando eu falo que a associação caiu, falo que caiu o lugar onde as pessoas se concentram em reuniões, onde fazem suas estratégias também de movimento. Essa associação ter caído para a gente significa que o resto está por um fio. Ou melhor, que o plano deles é passar por cima de Vila Autódromo até o dia do novo lançamento do Plano Popular, para que esse grande momento não aconteça.

Você diz que esse projeto de exclusão caracterizado pela remoção é antigo, mas Vila Autódromo se tornou notícia junto com muitos outros lugares principalmente na época da Copa...

Foto de Virginia Damas/CCI/ENSP/FiocruzNa verdade, a Vila Autódromo foi perseguida em vários momentos. Em 2006 por conta dos jogos pan-americanos, a gente teve um momento crítico. A Vila Autódromo é assediada há muito tempo, porque ali é a cara da Barra da Tijuca [bairro nobre de classe média], embora seja Lagoa do Camorim. Para essa nova geografia que eles criaram da cidade, ali já é Barra. Então, é papo de milhões. Lá em 2006/2007 a gente conseguiu, com o movimento, barrar um pouco. Fomos convidados para várias reuniões na prefeitura. Estive pessoalmente com o sr. prefeito, que colocava o seguinte: ‘vocês têm que pensar no legado’. E eu disse para ele: ‘o legado a gente já sabe qual é, nada para o pobre’. Na época estava pipocando ameaça de remoção em quatro comunidades próximas. A gente conseguiu segurar apenas uma, que foi Vila Taboinhas. Vila harmonia, Vila Recreio e Restinga foram removidas no final do ano, tipo 22 de dezembro, numa época em que até o movimento social acha que tem o direito de curtir o Natal. Mas a prefeitura não parou.

Desde que Vila Autódromo ganhou espaço nos jornais, na época da Copa do Mundo, a prefeitura diz que a maioria da população queria sair de lá, que iria para condições melhores...

Eu posso te dizer que cerca de 80% da população de vila autódromo migrou. A loucura é tão grande que eles estão jogando muito dinheiro nas indenizações de Vila Autódromo. Estão querendo comprar os barracos de qualquer jeito, porque até onde a gente sabe, há um acordo do prefeito com as empreiteiras e ele tem um prazo para entregar o terreno limpo. Só que essas pessoas que resistem hoje em Vila Autódromo estão dispostas a não vender a casa delas por dinheiro nenhum. São pessoas que querem manter a vida ali, exatamente como foi construída. Esse pouquinho de Vila Autódromo que está lá são pessoas que acompanharam de perto essa mobilização do movimento e os esclarecimentos de defensores parceiros nossos, que mostraram, desde o primeiro momento, o que seriam os apartamentos para onde eles seriam levados ou essas indenizações que receberiam. Então, essas pessoas que fazem a resistência hoje em Vila Autódromo são questão de honra para o movimento social do Brasil. Esse pouquinho de Vila Autódromo sair significa que a gente não tem direito a nada, que a gente perdeu e vai continuar perdendo, que a gente está sujeito a qualquer coisa.

Por que a população resiste? Por que a remoção é um problema social tão grave?

A pessoa sai dali e vai ter que formar um novo círculo social. Entre os companheiros de Restinga e Vila Recreio [regiões de Jacarepaguá, zona oeste do Rio] que foram removidos para a Estrada dos Caboclos [em Campo Grande, a cerca de 40 quilômetros de distância], uma parte enlouqueceu. Tem jovem de 17 anos que hoje faz tratamento aqui no Juliano Moreira [hospital psiquiátrico]. E isso não é publicado em nenhum lugar: a questão de saúde, o que a remoção faz na vida de uma pessoa. Eu vi remoção aos nove anos de idade. Não esqueço da imagem de um homem dizendo para a minha mãe ‘tire as crianças e o que a senhora puder’. Minha mãe fez trouxas e a gente saiu. A imagem daquele trator jogando nosso barraco para o alto nunca saiu da minha cabeça. Por isso aos 14 anos eu já estava defendendo a luta por moradia. Esse trabalhador que foi lá para longe perdeu sua teia social. É uma transformação de vida que eu acho que ninguém tem direito de impor. Até porque Vila Autódromo recebeu concessão de uso e posse da terra no governo Leonel Brizola. Todos os moradores de Vila Autódromo têm esse documento. Mas ele nunca foi respeitado. O Rio de janeiro está uma cidade dividida, uma cidade de exclusão, uma cidade-mercadoria, onde só interessa o dinheiro e o projeto dele, que não é para nós. É um projeto de cidade que não é nosso. Destruir o centro da cidade, por exemplo, foi destruir a nossa história de quilombo, porque o quilombo migrou para ali. Essa também é uma tática da prefeitura, de apagar as identidades da cidade.

Existe um levantamento sobre a situação de vida dessa maioria de moradores que aceitou sair de Vila Autódromo?

Eu, por alto, estou estimando que 80% da comunidade já tenha saído. E uma parte deles foram para os condomínios construídos ali na Estrada dos Bandeirantes [região de Jacarepaguá, zona oeste do Rio], o que é uma vitória do movimento social, já que pela primeira vez na história das remoções de Vila autódromo foi cumprida a lei orgânica do município nº 429, que diz que em caso de remoção você tem que ser relocado na proximidade. O final de semana dessas pessoas é em Vila Autódromo, nos bares de Vila autódromo, com os companheiros que ainda ficaram lá. Porque, de verdade, se eles tivessem pensado um pouco mais, não teriam saído. Quase todos se arrependem, a vida mudou muito. O morador que saiu de Vila Autódromo foi muito assediado, se deixou levar por essa estratégia da prefeitura, que é de enganar. Aquele apartamento só será deles de verdade daqui a dez anos, quando já estiver todo pago. Por enquanto, se ele atrasar a prestação três meses, vai ser removido, vai perder o direito. Sendo muito clara, a comunidade te dá um outro tipo de sobrevivência. Porque quando você está na comunidade e tem um quintal, se não consegue comprar um botijão de gás, você faz um fogão a lenha, não vai ficar com fome. Não posso dizer que é 100%, mas pelo menos os de que a gente tem notícia, se pudessem, voltariam para a Vila Autódromo.

Crédito das fotos:

Vila Autódromo: Pablo Vergara/Brasil de Fato

Maraci Soares: Virginia Damas/CCI/ENSP/Fiocruz